> Textão sobre política em redes sociais me lembra muito postagem de foto nas mesmas redes: independentemente do fato de você ser feio ou bonito, estar de sunga ou de terno, de vestido de noite ou de calça manchada de moletom, sempre aparecem uns parentes/amigos para dizer (sem ironia): “Linda”, “Gato”, “Bonitão”, “Diva”. Texto sobre política é a mesma coisa. Sempre tem um que vai comentar “análise perfeita” simplesmente porque você disse o que o sujeito já pensa.
> Se o dízimo é liberado no Brasil, não entendo por que até hoje se proíbem os cassinos. O cassino ao menos oferece uma possibilidade estatística (ainda que muitas vezes anulada por fraude) de ganho em moeda real, e não em uma ficção teológica futura (também muitas vezes anulada por fraude, aliás).
> Prolifera na minha bolha a cada vez mais chata reclamação do porto-alegrense de que “não tem lugar pra jantar” na Capital dos gaúchos. Acho essa uma brisa muito doida. Sendo a gastronomia na média um campo cínico em que se estabelece fachada de refinamento no preço extorsivo e não na qualidade de fato (como qualquer empreendimento visando ao lucro), a gastronomia do proletário é xis-coração e alaminuta. Ou se virar em casa mesmo. Achei que ao menos isso a pandemia tivesse incutido nas cabecinhas de todo mundo.
> O sistema político brasileiro precisa, sabemos todos, de uma reforma. Mas o financiamento público de campanha é a fumaça que mascara o que de fato deveria ser discutido. Uma das reformas de fato essenciais passa pela extinção desse modelo aberrante que beneficia o poder da legenda, o que leva um fenômeno qualquer de voto a eleger com ele outros dois ou três com vocação insuficiente até para síndico de condomínio. Por um viés bem pragmático: 1) o eleitor brasileiro vota em pessoas, não em partidos. 2) Os grandes partidos têm poucas diferenças entre si, concentradas em áreas muito específicas, portanto dizer que esse modelo é para “eleger propostas” é uma piada cínica.
> Millor Fernandes dizia que o Rio de Janeiro era a prova de que cidades também se suicidam – algo que um visitante de primeira viagem na “Cidade Maravilhosa” pode perceber logo na chegada, cruzando as linhas vermelhas e amarelas que costuram a mortalha em volta das ruínas de um esplendor morto. Sob a atual administração municipal, Porto Alegre deu um passo além, tornou-se uma cidade que não apenas se suicida mas, à moda egípcia, encomenda seu próprio funeral em mausoléus gigantescos erguidos por construtoras amigas da municipalidade e que deixam em volta apenas um deserto sem nada que lembre verde, sequer um pé de alface.
> Aliás, sobre cidades suicidas e etc. Comecei a ler um livro chamado Nós Somos a Cidade, de N.K. Jemisin. É uma narrativa de fantasia em que cidades grandes e suficientemente antigas passam, a determinado momento, por um processo poderoso de “nascimento”, e encarnam em seres humano que, durante esse processo delicado, funcionam como “avatares” desse “algo” poderoso que a cidade está prestes a se tornar. Como é uma narrativa de fantasia, há também uma “força inimiga” não muito bem explicada nem discriminada que fará de tudo para impedir esse nascimento e devorar o “potencial” da cidade. É clara a inspiração de Neil Gaiman na coisa (aliás, ele assina um “blurb” na página do livro). Há também outra inspiração que não sei se a autora admitiria, mas me parece haver também uma pitada de Authority, de Warren Ellis, que já tinha um personagem chamado Jack Haksmoor, e que é basicamente um cara que tem o poder de ser “o espírito das cidades”. O livro é uma história fantástica com uma agenda política tão declarada e escancarada que ela meio que me cansou antes mesmo da metade. Mas a questão mais absurda e até risível para mim nem foi essa, contudo. Fica estabelecido já desde o início que o avatar de Nova York é um garoto negro mirrado sem teto, e portanto o “inimigo”, alguma coisa que “espreita nas sombras” “esperando a hora”, usa as forças policiais como seus agentes para caçá-lo e neutralizá-lo. Até aí tudo bem, como metáfora até funciona. O que me fez rir adoidado foi que esse menino, esse jovem avatar de Nova York, é procurado pela figura de um “mentor”, alguém que já passou pelo processo e que agora vai ajudar a mesma coisa a rolar em Nova York. E o cara é, basicamente, o avatar de SÃO PAULO. Em que mundo distorcido a São Paulo de 30 anos do PSDB no poder mais governador bolsonarista fresquinho da prateleira mais uma das polícias mais assassinas do mundo mais FARIA LIMERS, em que mundo ESSA São Paulo vai ser a mentora da e NOVA YORK em qualquer coisa?
