O lançamento da sétima temporada de Black Mirror nos dá a oportunidade de conversarmos sobre a série que é um enorme, profundo e completo tratado psicossocial da atualidade. Mais: é um alerta que vai muito além da mera ficção científica. Nos esfrega na cara, como um espelho escuro, o nosso mundo distópico.
Parece ficção, só que não.
Você dirá que, lá no início da série, naquele distante, chocante e inesquecível primeiro episódio da primeira temporada, ver o premier britânico transando com um porco para atender a chantagens de fundo político (que na vida real, em circunstâncias menos escatológicas, redundariam em votos, popularidades e/ou até tapinhas nas costas) é algo completamente inimaginável.
Com todo o respeito que o fiofó do porquinho merece, médicos se voltando contra a vacinação ou aderindo a placebos, supostos humanistas fazendo vista grossa para um pogrom em pleno século 21 e terraplanistas literais ou figurados são fatos e personagens ainda mais absurdos.
Você certamente concorda comigo, também, que um episódio no qual as pessoas valem pela pontuação virtual não é muito diferente deste cotidiano em que o sujeito é capturado pela rede como um peixinho e anseia por curtidas.
O jornalismo é um microcosmo perverso que mostra como o número de seguidores nas redes vale mais que um currículo, o conhecimento acumulado ou uma trajetória. Quanto mais asneiras você escreve, mais asnos o leem, e os asnos são muitos, e o engajamento é alto, e os patrocínios são polpudos. Assim estamos. Fazem-se imbecilidades para imbecis.
A profissão se autossabota. E estamos fodidos!
Mas esse é outro assunto.
Black Mirror brinca também com a arte prostituída, com a relativização do tempo e do espaço, do real e do fictício, com o controle remoto das nossas mentes, com a intimidade devassada, e tudo isso é o nosso mundo. A forma pode ser uma fábula, mas a essência é muito real.
E você vê tudo com muita ansiedade. Com palpitações em alguns momentos.
Dá vontade de parar, mas é impossível, porque as histórias conversam conosco.
O espelho é poderoso. A nossa vida está refletida ali.
Sempre achei que faltava, em Black Mirror, algo sobre os telemarketings extremamente invasivos, sobre a normalização da ganância, dos streamings sobrepostos a substreamings, as subsacanagens das sacanagens quando só o que você quer é ver o jogo do seu time.
Que baita episódio seria aquele hipotético em que o protagonista tem alguém da família no hospital, espera ansioso um telefonema lhe dando notícias e não para de atender vendedores ou golpistas, atividades que, legais ou ilegais, nem sempre se diferenciam.
Vivi isso na realidade. E quase sugeri à Netflix que incluísse esse enredo em alguma temporada (eu nem cobraria direitos autorais).
O sujeito enlouquece, como frequentemente ocorre com os personagens da série, que, se você nunca viu, saiba: é composta de episódios avulsos, sem continuidade. Cada enredo é estanque. Mas, no todo, o assunto é a mesma angústia que levou Kafka a um processo absurdo que provoca a sua metamorfose num inseto pegajoso. Tal qual!
…
A sétima temporada atualiza os atualíssimos episódios do início da série, há 14 anos. Sim, sei que soei contraditório ao dizer que algo atualíssimo foi atualizado. A questão é que a nova temporada nos traz elementos do mundo de hoje.
A sobreposição de preços standards, plus ou superplus, o substreaming dentro do streaming, o plano de saúde com preferências, a propaganda agressiva e inoportuna que penetra pelos poros, está tudo ali. O primeiro episódio da nova temporada faz a gente suar frio. É emocionalmente devastador, por ser muito realista apesar de absurdo (ou exatamente por isso).
O legal dessa série, o que talvez me faça pô-la na liderança entre as mais relevantes, é que, ao vermos essa loucura toda no espelho da tela, talvez despertemos da pasmaceira. Não sei você, mas eu nunca normalizei esse lixo tecnológico muito sorrateiramente utilizado. Às vezes até me chamam de antiquado. Se o custo para consumir algo escancaradamente abusivo é a minha transformação em um gado que muge e pasta, declino da oferta e mantenho a minha sanidade humana.
Black Mirror é um despertador para quem dorme o sono dos injustiçados.
Com a sétima temporada, são 33 episódios (além de um filme interativo impressionante), todos eles muito pesados, alguns com tempo de filme, tipo uma hora e meia. Acompanhar cada minuto da genialidade do britânico Charlie Brooker exige muito do espectador, em termos emocionais e também físicos, porque a porrada é tanta que pesa.
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PS: Quando fui entrevistar o Pepe Mujica na casa dele em Montevidéu, cheguei lá todo engravatado, de terno, e me veio o então presidente do Uruguai de alpargatas e em mangas de camisa. Óbvio que pedi licença para me desengravatar. Foi um dos momentos mais marcantes da minha carreira. Mais de uma hora conversando com aquele senhor absurdamente bom e sábio, a cadelinha Manuela deitada aos meus pés. Tudo simples e lindo naquela chácara onde ele plantava e colhia amor. Exatamente como foi o Pepe, certamente o homem público mais maravilhoso que tive a honra de conhecer.
Shabat shalom!
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Foto da Capa: Divulgação.