Neste começo da Copa do Mundo de futebol feminino, em meio a lindas jogadas de efeito protagonizadas por gurias talentosas que sempre viram no futebol um ambiente refratário, temos o preconceito se fazendo notar. Como em todo processo evolutivo, o reacionário se manifesta com o triste papel de reação contra a vida, de feioso vilão. E isso explica muitas coisas abjetas que temos visto por aí. Mas foquemos no futebol feminino. Outro dia, recebi um vídeo ridicularizando as gurias, com jogadas toscas, como se não houvesse as lindas ações de uma modalidade lúdica, que eu particularmente aprecio (e como se os homens também não tivessem seus lances toscos com a bola). Mas, diante de tanto preconceito contra as meninas, me veio a necessidade de informar, porque é com a informação que se combate a ignorância, e o preconceito é filho da ignorância.
Resolvi conversar com uma grande amiga, que adoro e que todos deveriam conhecer: um anjo chamado Marianita Nascimento. Ao saber da história dessa pioneira do futebol feminino, você talvez deixe seus preconceitos de lado e entenda a importância de valorizar a modalidade. Além disso, veja os jogos. Tem lances de grande plasticidade que não vemos mais com tanta frequência na modalidade masculina. Há mais espaço para as jogadas de efeito, a marcação é menos rigorosa. Acho muito prazeroso ver os jogos das gurias.
Buenas, mas vamos à gremista Marianita, ativista pelo futebol feminino e por várias outras causas (como o antirracismo e as de gênero e orientação sexual). A história dela é de arrepiar. Num jogo em Porto Alegre, do time feminino gremista provavelmente contra o time feminino do Bangu (Marianita não se lembra disso com certeza), o Grêmio recebeu uma notificação do CND (Conselho Nacional do Desporto) dizendo que o jogo de futebol entre mulheres era ilegal (isso mesmo!). Marianita e suas companheiras de time ficaram sabendo dessa notificação já dentro do vestiário, depois do jogo, que havia sido uma preliminar da partida disputada em seguida pelo time profissional masculino, no Estádio Olímpico.
Era tempo de ditadura militar, virada dos anos 1970 para os anos 1980.
“Aquilo foi um balde de água fria”, conta hoje a querida Marianita, mostrando emoção mesmo depois de décadas do episódio. “Só que sempre fui uma líder, ao natural. E sempre fui atrás das coisas que eu desejava e gostava de fazer. E o que fizemos (sob a liderança dela)? Fomos atrás do Valdir Fraga (antigo parlamentar brizolista), que sempre nos deu força, sempre apoiou o futebol feminino e sabia os caminhos (políticos) para fazer as coisas acontecerem. Nós éramos atletas e fomos pedir ajuda a ele. Fizemos uma comissão com o intuito de derrubar essa lei. Isso durou de 1980 a 1983. Nós lutamos muito. Chegamos a jogar de forma amadora, da forma que pudéssemos. Às vezes a polícia chegava, e tínhamos de parar o jogo.”
O futebol feminino foi legalizado em 1983. Com o apoio do então presidente Fábio Koff e do próprio pai da Marianita (que era conselheiro do Grêmio), o clube formou seu time feminino naquele mesmo ano. Na época, Marianita fazia parte de um time chamado Radar, que era uma espécie de resistência e fazia amistosos fora do Brasil (claro, porque aqui era proibido!). O Radar era uma espécie de seleção brasileira informal, que transgrediu e marcou época. Marianita foi a goleadora e um dos destaques do Radar na excursão pela Espanha em 1982 (que coincidiu com a copa do mundo masculina daquele ano). Algo como meio ano depois dessa excursão histórica, o decreto que proibia o futebol feminino foi removido.
Mas desde então o futebol feminino teve uma existência errática.
“Esse (a proibição e a posterior precariedade) é um dos motivos para o futebol feminino brasileiro estar atrás da modalidade praticada em outros países”, diz Marianita.
