Na primeira edição de A Confederação dos Tamoios – espécie de épico brasileiro escrito por Gonçalves de Magalhães – que pertencia ao Imperador Dom Pedro II, encontra-se a seguinte anotação numa das margens: “organizar moralmente a nacionalidade, formar uma elite” (Schwarcz & Starling, 2018, p. 283). Tem-se aí, portanto, nas palavras oficiais da autoridade e símbolo máximo do Segundo Reinado (1840 – 1889), um documento a partir do qual se pode derivar a ideia de um projeto nacional. Qual seja: a estruturação de uma identidade brasileira.
A palavra ‘moral’ é derivada do latim: mores é a forma plural de mos, que designa os costumes, os modos, os hábitos e os usos. Mores é empregada, usual e frouxamente, para indicar a existência de certos costumes determinados consuetudinariamente; isto é, determinados pela rotina, pela repetição e pela consistência de certos hábitos dentro de uma organização sociocultural específica. Ainda de modo vago, são os mores – ou a moral – que determinam, em certa medida, tudo aquilo que é considerado aceitável ou não dentro dessa organização particular. Assim, a partir da especificação inicial, etimológica e de dicionário, depreende-se a ideia de que o fundamento da moralidade está nos próprios costumes e nos hábitos. E, desse modo, não teria um fundamento alheio à imanência da sociedade e da cultura em sua organização singular, não sendo, portanto, transcendental.
A tarefa do Império brasileiro em “organizar moralmente a nacionalidade” seria, portanto, uma tarefa de criação, fundamentação e estruturação de um sistema sociocultural no qual a própria nacionalidade – ou seja, aquele conjunto de elementos que fazem com que uma nação seja o que é e se reconheça, mediante essa fundação, como tal – estaria lastreada por costumes, hábitos, usos e (por que não?) imagens e sentimentos. É a partir do assentamento desses elementos intrinsecamente relacionados à identidade de uma nação, que se formou uma elite sobretudo intelectual no Brasil durante o Segundo Reinado. Sua função seria, então, a de fundação e garantia desse projeto. O conhecido “bolsinho do Imperador” – aquele sistema de transferência de recursos por meio do mecenato direto – ajudou, desse modo, a assegurar o projeto, garantindo a sobrevivência do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e a implementação da Academia Imperial de Belas Artes (Schwarcz & Starling, 2018, p. 286). Foi desse modo que se amarram oficialmente, no Brasil do Segundo Reinado, a pesquisa científica e a produção artística sob a prerrogativa Imperial da construção da nossa identidade nacional a partir da consolidação de costumes, hábitos, saberes, imagens e sentimentos peculiares – mas também pitorescos – do Brasil.
Se no passado as imagens saídas da honrosa Academia Imperial de Belas Artes serviam, no enquadramento de sua oficialidade estatal, ao projeto de consolidação da ardilosa identidade de um país continental, marcado pelo latifúndio escravagista, pelo extermínio da população indígena e pela supressão acachapante das reais condições socioculturais através de uma singular mitopoética europeizante eivada de motivos edênicos e de ideologias liberais – na qual, conforme escreveu Roberto Schwarz, as “ideias estavam fora do lugar” (Schwarz, 2007, p. 11) –, então hoje, encerrado o ciclo Imperial e colonial, convivemos com os farrapos simbólicos e os restos imaginários dessa síntese muito mal feita entre o que veio de fora para implementar-se no dentro. Hoje, o tão almejado projeto de uma identidade nacional organizada mediante a fundamentação de costumes e imagens reaparece apenas como um subterfúgio fantasioso, no qual abrigamos nosso edulcorado escapismo. Ou, conforme as Raízes do Brasil, nosso bovarismo (Buarque de Holanda, 2016, p. 291). Pois, no Brasil, “em se plantando, tudo dá” e somos, desde o “descobrimento”, “abençoados” pela Providência.
