Ao ler a biografia do grande escritor judeu-austríaco Stefan Zweig, tem-se uma agradável surpresa. Quando Zweig começava sua brilhante carreira literária, levou um texto para ser incluído na revista vienense de literatura que, ao publicar textos de novatos, dava-lhes a chancela para seguir adiante, uma espécie de selo de qualidade. Zweig teve o texto aceito, e ali começou sua trajetória. E como era o nome do editor que avaliava os trabalhos para decidir sobre a eventual publicação? Vejam só, era Theodor Herzl!
Percebem? Zweig foi o autor do histórico ensaio “Brasil, país do futuro”. Herzl (foto da capa) é o pai do sionismo moderno, tão demonizado por narrativas contaminadas pelo racismo antissemita travestido de antissionismo. Ou seja, o escritor que projetava um Brasil do futuro começou sua trajetória chancelado pelo pai do sionismo político. Momento único, belo e emblemático. Traduz dois sentimentos paralelos e associados de pertencimento.
Fica aqui uma sequência de três elucidativas frases de Zweig, a começar por trecho do livro ”O mundo de ontem”, para traçar uma trajetória altamente simbólica: “Nós, que fomos acossados por todas as correntezas da vida; nós, arrancados de todas as raízes que nos seguravam; nós, que sempre recomeçamos onde somos impelidos para um fim; nós, vítimas e também servos fiéis de místicos poderes desconhecidos; nós, para quem o conforto se tornou lenda e a segurança um sonho infantil – em cada fibra do nosso corpo nós sentimos a tensão de um polo para o outro e o arrepio do eternamente novo. Cada hora de nossa vida esteve ligada ao destino do mundo.” E segue o conceito que ele fazia do Brasil, como “país do futuro”: “Considerando que o nosso velho mundo é, mais do que nunca, governado pela tentativa insana de criar pessoas racialmente puras, como cavalos e cães de corrida, ao longo dos séculos a nação brasileira tem sido construída sob o princípio de uma miscigenação livre e não filtrada, a equalização completa do preto e branco, marrom e amarelo.” E, para finalizar a síntese desse judeu tão emblemático, que deu cabo da própria vida ao saber do que ocorria na sua Europa, com o nazismo dizimando seu povo e queimando seus livros: (…) “imponho-me última obrigação: dar um carinhoso agradecimento a este maravilhoso país que é o Brasil, que me propiciou, a mim e a meu trabalho, tão gentil e hospitaleira guarida. A cada dia aprendi a amar este país mais e mais (…). Depois de 60 anos, são necessárias forças incomuns para começar tudo de novo. Aquelas que possuo foram exauridas nos longos anos de desamparadas peregrinações. Assim, em boa hora e conduta ereta, achei melhor concluir uma vida na qual o labor intelectual foi a mais pura alegria, e a liberdade pessoal o mais precioso bem sobre a Terra.”
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Dito isso, cabe um passeio pelos grupos juvenis sionistas, com sua riquíssima pluralidade. Trata-se de jovens que valorizam a etnicidade judaica e têm em comum a defesa da inquestionavelmente justa autodeterminação judaica no seu lar ancestral – porque sionismo é basicamente isso.
Os movimentos juvenis judaicos no Brasil se iniciaram em Porto Alegre por influência da forte comunidade argentina, cuja vizinhança foi determinante no caso específico do Dror, e pela triste bagagem trazida por imigrantes judeus que vieram das perseguições na Europa oriental antes da independência de Israel. De diferentes formações ideológicas, exercem destacada atividade educacional, passando a crianças e adolescentes as bases da ética judaica e a lógica do pertencimento. Os movimentos juvenis sionistas têm na essência a visão de Israel como porto seguro para os judeus, mas, paralelamente, os “madrichim” (orientadores) mostram aos seus “chanichim” a importância de serem conscientes de suas condições cidadã e judaica. São estimulados valores como amizade e honestidade. Mostra-se o que é uma minoria. Jovens ensinam jovens.
Mesmo os movimentos mais antigos tiveram hiatos de inatividade, coincidentemente durante o Estado Novo getulista (1937/1945) e a ditadura militar (1964/1985), regimes de cunho autoritário, com características emprestadas pelo fascismo.
Conheça esses movimentos que buscam a coesão de uma coletividade minoritária e muitas vezes incompreendida.