“Minha paixão pelo futebol vem de antes do futebol feminino. O futebol era masculino. Eu nasci em 1960 e desde pequena, vendo meu irmão (Deco Nascimento, conselheiro e ex-dirigente gremista) jogar, eu me apaixonei pela bola, eu me apaixonei por aquela habilidade, eu acompanhava meu pai nos jogos do Grêmio. Desde muito pequeninha eu ia aos jogos com o pai e ficava lá torcendo e pensando: um dia ainda vou jogar nesse campo, um dia vou ser jogadora de futebol. Pensava tudo isso sem saber que luta seria essa. E foi assim que aconteceu. O motivo sempre foi a paixão pela bola e o sonho. Eu jogava com os guris na rua, e eles se tornaram meus melhores amigos. Na hora de escolher os times, brigavam pra me ter no time, pra tu veres como eu era boa, eu me destacava em meio aos guris.”
Marianita era uma entre cinco irmãos. Nascida em 1960, conta que o padrão feminino era ser preparada para sem tornar dona de casa. “Não foi fácil levantar a bandeira do futebol”, conta ela. “Amigas se afastaram de mim. Eu era o que hoje se chama de ‘empoderada’”.
Marianita relata algumas resistências que sofreu e que hoje seriam inimagináveis. “Fui muito valente”, ela lembra. Mulher, negra e jogadora de futebol, também foi modelo fotográfico, e as pessoas viam aquela bela mulher de salto alto ou de biquini e torciam o nariz, porque era negra e jogadora de futebol. “Isso me ajudou a crescer, a ser uma pessoa mais generosa, a entender meus limites, porque sei que na época fui muito além dos meus limites”, diz ela.
“Eu fiz aquilo porque meu coração mandava. Nunca esperei reconhecimento. O importante para mim é que eu vivi isso e, se voltasse 40 anos, faria tudo igual”, encerra.
Marianita ainda enfatiza o fato de ser negra e de que o “padrão Barbie” era e é o protótipo da heroína. Acredita que isso também contribui para ser uma personagem histórica que nunca teve o reconhecimento merecido. “Incomoda que eu sou uma negra”, emociona-se.
“Quem acompanhou tudo sabe muito bem do quanto nos movimentamos, de como todos esses passos foram dados por esta negra que agora está aqui falando contigo, que essa ideia partiu da minha cabeça e da minha vontade, porque eu nunca aceitei (a proibição).”
Nesta parte da nossa entrevista, Marianita não segura as lágrimas (tenho isso gravado, ela realmente chora!): “Não foi uma menina branca! A nossa sociedade tem o costume de contar as histórias do jeito que querem. Mesmo que eu não deva e não tenha que contar nada para ninguém, quem viveu essa época sabe o que ocorreu. Eu não espero que abram a porta para mim. Eu vou lá e abro. Assim é a tua (minha) amiga. Não me omito das minha atitudes, da minha negritude e daquilo que fiz pelo futebol feminino. Ninguém vai me tirar o que vivi.”
Ufa! Que porrada, pessoal.
A Marianita sabe o quanto a amo.
A conversa terminou com ela pedindo perdão por chorar.
Leia um bate-papo que bati com minha fantástica amiga, que tanto orgulha me dá:
Pergunta: O futebol feminino chegou a ser proibido. Como foi a luta pela legalização?