Entretanto, o problema da identidade nacional é um problema nosso, contemporâneo. E, dada a intensa história de tentativas de captura simbólica, imaginária e afetiva desse gigante nos Trópicos, é igualmente um problema anacrônico. Ou seja, a identidade nacional é uma questão que reaparece contemporaneamente sempre em contraste com o nosso passado histórico e com os modos pelos quais, nesse passado, a enquadramos e estipulamos, perseguindo a ideia de Brasil. Interrogar a identidade nacional brasileira hoje significa encontrar, na experiência atual com a política, o pensamento e a arte produzidas aqui, aqueles ecos do nosso próprio passado, desde sempre lastreados em registro puramente intencional e em franco descompasso com a experiência concreta. E significa, também, compreender que o nosso agora está pontuado por estruturas do ontem, formando um caleidoscópio difuso, porém magnetizante e enganador.
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A Obra Embargada de Jefferson Medeiros nos mostra um tijolo de seis furos em cuja superfície foram talhadas duas formas geométricas, o losango e círculo. O objeto é apresentado assim, em sua ruína particular, junto dos fragmentos oriundos da intervenção artística. Desse modo, sob a unidade essencial para a construção da maioria das edificações brasileiras, o artista reserva o gesto escultórico mínimo do entalhe para, sobre ela, marcar as formas mais características de um dos nossos principais semióforos nacionais: a nossa bandeira.
Jefferson Medeiros, Obra Embargada, 2020. Escultura em tijolo. 17 x 29 x 9 cm. Acervo SP Arte. Disponível em: https://www.sp-arte.com/artistas/jefferson-medeiros/
A obra, parece-me, fala não só sobre o costume brasileiro de começar a construir e parar no meio da construção (coisa sobre a qual já comentei antes, usando o sagaz fraseado de Caetano Veloso em Fora da Ordem: “aqui tudo parece que é ainda em construção e já é ruína”); mas fala também, e justamente, dessa nossa moralidade da ruína. Assim, a ruína, talvez, constitua para nós um dos traços pelos quais apreendemos algo dessa identidade nacional, ainda que de modo negativo. Lembrando Benjamin: “Não há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie” (Walter Benjamin, 2020, p. 74). Talvez a obra de Medeiros também nos emita um aviso diante da ruína, dizendo-nos que é, de fato, necessário embargar a obra de construção de uma identidade nacional nos mesmos moldes do passado, contornando, ou melhor, elaborando o perigo de sua repetição. Talvez por meio do embargo da construção da identidade-Brasil como um projeto homogeneizador, encontremos o caminho para o reconhecimento das múltiplas diferenças que constituem nossas muitas culturas e muitas identidades ou, se conseguirmos abrir mão da veleidade pelo rigor excessivo, pelo menos algumas identificações que nos levem mais adiante. Sobre as ruínas de um projeto unificador da nação ainda atrelado à quadratura oitocentista talvez precisemos reconhecer, primeiro, a ruína ela mesma e suas repercussões no presente e, segundo, a existência de uma constelação de identidades/identificações.
Por outro lado, Marília Scarabello, em sua série de fotografias intitulada Brasil (2020 – 2021), apresenta-nos, a partir do enquadramento da vida cotidiana e das rotinas de higiene e autocuidado, os registros do processo de uso de uma barra de sabão na qual se lê o nome da nossa nação.