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Dror
Foi histórico o advento do movimento juvenil sionista-socialista Dror, criado por jovens judeus que participaram de encontro em Buenos Aires e tiveram intensa influência dos líderes argentinos. Era 5 de outubro de 1945, meses após o fim da Segunda Guerra Mundial e sob o sentimento de urgência para a independência de Israel. Evento marcante foi a presença em Porto Alegre, em 1946, do professor Isaac Haizman (que, sob patrocínio do Dror, falou sobre a continuidade do povo judeu no seu lar). Desse momento em diante, os participantes iam se multiplicando, atingindo as centenas e chegando a São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba. Em maio de 1950, cinco anos após o fim da Segunda Guerra, seminário da Lapa, em São Paulo, tornou-se marcante. Na década de 1960, o Dror passou a existir também em Recife e Salvador. Em 1981, houve a fusão dos já próximos movimentos Dror e Ichud Habonim, como era então conhecido em Porto Alegre. Para quem viveu a juventude judaica até o início dos anos 1980, era usual chamar o movimento de “Ichud”. A metamorfose de nomes ocorreu assim: o grupo foi fundado na capital gaúcha como Dror, mas passou a ser Ichud Habonim. Tinha paralelamente o paulistano chamado Dror, e ambos eram autônomos. De qualquer forma, havia afinidades essenciais entre movimentos de mesma linha ideológica sionista e socialista, com pequenas variações quanto à forma de conceber os kibutzim e até a polêmicas questões de dedicação à “tnuá” (o nome do movimento em hebraico) – pais imigrantes, de dura trajetória, recusavam-se a deixar os rebentos deixarem de lado por um período a formação profissional, por se doarem à causa, por mais justa que lhes parecesse. Houve Ichud Hanoar Hachalutzi, Ichud Habonim, Dror Habonim e, finalmente, o Habonim Dror.
Confuso? Nem tanto.
Afinal, a essência é sempre a mesma.
O Dror, sob qualquer nominação que tenha adotado, constitui-se de cláusulas pétreas: a importância de participar da criação do Estado judaico, educar as novas gerações, defender a legitimidade de Israel e, nesse lar nacional judaico, estabelecer um sistema de vida em que todos trabalhem de acordo com as suas possibilidades e ganhem de acordo com suas necessidades, com justiça social e liberdade.
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Habonim Dror, em hebraico, significa “construtores da liberdade” – havia dois movimentos de inspiração socialista que posteriormente apoiaram o Partido Trabalhista em Israel, o Dror (“andorinha” ou “liberdade”, fundado na Polônia, em 1915) e o Habonim (“os construtores”, fundado no Reino Unido, em 1929). E o Dror é exatamente isso. São jovens em permanente construção, sob valores judaicos pétreos, de solidariedade e liberdade. A base ideológica do Dror se assenta na expressão Tikun Olam (“conserto do mundo”, em hebraico), diante da convicção de que o mundo “está quebrado” e requer a busca da justiça e do igualitarismo.
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Dentro do modelo perseverante, de sionismo trabalhista e socialista, é marcante o modus operandi do Dror: o movimento tem sua própria sede e se mantém pelo próprio esforço, estimulando a sensação de pertencimento. Mais adiante, lendo sobre Aron David Gordon, você entenderá por que essa mentalidade é essencial no cotidiano do movimento.
Um antigo integrante do Dror contou a este autor, emocionado, sobre o dia em que despertou sobre a essência desse movimento sionista e socialista: foi no dia em que ele e os demais chanichim colocaram seu dinheiro numa caixinha, e dessa caixinha tiraram o que era suficiente para todos irem juntos ao Armazém Internacional (atual sorveteria Cronks). Cada uma das crianças comprava aquilo de que mais gostava com o dinheiro de todos.
Breve perfil dos dois idealizadores do Dror: Aron David Gordon, nascido na Rússia em 1856, fez aliá em 1904, aos 48 anos. Atuava em movimentos sionistas-socialistas e erigiu as bases do movimento que pregava a volta dos judeus a Israel e ao trabalho agrário. Acreditava que arar, plantar e colher são atos essenciais. Via no trabalho agrário o símbolo de mexer na terra e criar vínculos de pertencimento. Isso se entranhou no espírito do Dror, que preza o trabalho coletivo e a construção do movimento pelo trabalho dos seus integrantes. É um dos pais dos kibutzim, com suas sociedades coletivas, promovendo a igualdade entre homens e mulheres. Gordon se dividia entre trabalhar no campo e escrever suas impressões, em textos teóricos basilares sobre o socialismo sionista. Já Dov Ber Borochov, nascido na Ucrânia em 1881, foi o fundador da tese do proletariado judaico em Israel. Pela sua teoria, o povo judeu se estruturava numa pirâmide invertida, onde a parte mais larga estava no alto, representando comerciantes, profissionais liberais e gente ligada ao setor financeiro, enquanto o vértice estava embaixo, era o operariado. Borochov via isso como uma anomalia e pregava a inversão da pirâmide, com base operária para a construção de uma nação judaica livre, igualitária e socialista. Sua visão de socialismo é a origem dos movimentos sionistas de esquerda em geral. Mais adiante você verá seu nome vinculado também ao Hashomer Hatzair.
