Perfeitinha 1
Acorda, agradece, se espreguiça. Senta na cama, respira fundo e fecha os olhos. Dois minutinhos de meditação. Abre a janela e saúda o dia. Se tem sol, ótimo, se não, tá bem também. A natureza sabe o que faz. Lava o rosto, raspa a língua, borrifa água micelar. Sérum, hidratante para a área dos olhos, outro para o rosto. Yoga facial. Protetor solar, protetor labial. Ela fez doze horas de jejum e dormiu nove. Acordou leve. Anotou os sonhos para analisar depois. Vai para a cozinha, toma um copo de água morna com limão. Enquanto espera dez minutos para abrir a janela alimentar, faz a prática diária das asanas. Café da manhã com leite vegetal, pão com sementes, frutas e mexido de tofú. Em uma bandejinha tem todos os frascos de suplementos bem-organizados. Ainda são oito horas e o dia vai começar agora. Radiante.
Perfeitinha 2
Ela acorda, faz amor com o marido. Toma uma ducha gelada, faz “oil pulling” e “vaccum abdominal “. Copão de água hidrogenada. Na frente do espelho experimenta a roupinha nova que vai usar na academia. Dá uma viradinha e aquela olhadela no bumbum só pra ter certeza que está tudo em cima. Cabelo preso em um rabo de cavalo impecável. Protetor solar sim, mas com fator baixo pra dar espaço para o bronze saudável. Sai pra dar uma corridinha em jejum. Volta endorfinada e com cara de felicidade. Enxuga o suor na toalhinha impecavelmente branca e prepara aquele “batidão” com frutas de baixo índice glicêmico. Tapioca com ovo pra acompanhar. Manteiga de amendoim. Creatina, whey protein, ômega 3 e curcumina. Senta no computador para terminar de escrever o livro online com os melhores exercícios para definir o corpo e as com receitas superfáceis para turbinar seu treino. Bora!
Perfeitinha 3
Não é ela, são eles. Acordam juntos, despertos pelo raio de sol dourado que entrou pela fresta da cortina. Roupão branco pra ele e pra ela. Café da manhã posto em uma mesa daquelas de cena de filme. Frutas lindas, louça impecável. Café fumegante, croissant com geleia. Usa o tablet para ler as notícias e acompanhar a variação do mercado. Casal unido, prosperidade nos negócios. Discutem a agenda do dia. Ela tem duas reuniões pela manhã e três à tarde, mas estrategicamente cronometradas para não interferir no horário do treino com o personal ao final do dia.
Terninho, bolsa e sapatos de marca. Beijinho de despedida, cada um segue no seu carro de luxo. Minutos depois, uma foto no Instagram com a legenda: meu escritório hoje. Ela trabalha de qualquer lugar e sempre com uma vista incrível. Liberdade conquistada com o investimento certo em projetos de alta rentabilidade e networking de peso.
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Nessa maluquice das redes sociais, onde cada conquista é cuidadosamente exibida e cada falha meticulosamente ocultada, está em marcha a criação de um superexército de pessoas perfeitas. E nós, perfeitamente imperfeitas, somos minoria. Pelo menos é assim que me sinto.
Não bastasse a pressão social, que sempre enfrentamos “offline” para alcançar a inalcançável perfeição em tudo, sobrecarregadas por jornadas duplas ou triplas, agora temos modelos de perfeição ainda mais cruéis.
Quantas vezes você foi perfeita na vida? Não precisa passar adiante só porque sentiu um certo mal-estar com essa pergunta. Eu, por exemplo, estou no grupo das imperfeitas, ou me valendo da definição da música dos Raimundos que gosto mais, sou do grupo das mulheres de fases, complicadas e (im)perfeitinhas. Sabe o quê? Graças a Deus! Não é fácil fugir dessa armadilha de contemplação de vidas perfeitas. O perfeccionismo das redes não estabelece padrões altos, ele estabelece padrões irreais. Esse é o grande problema, e a gente que lute para não sucumbir ao desejo de ser perfeita também.
Enquanto os principais filósofos como Platão, Aristóteles e Kant têm perspectivas variadas sobre a perfeição, a filosofia dos filósofos das redes são baseadas no “eu quero, eu consigo”, “se eu consegui, você consegue também” e dá-lhe vender cursos e mentorias. Eles movimentam milhões.
Não estou dizendo que não existam pessoas boas e aprendizados de qualidade neste ambiente das redes. Tem gente maravilhosa fazendo coisas incríveis. Porém, a turma da perfeição me tira do sério. Onde vamos parar eu não sei, mas confesso que estou um pouco de saco cheio disso tudo. Perfeitinha mesmo só a bailarina do Chico Buarque e olha que nós não vimos os pés dela! Presta atenção nessa letra.
Ciranda da Bailarina
Chico Buarque
Procurando bem
Todo mundo tem pereba
Marca de bexiga ou vacina
E tem piriri, tem lombriga, tem ameba
Só a bailarina que não tem
E não tem coceira, ‘berruga nem frieira
Nem falta de maneira, ela não tem
Futucando bem
Todo mundo tem piolho
Ou tem cheiro de creolina
Todo mundo tem
Um irmão meio zarolho
Só a bailarina que não tem
Nem unha encardida
Nem dente com comida
Nem casca de ferida, ela não tem
Não livra ninguém
Todo mundo tem remela
Quando acorda às seis da matina
Teve escarlatina
Ou tem febre amarela
Só a bailarina que não tem
Medo de subir, gente
Medo de cair, gente
Medo de vertigem
Quem não tem?
Confessando bem
Todo mundo faz pecado
Logo assim que a missa termina
Todo mundo tem
Um primeiro namorado
Só a bailarina que não tem
Sujo atrás da orelha
Bigode de groselha
Calcinha um pouco velha, ela não tem
O padre também
Pode até ficar vermelho
Se o vento levanta a batina
Reparando bem
Todo mundo tem pentelho
Só a bailarina que não tem
Sala sem mobília
Goteira na vasilha
Problema na família
Quem não tem?
Procurando bem
Todo mundo tem
Procurando bem
Foto da Capa: Freepik
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