Marília Scarabello, Sem título [Brasil], 2020 – 2021. Fotografias digitais impressas em papel algodão. Dimensões variáveis. Trabalho em Processo. Acervo da artista. Disponível em: https://www.mariliascarabello.com.br/
Não me parece um mero acaso que essa barra de sabão seja proveniente, justamente, daquela famosa pharmácia oitocentista que ficava na Rua Direita 14/16, no Centro do Rio de Janeiro, hoje rua Primeiro de Março, a apenas uma quadra de distância do Paço Imperial: lugar do qual a Princesa Isabel – assim teria lhe dito mordazmente o Barão do Cotegipe – “redimiu uma raça, mas perdeu o trono”. Profético ou não, o fato é que do Cotegipe estava, na verdade, mais interessado nos impactos pessoais em seus próprios latifúndios diante do anúncio irônico do fim da escravização das pessoas negras no país. E digo ‘irônico’ porque a suposta redenção da abolição encerrou, em certa medida, a feição violenta e criminosa por trás da atrasada base econômica brasileira no século XIX sem, contudo, ter assegurado às pessoas negras ainda ontem escravizadas a garantia de seus direitos e sem ter reconhecido, nessa ocasião, uma oportunidade crucial para o aperfeiçoamento daquela ideologia liberal que se havia importado de além-mar. Do anúncio da abolição, a uma quadra da conhecida botica “da família Imperial brasileira”, resta ainda a ideia vaga de uma igualdade brasileira pro forma diante de uma cidadania inconclusa (Schcwartz & Starling, 2018, p. 14) que, ainda hoje, estrutura sob novas roupagens a nossa nação mediante os maiores privilégios e as maiores opressões. Enquanto a pequenina barra de sabão derrete e se vai pelo ralo, esse processo metaforiza não apenas mais um dos capítulos sobre ruína da institucionalidade brasileira desde 2020, com o advento de seu mais atroz Presidente contemporâneo, mas também, e sobretudo, a ideia de que quanto mais tentarmos ‘limpar’ a nossa história de seu passado vergonhoso, mais perderemos a ideia de um Brasil enquanto nação na qual a democracia deve aprimorada e na qual esse passado precisa ser reconhecido e elaborado coletivamente. Uma utopia? Por certo. Mas existem sujeiras indeléveis em nossa história com as quais precisaremos nos acostumar. E o risco de seu esquecimento é o de, mais uma vez, acompanharmos ao vivo a nação indo literalmente pelo ralo da história sem que tenhamos nenhuma outra escapatória, nem mesmo a utopia.
Também é preciso falar do trabalho de Marina Camargo, chamado Brasil. Extrativismo. Trata-se de um vídeo em que vemos a artista apagando diligentemente um mapa do Brasil, tirado de um atlas escolar, até que as diferentes regiões com suas cores características, sejam submetidas ao apagamento pela borracha e, assim, restem desbotadas. O trabalho de apagamento é inteiramente registrado pelo vídeo, até que o resultado do processo seja o mesmo que o título do trabalho: equacionando assim ação, resultado intencionado e nome da obra.
Marina Camargo, Brasil. Extrativismo, 2022. Fotografia, 65 x 60 cm. Still de vídeo de mesmo nome, 2017. Cores. 10:14. Acervo da artista. Disponível em: https://www.marinacamargo.com/portfolio/brasil-extrativismo/
Embora a ação de apagar com uma borracha uma imagem previamente existente e que não foi produzida pelo artista que realiza o apagamento já encontre seus ecos historiográficos em 1953, quando Robert Rauschenberg apagou diligentemente um desenho de Willem de Kooning, a precedência rauschenberguiana permite que Camargo desloque para outro contexto a dimensão conceitual por trás desse apagamento. Na medida em que Rauschenberg apagou o desenho de um dos nomes mais importantes do expressionismo abstrato – isto é, a arte da vez no contexto estadunidense dos anos 50 – e nos apresentou o resultado desse apagamento enquadrado e indicado por uma pequena plaquinha, então ele também operou um movimento bascular no horizonte das visualidades: enquanto, por um lado, o apagamento soçobra a imagem pronta e o desenho (conceito artístico importante desde, pelo menos, o Renascimento), ele também faz emergir, por outro lado, o reconhecimento da arte como um resultado, o resultado de uma ação humana realizada por mãos humanas sob esse novo e inquietante suporte. Na medida em que a prerrogativa estetizante do desenho e da composição planar como essência da arte visual foi apagada, então se insinuou através do apagamento efetuado por Rauschenberg a dimensão de uma atividade-arte, ou pensamento-arte, da qual o papel borrado é apenas um resto, um rastro – mero indício da ação artística, da intencionalidade humana e do projeto por trás da compreensão da agência dentro de um contexto e uma situação específicas.
