- Alguns dias demoram a se abrir. Uma quase chuva enverniza a sacada, mas não se deixa perceber no ar. Havia manhãs assim na praia da infância, a esperança de não ter de ir à areia, nem ter a sunga cheia de areia nos fundilhos.
- Curiosa é a certeza da memória sobre as casas em que vivemos. De olhos fechados somos capazes de percorrê-las com a qualidade dos mais modernos programas de arquitetura.
- Pelos vãos horizontais da veneziana da sala, vejo a grama brilhante para além das pedras claras da varanda e sei que meu avô não nos obrigará a ir ao mar. Me acomodo nas almofadas junto à parede, de onde se pode enxergar a cozinha escura, e o pequeno umbral que dá acesso aos quartos e ao banheiro.
- Percorrer essas casas é também encontrar nossos mortos, tantas coisas que o tempo tomou e nunca devolveu.
- Nas oficinas de escrita pessoal, costumo desconfiar das lembranças de fatos vividos na primeira infância. Não desconfio da memória. Desconfio das mitologias familiares, em que acabamos crendo, que fazem de um o sério, de outro o bagunceiro, daquela a precoce, de outra a sensata. Mitologias amparadas por fotos, anedotas, miragens convenientes. E esquecimentos.
- Os lugares têm um poder muito maior de permanência. Às vezes, como agora, ao voltar-me para a janela, tenho o vislumbre das araucárias de Canela, do paredão cinza do fosso de luz em Porto Alegre, imagens que me acompanhavam na escrita, que talvez até a influenciassem, como também a falta de café pode alterar o sabor das palavras.
- Memória dos fatos, quem me as dera com a firmeza de louça do bidê que de crianças imaginávamos servir para lavar os pés. Das almofadas da sala era preciso espichar muito o pescoço para vê-lo.
- Os mesmos e envelhecidos tendões e músculos que espicho em direção à rua. Segue a pátina de água na sacada, mais cintilante porque o cinza do céu tem um tom mais de fumaça do que de asfalto.
- Na mitologia familiar eu era o educado, o primeiro dos irmãos, o responsável. Talvez por isso lembre pouco das minhas malcriações, das insuflar insurgências nos mais novos, dos compromissos que defraudei.
- Não dará praia, me recosto na almofada. A mitologia diz que aos meus oito anos apanho um livro. Não pode ser. Prefiro a verossimilhança de assistir a um desenho animado.
Foto da Capa: Freepik
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