Você que não é jornalista já deve ter reparado: um dos critérios que nós, profissionais do ramo, usamos para alimentar a pauta diária é a efeméride. Muitos torcem o nariz, eu entre eles. Mas torço o nariz para aquela efeméride sem sentido, irrelevante, que em nada contribui com a sua lembrança, sendo uma forma de encobrir a natural falta de assunto em alguns períodos do ano. Dito em outras palavras, uma constrangedora bengala.
Não é por preguiça que recorro a uma efeméride.
Falo aqui de uma que deixou de ser dado histórico irrelevante e se tornou lembrança essencial, e você logo vai entender. Refiro-me à Bíblia de Gutenberg, que completa 570 anos.
Esse livro é considerado o primeiro já publicado no mundo, trazendo o Tanach (conhecido como Antigo Testamento judaico no cristianismo) e o Novo Testamento, a Bíblia Cristã.
Ali começou a “idade da imprensa”.
Foi uma enorme revolução.
A revolucionária obra começou a ser preparada em 1450 e foi concluída cinco anos depois, em 1455. Foi elaborada com o uso de tipos móveis, e um exemplar completo tem 1.282 páginas.
Entre a Bíblia de Gutenberg, com suas 42 linhas por página, e o espaço infinito da internet, alguns elementos não mudaram ou apenas trocaram a roupagem. Um deles é o antissemitismo.
De lá para cá, tivemos o sofrimento dos judeus numa diáspora inóspita, em que ninguém os aceitava. Tivemos inquisição, pogroms, Shoá (Holocausto) e ataques como o invisível 7/10.
E tem algo no conteúdo desse primeiro livro que está inalterado nos seus longos 570 anos. Uma das mais repetidas informações dele é a da presença judaica em Jerusalém, na Terra de Israel.
Jerusalém = Sion. Donde, sionismo.
Por que esse fato concreto, que nada tem a ver com misticismo, é tão importante? Ora, porque ele é concreto e porque foi corroborado em inúmeros achados arqueológicos.
Trago esse assunto porque, veja bem, no infinito travestismo antissemita, já fomos raça, apátridas, vetores de pestes e, agora, na versão mais moderna, um não povo que é chauvinista.
O modelo sempre busca estar de acordo com o molde.
Já ouvi de tudo. O desvario dos antissemitas, alguns deles disfarçados de pios humanistas, chega a negar a nossa condição semita pra justificar a oposição ao direito de Israel existir.
Sim, eles fazem isso e já se tornou até naturalmente aceito.
Chegam ao cúmulo de, negando todas as provas genéticas e as mais óbvias evidências, alegar que, nos 1,9 mil anos de cruel diáspora judaica, houve uma miscigenação oito séculos atrás.
A velha, surrada, frágil e leviana história dos kazaris.
Pronto! Não são povo. Não são etnia. Não têm direito ao seu único lar no mundo. São branquelas colonialistas. Talvez até eles sustentem que os nazistas dizimaram o povo errado.
Mas, como nós, judeus, conhecemos a nossa história e esfregamos na fuça desses monstros que eles são a versão por vezes oposta dos terraplanistas que odeiam, surgem novidades.
Sempre surgem.
A mais recente que andei vendo é que o sionismo, o movimento de autodeterminação do povo judeu no seu lar ancestral, na verdade, é uma ideologia amparada apenas na religião.
E é aqui que voltamos à Bíblia de Gutenberg.
Digamos que essa obra revolucionária de 570 anos é repleta de fábulas. Ok. Também sou um tipo racional. Mas convenhamos, o livro em si existe há mais de meio milênio.
Entendem a diferença? O livro físico é uma realidade.
Seu texto é real. É concreto. É inquestionável.
Está lá a Terra de Israel. Estão lá os judeus. Por todos os lados.
É quase um documento de propriedade registrado em cartório há 570 anos. E, vamos lá, estou dando de barato. Muito conteúdo que tem ali dentro foi comprovado pela ciência.
O “antissionismo”, o antissemitismo revestido da modernidade, é uma enorme filha da putice, uma desonestidade descomunal, uma repetição da maldade que ajudou a forjar a nossa condição.
Mas, olho: vocês só reforçam a nossa negada condição de povo, com a nossa coesão, a nossa cultura, os nossos rituais religiosos, a nossa origem comum, idioma ritualístico e nacional.
Nós nos unimos contra vocês. Reforçamos a coesão.
E mantemos viva a nossa etnicidade.
Todos os elementos, rigorosamente todos, de uma etnia.
Podem procurar no dicionário mais próximo. Etnia! Está lá.
Em vez de nos tirar, vocês a reforçam.
Somos como bolo. Quanto mais batem, mais crescemos.
Recorro ao gênio Mario Quintana pra atualizar essa viagem livresca de mais de 570 anos. Outro dia, eu comentava com a nova presidente da Federação Israelita do RS, a querida Daniela Russowsky Raad: eles passarão, nós (eu no original) passarinho.
E vai um recado: o monstro que justifica e empunha a bandeira do Hamas jamais terá o direito de exigir o nosso endosso ao criticar o Elon Musk. Nem entro no mérito do gesto dele.
Vocês, sim, o fizeram.
…
Shabat Shalom.
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Foto da Capa: Gerada por IA.