Eu nem queria tocar neste assunto, porque ele me cansa e intoxica demais. Realmente é um tema que me incomoda, me faz mal, porque a rivalidade no futebol tira a noção das pessoas mais improváveis e emburrece até o inteligente.
Mas vamos lá, porque é importante, e sou o cara certo pra levá-lo adiante, uma vez que até livros escrevi sobre.
Falo de observações tendenciosas, das simplificações e do empacotamento sorrateiro e perverso de notícias.
Há várias ironias nesse assunto. Uma é que alguns confundem a minha ação reativa com o veneno de figuras nefastas que andam por aí. Mas este é o mundo em que vivemos. O cara tem uma posição e, diante dela, é rotulado com outras visões supostamente correlatas. Vivo isso cotidianamente, não só no futebol. Exemplos: sou judeu e defendo o direito de Israel existir, mas isso não significa que eu apoie todas as ações de um governo no qual eu nem teria votado se lá vivesse; repudio um personagem político que representa várias características por mim deploradas a vida inteira, mas isso não significa que eu endosse as cretinices cometidas pelo outro polo numa dicotomia venenosa que se impregnou no nosso cotidiano.
Então me adianto. Nunca fui ‘fanático’, a não ser que você use essa definição de forma literal, de ‘fã’. Mas jamais fui cego pelo fanatismo.
Deixo bem claro o que já escrevi até em livro, mas algumas pessoas fazem de conta que não entenderam ou são tão fanáticas no sentido da cegueira (mesmo que esse fanatismo seja enrustido) que não entendem, ou, ainda, não podem entender porque se sentem atingidas nos pilares em que ergueram uma paixão futebolística. Não tenho nenhuma motivação desconstrutiva em relação ao outro, nunca fui disso. Se mostro os seus podres é pra ilustrar algo que deveria ser óbvio: há virtudes e mazelas em ambos os clubes, Grêmio e Internacional, e ambos estão inseridos numa sociedade problemática.
Em outras palavras, racismo, homofobia, misoginia e outras porcarias não são “privilégio” de um ou outro grupo e deveriam ser motivo de união para um verdadeiro combate, porque são assuntos sérios, não próprios pra infames disputas recreativas num estádio de futebol (aliás, tenho a tese de que quem usa esse assunto como trunfo clubístico na verdade não está efetivamente preocupado com a real e essencial luta antirracista).
O assunto já ultrapassou todas as medidas do aceitável. E vejo, com dor, o empacotamento passador de pano que muitas pessoas, inclusive da mídia tradicional, dão à jogadora do Internacional que atirou uma banana nas colegas do Sport Recife, um caso gravíssimo.
A situação fica muito pior quando pensamos que há 11 anos, no rumoroso “caso Aranha”, o Grêmio foi punido, e essa punição, de alta repercussão condenatória por parte de supostos donos impolutos da virtude, deveria ter sido exemplar. Depois desse episódio, houve centenas de outros, similares, em todo este país de racismo encoberto pela miscigenação e pela hipocrisia, o país que ostenta o vergonhoso título de “mais longeva escravidão”.
Mas, voltando ao episódio que justifica este texto, há muitas ironias. Vejo aberrações por todos os lados. Uma delas me provocou gargalhadas: um colorado se queixando de que gremistas acusam racismo no Internacional como se só existisse lá. Hein?! Essa é a nossa fala! Que bom entenderem.
Resolvi fazer esta coluna com insights que tive a partir da incredulidade e da impotência, sentimentos que atenuo escrevendo, porque escrever, antes de ser a minha profissão, é a minha terapia. Preciso esclarecer, contextualizando, um vício histórico. Na onda simplificadora que serve aos cretinos e cínicos, consolidou-se dizer que um é “clube de negrão” e o outro “clube de alemão”, epítetos folclóricos e vazios de outra época, quando o racismo não era levado a sério como, graças a Deus, é levado hoje. Ambos os rótulos são falsos, e tenho todo um livro mostrando isso com fatos e personagens reais, irrefutáveis. O que há de verdade? Que o Internacional, em um determinado momento histórico e por motivos que impunham esta solução, até mesmo econômicos, abriu-se às classes populares por necessidade. Foram alguns anos, e algumas pessoas viveram neste hiato, inclusive aderindo ao clube. Mérito deles, admito!
Disso, veio um poderoso marketing que consolidou o imaginário de “clube do povo”, mesmo que rigorosamente todas as pesquisas mostrem o Grêmio como tendo a maior torcida do Estado, do Sul do país e, em alguns levantamentos, a maior torcida brasileira fora do Rio e São Paulo.
Mas vamos aos insights, porque o tema é tão longo e vasto que me sinto mais confortável ao resgatar as minhas próprias reflexões, sem que me escape algo.
…
A elas!
“Outra tentativa de passar pano, empurrando pra nós todos os defeitos do mundo, é a comparação ‘jogadora x torcedora’. Em primeiro lugar, jogadora é infinitamente pior, pq torcida é massa, é incontrolável. E outro item ‘ignorado’ é q eles tb já tiveram torcedores cometendo racismo.”