Resposta: Descobrimos em 1980, após um jogo contra o Bangu, em preliminar no Estádio Olímpico que mulheres não podiam jogar futebol pois era proibido por decreto. “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”, dizia o decreto-lei 3.199 de 14 de abril 1941. Ali sabíamos que não poderíamos jogar mais no Grêmio, devido à proibição. Então resolvemos lutar para mudar esta lei , e foi aí que procuramos o vereador Valdir Fraga, o nosso caminho para ajudar juntamente com a Federação Gaúcha de Futebol, para a criação de um anteprojeto com o objetivo pedir a liberação do Futebol Feminino no Brasil. Todas as equipes, jogadoras da época, colaboraram, pois precisamos fazer uma arrecadação de assinaturas para o anteprojeto, eram necessários para mostrar a força e o apoio ao futebol feminino. Continuamos a jogar fora do Grêmio, campeonatos, torneios, enfim não era oficial, mas começou cada vez mais a aparecer equipes, pessoas que queriam praticar o desporto, e essa luta foi de 1980 a 1983, onde foi definitivamente derrubado o decreto-lei. Creio que foi resultado da força de todas as mulheres por todos os cantos do país. E o enfrentamento de não desistir de jogar contou com um fato muito importante em 1982, quando fomos representar a equipe do Radar (RJ) em uma excursão para disputar torneios na Espanha (Madri, Barcelona, Sevilha , Elche, Castilla). Como não era liberado o futebol feminino, não poderíamos ir representando a seleção brasileira, mas foram escolhidas gurias de alguns Estados para participação nesses torneios, bem no período da Copa do Mundo masculina. Foi incrível e creio que isso, além de fortalecer nossas intenções na esperança da liberação, creio que impulsionou a decisão dos órgãos competentes para dar um fim nesse decreto que nos impedia, pois no retorno desse torneio que foi em julho de 1982, quando voltamos, teve grande repercussão, jornais, TV, rádios, e aumentou consideravelmente a imagem do futebol feminino no país e o crescimento do mesmo. Aí, em 1983, foi liberado. Na minha visão, a união de todas e de todos foi decisiva para vencermos está luta.
Pergunta: Como tu enfrentas as dificuldades de ser mulher, negra e jogadora de futebol, um esporte marcado pelo machismo?
Resposta: De ser jogadora de futebol, começa com essa descrição: eu e a bola de futebol. Assim começamos nossa relação. E quanto mais me envolvia com você, mais sentia a necessidade de intensificar nossas descobertas. O primeiro momento foi aprender a ter o domínio trabalhando minhas habilidades e, na medida em que fui te conhecendo, você também me conheceu, e juntas, você e eu, começamos a nos entender e falarmos uma mesma linguagem. O meu desafio era te dominar, e assim foi. Aprendi a dominar com pé esquerdo, pé direito, a dar passes curtos, lançamentos longos, a ter a visão de jogo e o distanciamento no campo, a dominar bolas altas e baixas com elegância, a cabecear deslocando a bola dos goleiros, a ter visão de jogo, a me deslocar dentro do campo, jogar sem a posse de bola, abrindo espaço, fazer gols, dar passes, dar bicicleta, lambretas , dar carrinhos, balãozinho, de fazer a bola correr num contra-ataque, criar jogadas levando perigo ao adversário, de bater faltas do lado esquerdo , direito e centro e fazer gols através dela, enfim… sempre foi uma relação íntima, eu e a bola, esse foi o início do meu caminho dentro do futebol, porque eu era muito pequena quando comecei a jogar e já era habilidosa, e foi essa relação que me levou a minha trajetória dentro do futebol feminino, o meu “amor” pela bola. Assim que me tornei uma jogadora, minha maior paixão. Ser mulher… nasci potente com a força de que faria o que eu desejava sem rótulos e padrões que me tirasse dos meus sonhos, vontades, sentimentos. Enfrentaria o mundo e todos os preconceitos pelo simples desejo de jogar um esporte que na época era dito como masculino. Na época jogava com os guris da minha rua, pois aprendi a jogar com meu irmão mais velho, e, como era considerado um esporte masculino, eu desde pequena já enfrentava as diferenças e me tornava necessária quando tinha os jogos de futebol com os meninos, e fui conquistando meu espaço junto deles e respeitada também por eles, pois as equipes desejavam que eu jogasse, porque eu era muito boa jogadora. Até encontrar gurias que jogavam, demorou bastante, mas o fato de jogar nesse período com meninos e contra meninos só me fortaleceu para continuar minhas lutas. Ser negra bem assumida e resolvida, com orgulho… eu teria que dar o meu melhor, porque na seleção natural da vida nós, negros, precisamos estar preparados para superar a todos os desafios dos preconceitos de ser negro (preto). Faz parte. Aos machistas, não perco meu tempo com eles, ou o que pensam, minhas vontades estão acima da vontade deles.