> Trabalho observando o mercado literário há uns bons 20 anos, e ainda há coisas que me surpreendem para além de qualquer medida. A não ser pelo mero consumo/fetiche e talvez como elemento para pesquisas mais seguras daqui a 50 anos (uma vez que sabe-se lá o que vai acontecer com o mundo digital até lá e o tipo de lorota que os caras das big-techs do futuro estarão tentando nos empurrar), não entendo, não entendo mesmo a ideia de que volumes em papel de 500 páginas reunindo LETRAS de música de artistas populares tenham viabilidade comercial mínima.
> Tendo sido insistentemente atacada nos últimos anos por um fenômeno eleitoral que ela mesma ajudou a criar, a ascensão da extrema direita, a imprensa de modo geral vem repetindo o mantra de que jornalismo de qualidade ainda é necessário e deve ser valorizado. Concordo plenamente, a ponto de me perguntar quando a própria imprensa vai começar levar ela mesma a sério esse postulado. Com a decisão (certa para eles, equivocada para mim) de vincular “jornalismo” com “entretenimento”, a imprensa vem, em uma corrida maluca pela audiência, pegando carona constantemente no ruído “das redes” tentando fabricar engajamento – corroendo, no processo, sua própria matéria-prima, o “valor-notícia” (termo acadêmico para aquilo que seria passível de ser noticiado seja pelo ineditismo da situação, pela importância do tema ou pela importância do personagem, entre outros critérios). Com o planeta perto de 8 bilhões de habitantes, por que uma postagem de um único estúpido no Twitter seria notícia? Não sei, mas já estamos no ponto em que simplesmente é.
> Conservadores reaças de modo geral se recusam a chamar uma pessoa trans pelo nome que essa mesma pessoa escolheu. Mas não têm problema nenhum em chamar de “príncipe” até hoje descendente de Dom Pedro, como se ainda fizessem parte de uma monarquia extinta há mais de cem anos.
> O atual novo personagem folclórico da extrema direita internacional, El Loco Milei, aparentemente crê que sua missão de ser presidente da Argentina foi dada a ele por Deus e por um cachorro. Sei não. O último cara que eu me lembre que dizia ser aconselhado por Deus por intermédio de seu cachorro foi o americano David Berkowitz. Aquele mesmo que, nos anos 1970, matou cinco, feriu seis, provocou mais de mil incêndios…
> Uma hora a galera feliz do comunismo online vai ter que decidir se defende a não existência de copyright e a “criação como propriedade do coletivo” ou se reclama das páginas que copiaram seus tuítes…
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>Se você chegou até aqui estranhando o formato da coluna de hoje, saiba que há um motivo. Este mês completaram-se 100 anos do nascimento de Millôr Fernandes (1923 – 2012), um dos grandes colunistas do jornalismo brasileiro, nome de referência para pelo menos três gerações de jornalistas, incluindo a minha.
>Millôr notabilizou ao longo de sua carreira um tipo de coluna de imprensa seria aparentada ao que se costuma chamar de “balaio de gatos”: notas curtas e médias em que ele irradiava uma verve inimitável, e por isso mesmo eu, idiota que sou, resolvi imitá-la. Não no conteúdo especificamente, mas no formato, e brincando com a ideia de trazer para esse formato elementos que Millôr nunca abordou em seu trabalho. Eu já devia ter feito esta homenagem há duas semanas, mas outras coisas se atravessaram no caminho.