…
“E se o Grêmio tivesse um macaco de mascote com o nome de jogador negro, como fazem com o Escurinho? Seria, COM RAZÃO, um escândalo.
Nunca dá nada. Criaram o imaginário de q são ‘do povo’ (mesmo tendo menos torcida) e, então, têm ‘álibi’ pra ‘brincar’. Mas quem deu essa chancela?”
…
“A banana estava num copo.
Viva o ‘jornalismo’ (sic).”
…
“O mais curioso foi ver colorado reclamando de gremista q ‘só vê racismo no Inter’.
Como é q é?!
Q inversão absurda.
É o q eles sempre fizeram.
Eu, desde sempre, só peço q humanizem esse debate e concluam o óbvio: há virtudes e mazelas em ambos.
Sério! Me belisquem!”
…
“Do empacotamento de notícias: já vejo uns tentando ver o lado até ‘heróico’ (veja só!) da demissão de jogadora (e se fosse jogador?!) q cometeu racismo. Ok. Mas… a moça do Aranha, q sequer era sócia do clube, foi banida e até teve a casa incendiada. Um pouco de critério, pvf?”
…
“Trata-se de uma aberração!
Racismo!
E é institucional!
Horroroso!
Repito: ninguém deu essa chancela.
Ñ existe essa suposta imunidade.
Foram os próprios caras q criaram e se acham no direito de fazer essa desumanização, abjeta em qquer lugar.
É falso esse direito autoconcedido.”
…
“‘Ah, nós podemos! Temos o direito de fazer pq é uma brincadeira conosco mesmos.’ Já ouvi essa explicação furada. Tchê, ninguém deu essa chancela! Vcs q criaram! É frágil e falso. Assim como nós, vcs tb ñ podem fazer essa desumanização abjeta.”
…
“Temos q pôr a bola ao centro e reiniciar alguns conceitos. Do zero! Ninguém é dono da virtude. Ninguém é impermeável. Ninguém é livre pra fazer coisas horríveis pq se autointitula representante de algo. Ninguém é imune. Isso ñ existe! É essencial repensarmos um contexto viciado.”
…
“Aí, no dia seguinte à data, ‘lembram’ de fazer card contra a ditadura pra criarem pauta positiva diante do caso racista, do qual ninguém está livre (mas, sendo funcionária, é muito mais grave q uma torcedora qquer). E empacotam como proposital publicar no 1 de abril. Q canseira!”
…
“‘Ai, q surpresa! Aqui ñ ocorre. Temos protocolos (como se os outros ñ tivessem). Ñ condiz com a nossa ‘cultura’, biriri, bororó…
Voltemos com o dossiê ilustrado?
Ñ crianças. Vcs ñ são uma ilha antirracista, e o ato racista de uma FUNCIONÁRIA só surpreende os desinformados.”
…
“Bah, ‘suposto ato racista’ foi muito ruim, pessoal! Ok dizer q uma autoria é suposta até o trânsito em julgado. Mas o fato é real, é um dado objetivo.”
…
“Vão dizer q ‘era só o lanchinho jogado num momento de fúria’, como andou escrevendo um imbecil no X.”
…
“Jogador(a) é vinculado(a) ao clube de forma orgânica. Torcedor é um qquer, avulso. Tem torcedor presidiário, até. São milhões, variados, e o clube ñ tem controle sobre a massa. Esse debate virá e de forma enviesada, contaminada. Racismo é sempre muito sério, mas há agravantes.”
…
“Ui, ela teve o contrato rescindido!
A punição à protagonista do caso mais rumoroso (vcs sabem qual) foi pesada: vetada no estádio, teve a vida virada num inferno. Sabiam disso, né? E digo mais: torcedora aleatória é muito menos grave q jogadora.
Hipócritas!
Assumam q tb erram!”
…
“Grêmio tb ñ é só slogan! Vi vídeo em q tentam marcar diferenças. Q nojo! Grêmio, de Lupi e Coligay, tem ações firmes anti-preconceito e inclusivas. Sei pq participo de algumas. Dep Clube de Todos é incansável! Qdo tem casos, punem-se. Dispam-se do marketing e desçam do pedestal!”
…
“… tb estou certo de q aquela imbecil q xingou o goleiro do Santos lá em 2014 ñ tem a mínima ideia do q significa a estrela dourada na nossa bandeira, quem fez o nosso hino, quem foi Adão Lima, a beleza do nosso primeiro estatuto, muito inclusivo (ao contrário do q dizem), etc.”
…
1) ‘Lanchinho da tarde’
2) ‘Caso isolado’
3) ‘Potássio pra evitar cãibras’
4) ‘Suposto torcedor’
5) ‘Ñ é dos nossos!’
Além de hipócritas, levianos e arrogantes, são muito previsíveis!
…
“50897544729339767699 ‘casos isolados’!”
…
“A casca de banana foi uma tentativa daquelas impolutas criaturas de dar às jogadoras do Sport um alimento rico em potássio pra combater as cãibras.
Ñ duvide q digam isso.
Racismo?! Imagina!
Aliás, mais um ‘caso isolado.”
…
Era isso.