Pergunta: Neste começo de Copa feminina, como tu vês o estágio da modalidade no Brasil?
Resposta: Vejo ainda muito no começo, muito a ser trabalhado, entender a nossa cultura, onde estamos no momento e criar um caminho onde se possam vencer os processos e evoluirmos com ele. Ter o futebol feminino, nas escolas, nas praças, incentivo do Estado juntamente com a sociedade. Precisamos fortalecer as categorias de base, ter competições nas categorias menores, investimento, profissionais capacitados trabalhando os fundamentos tão necessários para formação das atletas, o futebol feminino ser visto como um produto de ponta e ser explorado com tudo que ele merece, ter muito mais divulgação, conhecer seu público, evoluir e inovar por ser diferente do futebol masculino. Citaria muito mais coisas aqui, é por estas e outras tantas faltas de ações que estamos ainda no começo.
Pergunta: No aniversário de 119 anos do Grêmio, tu fostes a homenageada e fizestes um discurso muito emotivo no Conselho Deliberativo, sendo muito aplaudida. Como foi este momento? Aliás, tu tens um bom espaço no museu do Grêmio…
Resposta: Foi um momento mágico, fiquei muito grata pelo convite e pela responsabilidade de ser uma mulher negra, a responsável pela abertura do futebol feminino no meu time do coração e capitã, falar para todos os conselheiros, foi emocionante, libertador, foi a sensação de ter ganho um grande prêmio, de fazer o gol que me deu o campeonato, como se tivesse feito a partida perfeita, com gosto de quero mais. O que resume esse momento mágico é a gratidão. O que senti diante dessa reverência do meu clube do coração? Emocionada demais, sei que essa oportunidade é para poucos, e ser escolhida foi um presente com gosto de troféu.
Pergunta: Quais as principais dificuldades do futebol feminino hoje?
Resposta: Falta de investimento, necessidade de trabalhar novos talentos, equiparação salarial, horários dos jogos e campos melhores, profissionais (espaços para mulheres), entender o produto futebol feminino e fazer um planejamento onde se cresça e evolua dentro dos processos, e nós crescendo dentro deles. Nosso modelo, nossa cultura, nossa essência ser construída dentro do futebol brasileiro, nos nossos moldes, com nossas características, modelos construídos nas nossas necessidades, potencialidades, habilidades, dificuldades.
Pergunta: Que conselho tu darias para os clubes e para as jovens jogadoras que estão surgindo? O que devem fazer para alavancar a modalidade?
Resposta: Para os clubes, que invistam no produto futebol feminino, dando as condições para que haja ótimas jogadoras, grandes equipes, com tudo aquilo que é necessário para qualificar cada vez mais o grupo de atletas, os profissionais envolvidos, processos e planejamentos. Todos são importantes e lutam pelos mesmos objetivos, de dar o seu melhor para que as jogadoras possam ter o melhor e em consequência oferecerem o melhor em campo. O objetivo de todos é vencer. Então, todos trabalham para isso. As jovens jogadoras devem se preparar, treinar muito, se dedicar para aquilo que buscam. Hoje, ser competitiva requer muita entrega pela velocidade no pensar e agir, estar preparada para chegar onde você deseja chegar. Aproveite as oportunidades de estar dentro de um clube cuja camiseta você defenda. Lembre-se que esse é o caminho que vai fazer você chegar aonde deseja. Jogue nos treinos como se estivesse num jogo, assim se fica preparada para ser competitiva. Não gostar de perder é um bom caminho de querer sempre vencer. E, quando você jogar, entre lá e mostre sem medo de errar, enfrente, você pode e está preparada para fazer a sua história, a oportunidade é sua agora, a bola está nos seus pés, é a sua vez, pode até dar aquele friozinho na barriga, mas quando você entrar no campo para jogar, tudo isso vai passar, e você vai, juntamente com a sua equipe, vencer a todos os desafios e conquistar as vitórias.
Palavras sábias da minha amiga e heroína!
Agora, todos pra TV. Vamos curtir o mundial.
…
Shabat shalom!