Quando penso que 30% dos mortos da tragédia na República de Cromañon, em Buenos Aires, eram jovens que voltaram três ou quatro vezes para dentro do prédio tentando salvar amigos em meio ao fogo, percebo: como deve ser perturbador e até desesperador sobreviver a um episódio desses. Como deve ser traumatizante! Além da brutalidade vivida e do luto, ainda resta o sentimento de culpa daqueles que pensam que poderiam ter feito algo a mais para salvar as vítimas. Daqueles que pensam “por que eles e não eu?” Pode ser incêndio, acidente, atentado terrorista ou pogrom. É devastador!
Quando penso que são vários os motivos para ter ocorrido o que ocorreu e para amplificar seus efeitos, concluo que todos são de descaso pela vida, egoísmo, ganância e irresponsabilidade. É uma questão comportamental. Nessa mania das pessoas que gostam de rotular, confesso que sou, sim, um tipo com concepções daquilo que costumamos chamar de “esquerda”, porque defendo a proteção, a responsabilidade, a regulação, a defesa dos mais fracos, a atenuação das desigualdades em todos os níveis (socioeconômicas, sexuais, de gênero, raciais etc), e isso independe de siglas, que cada vez me atraem menos.
Quando penso que o intendente de Buenos Aires e o prefeito de Santa Maria (cargos equivalentes) voltaram a ocupar cargos públicos depois das tragédias em contextos nos quais eram os principais responsáveis, me exaspero com o alcance que atingem o descaso e a falta de empatia. Um deles chegou a ser secretário de segurança num governo estadual! Como é possível algo assim?! Que falta de empatia com os familiares e amigos desesperados! Que falta de humanismo! Que símbolo forte de uma sociedade cínica e completamente falida naquilo que deveriam ser seus valores mais essenciais: o respeito pela vida.
Quando penso que, pouco mais de oito anos depois do Caso Cromañon (30/12/2004, com 194 mortos), ocorreu a tragédia da boate Kiss (27/1/2013, com 242 mortos) aqui em Santa Maria, não reflito só sobre a burrice, mas sobre o poder que a ganância exerce na mente de um indivíduo. Porque, sim, eles sabem dos riscos, eles viram o que ocorreu em Buenos Aires, eles têm noção do que pode provocar um ambiente superlotado com material incandescente. Mas a atração do lucro é maior, é tipo um vício que cega as pessoas. Ou seja, os caras não são tão burros, mas a ganância supera a inteligência, e a burrice vem junto.
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E agora esqueça a porra da polarização. Sou um tipo de esquerda moderada, um social-democrata, convictamente apartidário, que respeita o pensamento diferente (se você acha que o “individualismo” gera um mundo melhor, eu não entendo como pode acreditar nisso, mas respeito e até torço caso você um dia tenha a oportunidade de pôr suas ideias em prática). Quero regulação, em nome da vida! Quero solidariedade! Quero responsabilidade de entes públicos eleitos democraticamente! Ser “de esquerda”, nesses rótulos usuais que andam por aí, não é uma questão partidária, é de convicções e valores.
Digo isso porque, por exemplo, depois do pogrom cometido em 7 de outubro de 2023, eu passei a rejeitar siglas supostamente de esquerda. Fiquei ideologicamente órfão no sentido partidário. O cínico que não percebe o significado devastador de episódios como o Caso Cromañon é o mesmo canalha que empunha uma bandeira do Hamas, só varia o discurso, os slogans e os dogmas. O nazista do PSOL, do PCO, do PSTU ou de setores infelizmente importantes do PT que se refocila no antissemitismo e no culto ao terrorismo é igual ao porco sem-vergonha que ignora episódios traumatizantes em nome de um fetiche, seja ele financeiro ou dogmático. São igualmente desprezíveis.
Por que escrevi o texto acima?
Porque no próximo dia 30, fará 20 anos do Caso Cromañon.
E, nesses 20 anos, cresceu exponencialmente a minha convicção de que a maldade e a burrice vencem de goleada o humanismo civilizatório e a inteligência. E a bosta da polarização entre fascistas e jihadistas de aluguel congelou esse quadro. Ganâncias e dogmas, ambos cruéis, maus, cegos, irrefletidos e desprovidos de empatia pelo semelhante, são a danação da raça humana. E se tornaram bandeiras que muitos empunham de forma ardorosa em nome daquilo que nem os protagonistas dessa distopia entendem. E não entendem por burrice e preguiça.
Neste final de 2024, registro aqui minha desesperança.
E minha angústia! E meu desespero!
São tempos muito difíceis.
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Shabat shalom!
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Foto da Capa: parentes de vítimas da Cromañon / Commons Wikimedia