Seguem depoimentos de ícones históricos do Dror, retirados do livro “Fragmentos de Memórias”, cujo autor é Avraham Milgram, o Tito, coordenador do Yad Vashem, o Museu do Holocausto, em Jerusalém:
Oscar Zimmermann (Chico): “O movimento juvenil foi um fator preponderante na cristalização da personalidade cultural dos seus membros. (…) O Dror, no Brasil, formou-se nos anos pós-guerra. Para ser exato, em 5 de outubro de 1945, em Porto Alegre. Mas logo a direção nacional foi transferida para São Paulo. Devemos nos lembrar de que os eventos dessa gênese exigiriam um pano de fundo daquele ambiente. Da revelação trágica do Holocausto e das grandes esperanças do povo judeu querendo uma pátria, além de outros sonhos e anseios da redenção social, vivíamos um ambiente efervescente de discussões, de despertar de consciências, de busca de identidade.”
Paul Singer: “Eram idos de 1948 quando fui convidado a entrar no que na época era um movimento juvenil sionista-socialista. Foi pouco antes ou pouco depois que a partilha da Palestina foi aprovada pela ONU e se proclamou o Estado de Israel. Havia compreensível euforia entre os judeus de todo o mundo, misturada pela preocupação pelo que poderia resultar da guerra que o novo Estado travava com os vizinhos árabes”. (…) “O Dror era herdeiro de uma tradição política originada no início do século, a do Poalei Zion (partido sionista marxista). Mas ela tinha sido interrompida brutalmente pela guerra e pelo Holocausto. Naquela altura, estávamos politicamente ligados ao Mapai, o partido de Ben-Gurion e que governaria Israel nas primeiras décadas da sua existência. Era necessário reformular os princípios sionistas socialistas para a época contemporânea, e metemos a mão na tarefa com a chutzpá (sem-vergonhice) e a ingenuidade dos jovens. Faltava-nos formação, assim passamos a ler furiosamente”. (…) “Minha passagem pelo Dror foi um momento absolutamente decisivo em minha vida, posso dizer que sou o que sou em grande parte por aqueles quatro anos, dos 16 aos 20 anos, de 1948 a 1952”.
Há depoimentos de outros integrantes de destaque na vida pública brasileira, em especial na esquerda, como Bernardo Kucinski (que define o impasse israelo-palestino como “o espinho atravessado na garganta”), Alberto Dines (“O Dror foi a coisa mais importante que aconteceu na minha vida”) e Abrão Slavutzky (“Era minha segunda família”).
Em seu alentado e emotivo depoimento, Dines fala sobre a fundação do Dror no Rio de Janeiro, sempre lembrando suas origens gaúchas no Brasil: “O Dror de Porto Alegre foi fundado com a ajuda dos companheiros argentinos. Aliás, muitas entidades, iniciativas e ações do judaísmo brasileiro nasceram ou foram inspiradas pelo ishuv argentino. Porto Alegre, embora contasse com uma comunidade muito menor que a do Rio ou de São Paulo, contou sempre com o apoio e a inspiração da fortíssima e antiga comunidade portenha.” E há uma reminiscência curiosa de Dines, o cultuado jornalista que fez história na imprensa brasileira: “Em 1948, apareceram em minha casa dois jovens do Rio Grande do Sul: Efraim Bariach e Maurício Kersz. O pai de Bariach, emérito hebraísta, era professor da escola judaica em Porto Alegre e amigo do meu pai. Efraim e sua mãe vieram no mesmo navio em que vieram minha mãe e meu irmão, também Efraim. Os dois shelichim hospedaram-se em minha casa por um mês: vieram fundar o Dror no Rio. Como o meu pai era membro do Diretório Nacional do Poalei Tzion e eu já frequentava o núcleo inicial do Dror carioca, a escolha da minha casa foi natural”.