Poderia ser mais completo este texto, incluindo outros tipos de violência, como depredação de ônibus oficial do clube adversário (ferimento do Villasanti), celular na testa de jogador do rival (Lucas Silva ferido), cara que invade o campo com a própria filha no colo pra agredir jogador. São inúmeros casos.
Também poderia mostrar os documentos que tenho de ligação do nosso adversário com figuras sinistras da ditadura militar, incluindo torturadores, sequestradores e autoridades, todos muito presentes na rotina do clube que gosta de se mostrar especialmente progressista, em detrimento dos outros, a quem sempre tentam pôr na condição mais aviltante. Tenho esses documentos! Desfilam ali figuras como Pedro Selig, Didi Pedalada, Reinaldo Salomão, o governador que em 1964 queria mudar a capital pra Passo Fundo, com o objetivo de evitar a repetição da campanha da Legalidade (e hoje é “procer” colorado). Também mostraria conselheiros e defensores atuais (atuais!) do regime de exceção, de extrema direita (andam quietinhos, mas estão lá, na oposição, esperando que o vento volte a lhes ser favorável), um idealizador regional da Arena e do PDS (partidos da ditadura) que presidiu o clube agora mesmo nos anos 2.000. Tudo acessível. Tudo registrado, com nomes e sobrenomes.
Motivo desse enorme texto?
Dar um basta!
Mostrar que não existe essa superioridade moral ridícula, que tenta pôr o outro na condição de racista, fascista e outros absurdos infantiloides e irresponsáveis.
Chega!
Não somos o que vocês querem que sejamos.
Se futricarmos bem, vocês ficam muito mal. O pai do Lupicínio Rodrigues que o diga! Mas aí é outra longa e antiga história, relatada em primeira pessoa pelo grande Lupi, que se tornou “gremista fanático” (como se definia em textos e no áudio que consta bem límpido na sua cinebiografia) por ser negro.
Dedico este texto à querida amiga Roseane Maffei, lutadora gremista, uma pessoa generosa, sensível, boa e também inconformada com as leviandades da rivalidade no futebol. A Rose me chama (elogiosamente) de “Léo Pistola” quando fico indignado e reajo escrevendo.
Também dedico aos colorados que se sentem ofendidos e me criticam, fazendo comparações absurdas com “influencers” de má-fé quando só defendo o meu amado clube dessas leviandades muito mal-intencionadas.
Enquanto continuarem alimentando esses imaginários frágeis de uma dicotomia ridícula e emporcalhando a nossa reputação (o abjeto e gravíssimo cântico “Clube racista / Que vergonha ser gremista” é um crime de calúnia irresponsável, de quem não é adversário, mas inimigo; com quem o diálogo é naturalmente interditado, por questões de dignidade e honra), eu estarei aqui, digam o que quiserem, porque não tenho a índole nem o objetivo de desconstruir o outro, e percebo que alguns de vocês tentam me intimidar com etiquetagens indevidas e comparações inadmissíveis.
Só o que me motiva é dizer que somos humanos, com qualidades, defeitos, méritos e falhas.
Ninguém está acima! Ou até está, mas é um ente invisível e incorpóreo.
…
Esta coluna não pode deixar de se encerrar com as lembranças do negro Lupicínio e seu lindo hino, uma ode à humildade e à perseverança; do desbravador preto Adão e seu pioneirismo racial em 1925 na capital gaúcha (sim, isso mesmo, crianças, tenho até foto dele em capa de livro); do judeu Salim Nigri e a faixa de 1946 que sete anos depois virou frase no hino do Lupi; da torcida organizada LGBT Coligay e sua incrível história pioneira; do negro Bombardão (foto da Capa) com seu vozeirão nos anos 1930; do Everaldo que virou uma eterna estrela dourada muito humana na bandeira oficial; do Tarciso que virou mascote com o lindo e respeitoso nome de “Flecha Negra”; da Marianita (hoje dirigente do clube) e sua luta pela negritude, pela diversidade e pelo futebol feminino; de várias outras figuras importantes como o meu querido amigo Roger Machado, que hoje treina o rival, mas se formou como jogador, treinador e homem no Grêmio, onde teve as portas escancaradas pra sonhar, time que treinou duas vezes (e infelizmente quem entra um dia sai) e no qual tem homenagens por tudo que é canto, incluindo uma lajota que o imortaliza da calçada da fama, honraria de um pequeno grupo seletíssimo, cuja existência supera em si qualquer ação isolada q a queria destruir por fanatismo cego e despeito (convenhamos que muito mais importante que alguém a querer destruir é o fato de ela existir). Enfim. Pessoas de carne e osso, fatos irrefutáveis. Houve momentos de fechamento e abertura, teve até abertura festejada, pra que fosse efetiva, explícita e oficial, rompendo eventuais normas mais conservadoras no âmbito dos costumes (mas jamais alguma cláusula restritiva, tanto que ninguém jamais a viu, porque nunca existiu). Enfim, somos linda e orgulhosamente humanos!
Shabat shalom!
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Foto da Capa: Bombardão / Reprodução do FB Tribuna 77 GFPA - Ilustrações: Acervo do Autor.