Lembrar o Holocausto é uma necessidade que deve ser incentivada, estimulada, é uma permanente urgência ética. O dia estabelecido pela ONU para tanto é o 27 de janeiro, e as comunidades judaicas de todo o mundo se esforçam especialmente nesse dia por manter viva a memória. Melhor ainda quando, acertadamente, colocam essa tragédia na dimensão que deve ter: o Holocausto teve os judeus como alvo, isso é certo, levando ao assassinato de 6 milhões de pessoas dessa etnia, numa busca deliberada de erradicação (genocídio), e isso deve ser enfatizado. Mas é essencial ampliar a narrativa, até para reforçar a empatia e torná-la mais pungente, se isso é necessário. Deve-se mostrar que também homossexuais, pessoas com deficiências, ciganos e comunistas foram massacrados pelo horror nazista. A lembrança do Holocausto não deve ser protocolar. Deve comover! Deve doer! Deve provocar reflexão.
Naturalmente, os judeus tomam a frente das manifestações, até porque foram vítimas de uma indústria que sistematizou a eliminação do seu povo. Sempre e cada vez mais, porém, sublinhamos que pessoas de outros grupos humanos minoritários tiveram o mesmo destino.
Feita a necessária introdução (e sempre enfatizando que a expressiva maioria dos estimados 9 milhões de mortos no Holocausto eram judeus), vou contar o diálogo que tive anos atrás com minha filha Paula, que estuda (como o mano, Pedro, estudava – hoje é estudante de História na UFRGS- e como eu idem, no século passado) no nosso amado Colégio Israelita Brasileiro (CIB).
A Paula chegou em casa contando a forte impressão que teve numa aula de cultura judaica ao ouvir relatos de sobreviventes. Foram depoimentos, livros e textos esparsos, sempre deixando claro para as crianças que lembrar o Holocausto é dever moral de toda a humanidade. A qualidade humanista dos professores de cultura judaica no CIB chega a ser comovente.
A Paulinha sabe que, na minha vida de jornalista, em especial quando fui correspondente na Argentina (pela Folha de S. Paulo), ouvi dezenas de sobreviventes daquilo que nós judeus chamamos, apropriadamente, de Shoá (catástrofe). Também sabe o quanto esse assunto me mobiliza, como judeu que ama suas raízes e ser humano que ama seus semelhantes.
_ Vou te contar uma história especial, filha. E no fim do relato tu vai entender o porquê.
Assim comecei o relato, e ela fincou seus curiosos, doces e atentos olhos nos meus.
_ Vou te contar a história de uma mulher que veio para o Brasil em 1939, deixando toda a família na Polônia e se casando por procuração para entrar no nosso país. O casamento já foi uma preocupação para quem não conhecia o noivo, seu namoradinho na aldeia polonesa. O problema é que, naquela época, mulheres eram atraídas por casamentos falsos e sequestradas para a prostituição. Eram as famosas “polacas”. Isso ocorreu no Brasil e na Argentina, onde inclusive tem uma heroína incrível, a Raquel Liberman, que conseguiu fugir e denunciar a rede de prostituição que a havia trazido num navio insalubre e superlotado…
_ Pô, pai, sempre que aparece a oportunidade de falar sobre a Argentina, tu desvia o foco. Foco, pai. Foco! Por favor. Vai direto ao ponto, porque quero saber essa história.
_ Verdade, filha. Voltando ao ponto, então: essa mulher chegou ao Brasil em 1939, encontrou o marido e formou uma linda família. A primeira filha nasceu já em 1940, vindo depois uma sequência que completou a palma de uma mão: cinco irmãos. Um menino e quatro meninas.
_ Coincidência! Parece a família da vó Miriam…
_ Sim, filhota. É mesmo! Que coincidência. Tá, mas agora foi tu que me interrompeu.
_ Tá certo. Desculpa.
_ Bem. Essa mulher que chegou em 1939 soube de amigos e parentes que foram para Buenos Aires, onde a comunidade judaica é enorme. São 250 mil judeus na Argentina, e eles foram influência decisiva no jeito de ser portenho. Os argentinos usam iídiche como gíria…
_ Paiêêêê!
_ Tá, tá bom. A nossa protagonista ficou sabendo dessas pessoas que foram para Buenos Aires em 1952. Imediatamente, pegou a filha mais velha, a que nasceu em 1940, e foi ter com esses amigos. Afinal, naquela época, Whatsapp nem era cogitado. Sequer telefone existia direito, muito menos com chamada internacional. Cartas? Duravam semanas ou meses para chegar. Lá foi ela, então, com a filha. Queria falar presencialmente para ouvir notícias da família.