Trazer aquele gesto de um apagamento realizado pelas mãos humanas para o contexto da representação geográfica do Brasil – que terá, certamente, algo a ver com sua identidade – e designá-lo de modo bastante apropriado como um ‘extrativismo’, significa, parece-me, sugerir a possibilidade de uma refundação simbólica dessa nação. Em paralelismo sugestivo, a ação artística registrada em vídeo permite mostrar que o núcleo dessa identidade brasileira não se consolidou senão também por meio da ação humana: da destruição e da barbárie. Se, por um lado, essa violência residual está documentada desde a fundação e nos permite narrar com fidelidade o extermínio indígena e a subsequente supressão de suas formas de vida, então, por outro lado, ela segue mostrando a sua atual ubiquidade. Onde? No extrativismo ilegal, na grilagem, no latifúndio contemporâneo para o gado, na devastação do meio ambiente, no extermínio político de quem o defende, na opressão social sutil ou violenta, na privatização dos recursos nacionais. Mas, malgrado todas essas coisas existam em suas peculiares vilezas, a ideia de Brasil – acima de tudo e de todos – segue forte e pulsante em nosso imaginário.
Assim, apagar uma imagem é também gerar uma ocasião para que, da destruição, surja algo novo. Lembremos aqui, por exemplo, da edulcorada e muito conhecida pintura de Victor Meirelles, de 1861, que estampa nossos livros escolares de história e cuja imagem representa a celebração da primeira missa no Brasil. Ao redor do oficiosa liturgia cristã e diante de uma tosca e improvisada cruz de madeira, organizam-se no espaço pictórico não só os europeus, mas, sobretudo, os indígenas, que ocupam praticamente todas as bordas do quadro; sendo equacionados, na típica mentalidade oitocentista, à natureza e aos muitos motivos edênicos de uma terra alvissareira. Há, por trás dessa famosa imagem, toda a força de uma sugestão imaginária que, vinculando-se ao cerne mítico de uma fundação nacional como encontro pacífico das raças, subverte, esconde e permite resolver, no registro imaginário, toda e qualquer contradição diante da realidade histórica daquilo que foi, na verdade, um encontro violento, marcado pelo assassinato e pela sanha extrativista.
Camargo, em seu trabalho, extraí um Brasil do Brasil. Ela tira da imagem diagramática que é paradigma de uma união e de uma hegemonia (pois fazer com que vários pontos se encontrem através de uma linha, costurando-os e criando uma área, também é produzir uma unidade, uma identidade, um proto-conceito, pois há aí um conjunto que agrupa certas coisas e excluí outras) a ideia de um Brasil que sob sua conhecida geografia é, na verdade, um conjunto heteróclito de intervalos, borrões, vazios e apagamentos. Do seu trabalho artístico, em Brasil. Extrativismo, emerge a oportunidade de repensarmos o Brasil como território unificado e como identidade assegurada, tanto geográfica, quanto historicamente.
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Talvez Viveiros de Castro tenha mesmo razão quando afirma que a identidade brasileira está dada, justamente, na dimensão de uma exceção intrínseca, pois é uma “noção-fantasma”. Fantasmagórica: uma das muitas formas pelas quais o recalcado cumpre o seu invariável retorno. Ela não existe de fato, tendo, assim, apenas uma existência intencional, imaginária, discursiva e ideológica: “A identidade brasileira não é uma noção descritiva, mas uma noção normativa. Não é um fato, mas um valor; um valor gestado historicamente em certas esferas de poder e imposto com violência, sutil ou brutal, sobre povos, comunidades e pessoas vinculadas à própria revelia a um certo sujeito de direito público internacional, o Estado-Nação chamado Brasil” (Viveiros de Castro, 2022, p. 1)