>Lamentavelmente, pelo depoimento que li do escritor e professor Fábio Fernandes, após sua morte Millôr parece ter caído no esquecimento rápido e vertiginoso, já que as novas gerações de estudantes de jornalismo não o leem e parecem nunca ter ouvido falar dele. Talvez fosse inevitável. Homem de teatro, artista plástico, frasista ao estilo do que melhor se produziu no gênero das máximas, tradutor, crítico tão contundente e feroz de qualquer radicalismo que por vezes se tornava ele próprio um radical anti fanatismo, Millôr morreu sem deixar descendentes intelectuais. Talvez seja mais fácil imitar Paulo Francis, emulando seu desdém mesmo sem um pingo de sua cultura, do que reproduzir a quase intolerável independência de Millôr, principalmente nos dias de hoje.
>Millôr foi um autodidata que traduzia Shakespeare. Não se considerava um intelectual (“O intelectual é a empregada doméstica dos poderosos”). O que não significava que, por isso, afetasse uma modéstia que não tinha (“A modéstia não deve ser cultivada até a presunção”). Sua afirmação de que era, enfim, um escritor “sem estilo” não era uma autoindulgente tentativa de rebaixar as expectativas. Era o oposto: Millôr escrevia do modo que queria e achava necessário para cada ideia e para cada texto, e via no “estilo” mais uma camisa de força da qual se libertar – o estilo muitas vezes não é virtude, e sim a limitação que leva um autor a só conseguir escrever do jeito que de fato escreve.
>O mais próximo que o Brasil já produziu de um iluminista, Millôr era único porque lutava para isso, com todas as forças, escarnecendo com sua sátira irreverente todos os lados de qualquer polêmica e defendendo o direito a uma visão pessoal que não tivesse a necessidade de se alinhar a qualquer corrente (“Por favor, me combatam, mas não me comparem nem me misturem; não tenho nada a ver com o que fazem, dizem ou pensam os outros 6 bilhões”).>
> Talvez isso explique minha surpresa quando há uns anos começou a se produzir na academia um consenso de que Millôr era um “colunista de direita”. Seu leitor de décadas, me surpreendi, mas penso que sim, no atual ambiente político, seria inevitável que Millôr fosse “lido” assim nos dias de hoje. Porque Millôr podia ser clássico, moleque, nonsense, contemplativo, filosófico, podia ser político, podia ser politicamente incorreto (“Não quero viver num mundo em que não possa fazer uma piada de mau gosto”), podia ser incorreto. Sua verve radical era ardorosa defensora da oposição, qualquer oposição, movido por um ceticismo que, se não redundava em amargura, porque temperado com humor, também fazia de Millôr um pensador crítico, quase nunca propositivo. Sempre havia um lado risível em tudo e todos, em qualquer político e movimento, qualquer elite ou minoria – e que o humorista, com sua franqueza cortante, não deixava de revelar em tintas sombrias, mesmo fazendo graça (“Só existe um modo de ser livre: ser o opressor”; “Bata em sua mulher hoje mesmo – amanhã ela pode estar no poder”; “É preciso primeiro combater o nosso próprio lado”).
>Para Millôr, não se deixar levar, em qualquer sentido da expressão, era fundamental. Estar sozinho com suas próprias ideias, visões, e ter a coragem moral de sustentá-las contra as conveniências, as pressões e os interesses, seria uma das maneiras de fazer a súmula do pensamento subjacente a sua imensa produção textual. Eu mesmo talvez me exasperasse com o que Millôr poderia ter dito das restrições sanitárias da Covid, por exemplo. Ou como ele teria visto a ascensão de uma onda de jovens meio incultos que hoje defendem a liberdade individual que ele pregava com estratégias truculentas e populistas que ele deplorava. Millôr talvez hoje fosse, a contragosto, empurrado para a direita não importasse o que ele mesmo acharia disso.
Millôr passou a vida sendo galhardamente do contra. Mas não basta ser do contra para ser Millôr.
Foto da Capa: Reprodução do Youtube, Millôr no programa Roda Viva – TV Cultura