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Chazit Hanoar
Em meio a movimentos sionistas socialistas e revisionistas, surgiu um que se afirma “apartidário”: a Chazit Hanoar, cujos pilares estão definidos no seu site: “A Chazit Hanoar é um movimento juvenil judaico, sionista, educativo, apartidário e continental. Somos jovens judeus cujo objetivo principal é transmitir valores judaicos e sionistas a nossos chanichim, de forma divertida e descontraída. Desde cedo, no período em que a criança tende a desenvolver a sua individualidade e seu senso crítico, torna-se indispensável um esforço no sentido de estimular o amadurecimento de uma identidade judaica. O papel da família é essencial na formação do caráter do jovem judeu. Porém, além da orientação recebida em casa, a educação formal dada pela escola e a não formal, dada pela Chazit Hanoar, complementam-se de maneira efetiva.”
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Chazit Hanoar significa “frente juvenil”. E o nome condiz com as atividades de conscientização judaica e recreações educativas. A ideia de transmitir identidade e valores judaicos foi um sucesso na comunidade. Transitando entre os grupos mais enraizados nas diferentes ideologias sionistas, a Chazit encontrou seu espaço próprio e teve boa adesão de chanichim, favorecida também por atuar no espaço físico do Colégio Israelita Brasileiro (CIB), ambiente conhecido pela maioria dos seus frequentadores. Isso não impediu que o movimento juvenil, eventualmente, se manifestasse em temas importantes inclusive para a comunidade ampla, mostrando em geral viés progressista _ e muitas vezes fazendo coro com os demais movimentos juvenis.
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Em janeiro de 1961, quatro integrantes do setor jovem da sinagoga Sibra, de 15 a 18 anos, foram enviados a um acampamento de férias dirigido pelo então recém-formado rabino norte-americano contratado pela Nueva Congregación Israelita (NCI), de Buenos Aires. O encontro ocorreu em Laguna de los Padres, Mar del Plata, Argentina. Compareceram mais de cem jovens sul-americanos que, assim, conheceram a Chazit e tiveram oportunidade de elaborar um conceito sobre movimento sionista que não priorizava a aliá (emigração para Israel) _ o movimento era especialmente forte no Uruguai, onde fora fundado em agosto de 1951, seis anos após o fim da Segunda Guerra Mundial (era expressiva a presença de alemães na comunidade judaica uruguaia, e foram eles que ergueram a Chazit).
Os jovens gaúchos pioneiros eram Cláudio Wolff, Ênio Becker, Ruben Oliven e Sérgio Coster, que, poucos meses depois da viagem, fundaram o movimento juvenil apartidário em Porto Alegre. A Sibra, então, foi a primeira sede da Chazit, que depois passou a funcionar nas dependências do Colégio Israelita Brasileiro. Nas férias escolares do inverno de 1961, Sérgio Coster e Cláudio Wolff, que haviam ido à Argentina, e mais João Ernesto (Jonny) Heineberg, que passara um tempo em Israel, compareceram ao Seminário Nacional da Chazit, em Campos do Jordão, São Paulo, organizado pela CIP – Congregação Israelita Paulista. E assim se consolidou o movimento. Outro seminário continental se realizou em Teresópolis (RJ) no verão de 1962. Pela Chazit de Porto Alegre compareceram Gladis Wiener, Imi Rojewsky, Irene Herz, Renée Berg e Rose Goldshmitt. Integrando o corpo de dirigentes do seminário, estiveram José Blumenthal, de Porto Alegre, e Ruth Josefsohn, do Rio de Janeiro, que haviam frequentado o programa de um ano do Curso de Formação de Monitores, Machon le Madrichim, em Israel.
Então chegou a vez de a Chazit gaúcha ser a anfitriã.
Relata o site da Chazit, a respeito do evento que organizou: “Em julho de 1962, coube ao nosso movimento, liderado por Jonny Heineberg, preparar o seminário nacional. Transcorreu no Hotel Schoeller, em Linha Imperial, então distrito de Nova Petrópolis (RS). Algumas dezenas de jovens, principalmente de Rio, São Paulo e Porto Alegre, tiveram um caloroso encontro em meio às geadas de nossa terra. O sheliach Moshé Amiran, natural do Chile, esteve em Porto Alegre em dezembro de 1962, reforçando o movimento através de atividades, principalmente junto aos madrichim. Suas habilidades como mímico encantaram os jovens e a comunidade. Por esse motivo, foi repetido em maio de 1963”.
