Pelo às vezes ignóbil senso comum, o politicamente correto é chato e atrapalha o cotidiano ao propor pautas sociais, implorar pela preservação do planeta, defender a diversidade, achar que a ciência é coisa séria e, veja só, ter certeza de que a Terra é redonda e o Rei Pelé foi campeão mundial interclubes. Ora, pois. Vocês já devem ter percebido que ser politicamente correto se tornou politicamente incorreto num mundo alucinado e, muito em especial, num país em que milhões de transtornados aderem à personalização da grosseria, da ignorância e da maldade, a estas alturas com a pança de fora, palitando os dentes e esperando a hora pra entrevista de admissão na Disney – sim, essa personalização da grosseria, da ignorância e da maldade está desempregada (ufa!), tentando uma vaga de vilão em Orlando (o currículo é vasto, acho que rola). Mas, enfim, esses transtornados a que me refiro são capazes de cantar o hino nacional prum pneu em nome do possível novo João Bafo de Onça. Vão lotar os cinemas, fazer muito “uhu” e jogar pipocas uns nos outros.
Penso no raciocínio dessa turma. Basta pôr os neurônios pra funcionar (por favor, faça isso, é urgente…), e o cara constata com alguma facilidade: se a porra do “Mercado” fosse ouvido e a Bolsa de Valores existisse em 1888, uau, ainda estaríamos esperando a abolição da escravatura, neste país em que ela já demorou tanto pra chegar (135 anos são ontem na História). “Como vai reagir o Mercado se libertarem esses negão que não servem nem pra reproduzir, mas que pelo menos trabalham (ui, que feio trabalhar!)?! Como ficam os proprietários, os empreendedores que investiram ao trazê-los da África e lhes darem casa e comida? Quer saber, teremos que ir embora desse país injusto! Onde já se viu? Ingratos!!! É o que falta esses vagabundos abolicionistas tirarem a nossa liberdade individual de escravizar!!!”.
Se você pôs os neurônios a funcionar, mesmo que eles estejam atrofiados pelo desuso, e continua achando que o politicamente correto é chato, as pautas são “mimimi”, o teto fiscal está acima de tudo e a Bolsa de Valores está acima de todos, creia no que vou dizer: sou irremediavelmente chato, sou chato pra caralho, sou insuportavelmente chato e, putz, me orgulho disso. Porque, sim, sou “incorretamente” politicamente correto, sou convicto da minha suposta chatice e vejo nela uma linda perseverança contra a estupidez, aquilo que costumamos chamar de “resistência” (Au! Au! Grrrr! Sugestivo nome pra cãozinho presidencial quando o novo chefe do governo substitui o João Bafo de Onça e fica com sua herança).
Digo mais: sou “pós-chato”. Tenho o hábito (possivelmente exasperante pra você) de procurar a suposta chatice onde ninguém a vê e de insistir que palavras e narrativas irresponsáveis são perniciosas. Exemplos: jamais defino uma pessoa desprovida de valores morais como “anã” e passei a evitar me referir a veneradores de pneus e cercadores de quartéis pela liberdade como “loucos” (os doentes mentais não merecem ser equiparados a imbecis).
Lembro de certo ator global que se deu muito mal ao assediar colegas na emissora. Quando elas resolveram pôr a boca no mundo real, ele se desculpou dizendo que errou porque os valores hoje são outros e biriri. Tchê, seria bom perguntar pra ele o que teria sentido de alguém tivesse passado a mão na bunda da sua mãe nos anos 1960, 70, 80… acho que esse exercício forçado de empatia teria feito o cara concluir que aporrinhar as mulheres sempre foi uma boçalidade, uma truculência, uma estupidez, uma barbaridade que deveria ser inadmissível, assim como sempre foi uma barbaridade ter preconceito por cor de pele ou orientação sexual e, claro, depreciar a sagrada trajetória do maior jogador de todos os tempos.
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Ressalva: não sou assim porque visto o figurino de “bonzinho” pra “agradar a torcida”. Quando se faz necessário o contrário, sei ser bem “desagradável” aos olhos do tal “senso comum”, que, como eu disse lá em cima, pode ser muito ignóbil. Mas tenho a convicção que o mundo ficaria muito melhor se as pessoas aprendessem a respeitar umas às outras. Quero isso pra mim e pros meus filhos. E perseverarei, mesmo q você me chame de chato. Porque chatos são você, sua Terra plana, sua leviandade e a negação da História do Rei.
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Dito isso, Shabat shalom!