_ Ela nunca soube o destino da família?
_ Nunca. Nem dos pais, nem dos irmãos, tios, primos. Então, chegando lá, em meio ao velório da Evita Peron, que parou a Argentina, a mulher… filha, tu sabe quem foi a Evita?!
_ Pô, pai. Sim, tu já me contou. Gosto dela! Mas mantém o foco.
_ Ah, sim. No meio do velório, a filha de 12 anos jura que o próprio Perón fez um afago na sua cabeça e disse “chiquita brasileña”… sei lá. Se ela diz, não vou questionar. Mas, enfim, era uma multidão e uma tristeza profunda, que antecedia o que viria para a mulher e a filha.
_ Ai, o que elas descobriram?
_ Quando elas encontraram as pessoas que procuravam, ficaram sabendo delas que sua família, como tantas outras famílias judias, foi dizimada. A mãe da mulher, avó da menina, tinha sido executada por fuzilamento em 1941 e teve o corpo jogado numa fossa comum.
_ Que história terrível, pai. Mas ela é como outras que ouvimos de sobreviventes. Por que tu escolheu justamente essa pra me contar? _ perguntou a Paula, que estranhou a solenidade.
_ Pois é, filha. Lembra quando tu comentou que a família era parecida com a da vó Miriam? Não era uma coincidência. A mulher que foi para Buenos Aires é a minha avó Clara, tua bisavó, e a menina de 12 anos é a minha mãe, tua avó. Te contei essa história pra tu ver como tudo isso é muito próximo da gente. Eu já ouvi muitos relatos, mas esse é o da nossa família.
A Paula estava de olhos arregalados, me mirando com ar de espanto.
Senti como nunca a proximidade daquilo que parecia tão distante.
…
Minha filha tem razão. Sempre que se fala em Argentina, eu sinto vontade de ouvir e tenho algo a dizer. Por quê? Um dos motivos é que tenho Buenos Aires, no meu imaginário, como um gigantesco Bom-Fim, e não me refiro só ao Once ou à Villa Crespo. Seria tema para outra coluna, só sobre isso. Mas o fato é que a minha experiência de viver imersões no país que me acolheu tão bem, entre outras, consequências, me aproximou das minhas raízes. Eu já ouvi muito dos meus avós e de outros sobreviventes, aqui mesmo em Porto Alegre. Mas lá a lembrança é mais presente. Poucos anos antes (cheguei em 1997), haviam ocorrido os atentados contra a Embaixada de Israel e a AMIA, com seus 114 mortos. Conheci Dona Sara Rus, com sua incrível história de sobrevivente da Shoá que depois teve o filho assassinado na ditadura militar ocorrida entre 1976 e 1983, com seus 30 mil mortos (Dona Sara se tornou uma das Mães da Praça de Maio). Li, convivi, depois assisti aos filmes do Daniel Burman.
Na decisão da Copa do Mundo, eu vesti a camiseta do meu time, que é celeste como a argentina e a uruguaia, e torci como se estivesse no meu apartamento de Palermo tomando meu tinto honesto e comendo a empanada de cebola e queijo que eu tanto amava.
O judaísmo é uma cultura, uma fé, uma etnia, que se manteve firme tal qual suas raízes milenares e se espalhou pelo mundo em razão das crudelíssimas perseguições a que os judeus foram submetidos. Na Alemanha nazista, os valores judaicos se contrapunham à barbárie nazista e à “supremacia racial” ariana. Não à toa, os nazis usavam a expressão “bolchevismo judaico” para se referir ao que hoje os fascistas chamam de “mimimi”, balbúrdia ou globalismo esquerdista. Como sempre lembram os sobreviventes, com ar de alívio, agora temos o nosso lar ancestral a nos proteger e dar perspectiva de acolhimento. Israel, a terra de onde os nossos antepassados foram expulsos séculos atrás, é o tão sonhado cantinho no mundo, nosso essencial porto seguro, a antiga Judeia, que antes havia sido Israel com suas tribos. Mas precisamos nos lembrar do quão cruel já foi a nossa diáspora e sempre nos solidarizar com outras minorias que eventualmente sofram com preconceito e exclusão.
Portanto, “we remember” (esse é o nome da campanha feita globalmente a cada 27/1).
E shabat shalom!