No final dos anos 1960, constatou-se pouca mobilização dos jovens, e a Chazit, como dizem seus integrantes, “hibernou”. O resgate ocorreu só em 1981: Davi Windholz chegou de Israel para a instituição Unificada, de Porto Alegre, e se reuniu com filhos adolescentes de sócios da Sibra, como as irmãs Adriana e Marcela Caspary, Silvana Thalheimer e Tânia Wolff. Algumas, naquele mesmo ano, assistiram ao Seminário Nacional da Chazit em Duque de Caixas (RJ). E, entre dezembro de 1981 e fevereiro de 1982, essas quatro jovens, mais Suzane Silbert, também de Porto Alegre, fizeram parte do grupo que foi ao programa Tapuz (Colheita de Laranja), em Israel. E tudo recomeçou. Questionado sobre o diferencial de a Chazit transitar à margem de tendências políticas, Cláudio Wolff enfatiza: “Era e é apartidária.” De certa forma, o movimento surge como terceira via no riquíssimo e plural ambiente de entidades juvenis sionistas. Também aparece como mais um tijolinho nessa criação espontânea de uma educação não formal.
Presidente da mantenedora do Colégio Israelita Brasileiro (CIB) entre 1982 a 1988, José Blumenthal proporcionou o acesso da Chazit à sede da escola, em suas atividades de sábados à tarde. Esse acolhimento do CIB foi fator decisivo de sucesso na reestruturação da Chazit, emprestando-lhe abrangência em relação a toda coletividade porto-alegrense, na medida em que o principal momento no cotidiano do movimento (as atividades aos sábados) ocorria dentro da escola judaica de Porto Alegre.
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Betar
Fundado já em 1923 por Vladimir “Zeev” Jabotinsky, em Riga (Letônia), o Betar chegou ao Brasil na entrada da terceira década da imigração judaica, antes ainda de a Alemanha se tornar nazista e, também, de a ditadura do Estado Novo proscrever os grupos sionistas. O teor do seu manifesto é a defesa da Israel bíblica. O movimento guarda com carinho carta do próprio Jabotinsky, escrita à mão em hebraico e enviada para Porto Alegre em 31 de maio de 1931, congratulando-se pela criação da sede na capital gaúcha e agradecendo o convite para estar presente. Diz a carta, que é uma relíquia:
“Paris, 31/5/1931
Ao Mefaked da sede Betarí
Em Porto Alegre, Brasil
Prezado senhor,
Eu agradeço ao senhor pelo seu convite para a abertura da sede do Betar em Porto Alegre. Transmita minhas bênçãos a todos os membros. Desejo para a sede êxito e triunfo.
Tel Chai!
Zeev Jabotinsky”
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Sobre o ucraniano Jabotinsky, o jornalista e historiador argentino Roberto Bardini o define como “um dos líderes sionistas mais brilhantes e fanáticos da história”, “crítico do socialismo” e, por isso, contraposto aos grupos judaicos de perfil socialista e social-democrata (Hashomer Hatzair e Dror).
“Nascido em Odessa em 1880 e falecido em Nova Iorque, em 1940”, “jornalista, escritor, poeta, orador, poliglota, soldado e dirigente político”, conforme Bardini, Jabotinsky era “influenciado pelo ‘O Estado Judeu’, livro de Theodor Herzl publicado em 1896 (…)”. “Adotou o sionismo na sua expressão mais extremista e promovia uma sociedade de ‘homens obedientes até a morte’. Se opôs ao socialismo e ao movimento operário judeu. Fundou o grupo Betar (…). Menahem Begin e Itschak Shamir, que chegariam a ser primeiros-ministros de Israel, foram na juventude seguidores de Jabotinsky.” Conhecido pelo nacionalismo e pela defesa firme da integridade, era intelectual sofisticado a ponto de ter traduzido “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri, para o hebraico.
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É essencial, para entendermos o Betar, contar quem foi o outro inspirador do movimento: Joseph Vladimirovich Trumpeldor, curiosamente sionista com convicções socialistas. Trumpeldor (1880/1920), reverenciado pelo próprio Jabotinsky, foi um dos primeiros ativistas sionistas que ajudaram a levar imigrantes judeus para a região da Palestina, a antiga Judeia. Trumpeldor morreu defendendo o assentamento judaico de Tel Hai em 1920 e posteriormente se tornou um herói nacional sionista. Uma frase sua, ao morrer, é cantada como lema: “Não importa. É bom morrer por nossa terra.”
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“Betar” é sigla em hebraico que significa “pacto da juventude hebraica com Joseph Trumpeldor”. Justa homenagem a um grande herói.
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“Quando em 1914 rebentou a Primeira Guerra Mundial, Jabotinsky criou uma legião judaica a serviço dos aliados. Pretendia libertar a Palestina do domínio turco-otomano e, depois, conseguir um lugar nas negociações de paz, com direito a exigir o estabelecimento de um Estado judeu. Ao finalizar a guerra, em 1918, Jabotinsky estabeleceu-se com a sua esposa e filhos na Palestina, já então sob controle da Inglaterra. Em 1920, o descontentamento árabe pelos festejos do Pessach derivou em violentos protestos de rua. Jabotinsky organizou uma represália, e não lhe tremeu a mão na hora de apertar o gatilho. Os britânicos prenderam-no, e foi julgado por posse ilegal de armas. Sentenciado a 15 anos de prisão, foi posto em liberdade alguns meses mais tarde. Quando, em 1923, os ingleses adjudicaram terras na Transjordânia aos palestinos, Jabotinsky propôs uma ‘revisão’ das relações entre o movimento sionista e o Reino Unido”, conta Bardini _ por isso, o sionismo do Betar é “revisionista”.
Quando enviou a carta para o Betar de Porto Alegre, Jabotinsky estava banido da Palestina pelos britânicos, que ainda exerciam seu mandato na região onde em 1948 se instalaria Israel.
No livro “Mundo judío”, Daniel Muchnik define Jabotinsky assim: “Foi um dos líderes sionistas mais brilhantes e fanáticos da história. Ninguém lhe foi indiferente (…).
Nos anos 1930, houve momentos de aproximações e de distanciamentos entre os sionistas revisionistas (os seguidores de Jabotinsky) e os sionistas socialistas ou trabalhistas.
Bardini registra: “Em 1936, uma comissão britânica recomendou a partilha da Palestina entre Estados árabe e judeu. Jabotinsky rejeitou a proposta e ordenou incrementar ataques contra ingleses e árabes. No ano seguinte, transformou-se no comandante do Irgun, grupo armado revisionista.
Em “Israel, Likud e o sonho sionista”, Benoît Ducarme diz: “A primeira etapa da evolução do ‘revisionismo’ sionista é a da constituição da Nova Organização Sionista, fundada em 1935, de cujo seio surgiram dois grupos armados que não se diferiam politicamente: o Irgun (1931/1948) e, numa dissidência deste, o Stern (ou Lehi), que surgiu em 1940 e também terminou com a independência israelense, em 1948. A diferença entre os dois estava na forma de combater a presença britânica (…). Quando o Irgun optou pela deposição de armas e abertura de diálogo, surgiu o Lehi (Stern), organização fundada por Abraão Stern.”
A respeito desses grupos armados anteriores à independência de Israel, é importante fazer referência à Haganá (1920/1948), o primeiro deles, da qual o Irgun era uma dissidência. É a partir da Haganá que, em 1948, criaram-se as forças armadas israelenses (Israel Defense Forces, “forças de defesa de Israel”).
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Em 4 de agosto de 1940, em visita a acampamento (machané) do Betar nos arredores de Nova Iorque, Jabotinsky morreu de infarto. Faltava pouco para completar 60 anos. Seus bens pessoais eram um cachimbo e quatro dólares. Cinco anos antes, tinha redigido seu testamento. Pedia que seu cadáver fosse trasladado a Israel “só por ordem do governo judeu a ser estabelecido”. Em 1965, seus restos foram sepultados no Monte Herzl, em Jerusalém. O legado de Jabotinsky se entranhou no sionismo betari. A “teoria da muralha de ferro” preconiza a preservação da identidade judaica em Israel e a fortificação do Estado judeu. Certa vez, o líder do Betar escreveu sobre a essência do seu pensamento: “Não se vivem 4 mil anos em melancolia. Antes de tudo, somos um povo forte, muito forte… isso é o principal; é o que as crianças devem aprender imediatamente e não esquecer jamais”.
O Betar tem uma lista de 10 princípios, baseados na “plataforma ideológica de Jabotinsky”. Os tópicos que devem ser lidos ao sabor do contexto de perseguições e da necessidade de afirmação dos judeus, antes da independência de Israel. Há claro sentido de proteção, preservação e ajuda mútua. Chama a atenção a ênfase em afirmar a condição judaica minoritária em meio ao segregacionismo europeu. Em resumo, são os seguintes os pilares da filosofia nacionalista batari:
- O Betar tem por missão “criar o tipo de judeu que o povo necessita para a reconstrução do Estado (de Israel). (…) ”.
- O Estado judeu é a premissa do Betar, onde o povo judeu desenvolva suas tradições, religião, cultura, idioma. Tendo Israel, deve-se defender seus valores, grandeza e integridade.
- Para que o Estado judeu seja realmente judeu, deve ter maioria judaica, pois, não sendo assim, não seria prevaleceria a vontade judaica, e seríamos uma minoria exposta à discriminação e privada de seus direitos.
- O Betar considera o hebraico o único e eterno idioma nacional do povo judeu. Um idioma nacional é aquele que nasceu para o povo, que o acompanha ao largo da sua história. O hebraico deve ser empregado em todas as manifestações da vida, e nos países da diáspora deve ser pelo menos o idioma das instituições judaicas (o hebraico unificou a população israelense, que, do contrário, ficaria dividida entre o iídiche asquenazi e o ladino sefaradi).
- O “monismo” (em hebraico, “chad-nes”) é a ideologia betari de abandonar o que obstrua ou retarde a aplicação dos seus princípios, deixando de lado interesses de grupos, individuais ou de classes.
- O Betar rejeita a luta de classes e preconiza a harmonia entre empregado e empregador. Acredita que, dessa forma, evitam-se conflitos sociais entre judeus, o que acabaria por criar divisões perigosas à união nacional e dificultaria o desenvolvimento do Estado judeu. O movimento estabelece, inclusive, leis sociais e a preservação de cinco elementos: educação, moradia, alimentação, vestimenta e assistência médica.
- O respeito ao “legionismo”: que toda a juventude judaica esteja sempre apta a defender seu povo quando necessário. O “legionismo” se fundamenta na convicção de que a única forma de fazer valer os direitos judaicos é o judeu se defender e não se deixar pisotear.
- Por se definir um movimento “voluntário e democrático”, o Betar exige disciplina, o que facilita qualquer tipo de atividade. Pretende assemelhar-se a uma orquestra, que, para ser harmônica, precisa ter um só diretor, devendo todos responder a ele.
- Obediência à palavra Hadar, que significa cavalheirismo, orgulho, educação, bondade dignidade, fidelidade e outras qualidades que um homem íntegro deve ter. Talvez a palavra “moral” seja a mais próxima para uma definição. O Betar aspira fazer do judeu um homem “hadárico”, que sirva de exemplo para a humanidade.
- Os membros do Betar devem estar aptos e dispostos a responder a quaisquer chamadas de Israel. O betari deve se dedicar sobretudo à sustentação do Estado judeu.
Diante dos pontos acima, há uma ressalva feita pelo Betar que condiz com uma Israel atual, consolidada e pujante: “A ideologia betari não é estática, é dinâmica, porque, quando mudam as circunstâncias, ela se adapta”.
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Conta a historiadora Ieda Gutfreind: “A partir dos anos 1920, visitantes vinculados ao sionismo internacional chegam ao RS, especialmente Porto Alegre, movimento que (…) diminuiu sensivelmente durante o Estado Novo, retornando com grande ímpeto após seu término.”
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Outro orgulho do Betar em Porto Alegre: no bairro Jardim Itu-Sabará, há uma rua Zeev Jabotinsky, que faz esquina com a Rua Menachen Begin. Percebam: há uma esquina betarí em plena Porto Alegre.
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No seu site, o Betar traz trecho do livro “O Estado judeu”, de Theodor Herzl, em que dizia, em 1896: “Ninguém é bastante poderoso ou bastante rico para deslocar um povo de um lugar de habitação e transferi-lo para outro. Só uma ideia pode realizar essa grande tarefa. A ideia do Estado Judeu tem, sem dúvida, semelhante poder. Na noite de sua história (de 4 mil anos), os judeus não cessaram de sonhar com este sonho real: ‘No próximo ano, em Jerusalém!’ Tal é a nossa velha palavra. Trata-se de demonstrar que o sonho pode se transformar em pensamento luminoso.” O Betar acrescenta: “Hoje estamos aqui, com nossa Eretz Israel forte, inovando, ajudando e servindo de exemplo para muitos países ao redor do mundo, e assim continuará sendo, e podemos ter certeza de que, quando precisarmos de abrigo, temos para onde ir, e seremos recebidos por corações fervorosos na terra do povo judeu (…). Se Israel precisar de uma engrenagem, eu serei essa engrenagem”.
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Hashomer Hatzair
Havia também o movimento tido como mais à esquerda, o Hashomer Hatzair, cujas origens também vêm da década de 1920, a partir de quatro kibutzim já estabelecidos onde hoje é Israel. A visão desse movimento é de busca da igualdade entre árabes e judeus e de convivência pacífica entre os dois povos _ sob a solução de dois Estados para dois povos, vista pelo Hashomer como a única justa e apropriada para ambos.
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O nome Hashomer Hatzair significa “jovem guardião”. Percebendo quais são suas origens e referências, com o Levante do Gueto de Varsóvia tendo forte influência, fica claro que o nome adotado é adequado ao seu perfil.
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O inspirador do movimento era Mordechai Anielewicz, líder da lendária resistência judaica contra o exército nazista no Gueto de Varsóvia, em 1943 _ o Levante do Gueto de Varsóvia, exemplo universal de luta e perseverança, foi o momento em que os judeus mostraram indignação, irresignação e reação. Anielewicz e seus parceiros simbolizam um sionismo que busca a justiça e defende Israel de forma resoluta.
O Hashomer Hatzair chegou ao Brasil na década de 1940, em São Paulo. Expandiu-se para Rio de Janeiro e Florianópolis e teve grupos em Porto Alegre, Brasília, Recife e Manaus. Em Porto Alegre, persistiu até o final dos anos 1960, quando, em meio ao regime militar, realizava suas reuniões nas casas dos madrichim, de forma clandestina.
A referência teórica do Hashomer Hatzair é Ber Borochov, que definia Israel como a solução para os judeus. Seria a “emancipação” e a “autolibertação” judaica. Na sua visão, sionismo e socialismo são movimentos interligados.
Hashomer era um grupo criado para defesa judaica, e o Tzerei Tzion era um grupo de jovens intelectuais, ambos sionistas. Ao se juntarem, adotaram o nome de Hashomer Hatzair. O sionismo vem da crença de que todas as pessoas merecem o direito da autorrealização e que a terra natal judaica deve ser um centro onde sua cultura possa florescer, em um contexto socialista e plural, em que haja justiça social para todos.
Durante a Segunda Guerra Mundial, o Hashomer enfrentou o nazismo atuando pelo exército britânico. O ponto alto de sua luta, porém, deu-se no Levante do Gueto de Varsóvia, quando Anielewicz liderou a histórica e brava resistência durante 28 dias. Na guerra da independência de Israel, em 1948, o grupo também teve participação importante, lutando contra os egípcios e ajudando a assegurar a sobrevivência do Estado judeu. No Brasil, o Hashomer lutou pela redemocratização durante a ditadura militar (1964-1985), e alguns dos seus integrantes foram presos.
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Ao falarmos sobre movimentos juvenis sionistas, é importante lembrar a efêmera existência do Círculo Cultural Yavné, fundado em 1944 com propósito voltado à cultura. Havia um boletim com o nome Hatikva (esperança, em hebraico, o mesmo nome da música que foi adotada como hino israelense). O Yavné durou três anos. Ao encerrar suas atividades, em 1947, a biblioteca foi doada para o Betar, e os móveis para o Dror.
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Diferenças que se completam
Depoimentos colhidos pela historiadora Ieda Gutfreind entre ex-membros dos movimentos mostra as qualidades peculiares a cada um. O Dror tinha a visão generosa e solidária do socialismo, e isso impactava fortemente na visão de uma ética judaica. O depoimento de alguém que aderiu ao movimento aos nove anos, nos anos 1940, mostra o encantamento ao dividir seu lanche (maçãs) com o de um companheiro (ovos e sanduíche) em uma atividade. O Betar, conforme um dos seus membros quando foi criado, encantava os jovens de outra maneira: levantava o “orgulho judaico” em momento de perseguições humilhantes e dava “altivez” aos jovens da coletividade, mudando a imagem do “judeu débil, entregue, cabisbaixo”. Ou seja, mostrava que o judeu pode, sim, defender-se e ter autoestima alta. Conclusão: como costumeiramente ocorre, os movimentos se diferenciam e se completam em suas saudáveis diversidades. Sobretudo, todos defendiam o sionismo, e isso os unia.
Leia outros textos recentes que fiz sobre este assunto do qual não consigo ficar alheio (ocupa permanentemente minha atenção) desde o avassalador pogrom de 7/10:
>> Antissionismo é antissemitismo
>> Os poréns seletivos que constroem narrativas desonestas
>> Compreenda o conflito israelo-palestino
>> Efeitos do antissemitismo estrutural
>> Não é preciso fazer montagem
>> A invisibilidade dos israelenses
>> Só se aperta a mão de quem a estende
>> A maldade independe de ideologia
>> Presidente Lula, enxergue-nos
>> A esquerda burra dá vida à extrema direita
>> Mais atenção às palavras
>> A narrativa vazia do “intelectual” antissemita
>> Aviso aos antissemitas: vocês nos fortalecem
>> A única opção justa: 2 Estados e 2 povos, Israel e Palestina
>> A necessidade fez deste meu espaço um espaço judaico
>> Por que o antissemitismo é uma espécie de síndrome?
>> Todos devemos ler o livro de Nelson Asnis
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Shabat shalom!