As novas tecnologias possibilitaram o surgimento de novas formas de reprodução humana e fizeram surgir até mesmo um novo ramo do direito, o Biodireito, que é afeto à medicina, à engenharia genética e à biotecnologia. Como o direito é uma resposta aos novos acontecimentos, impasses, às novas relações sociais, econômicas, familiares, científicas e inovações, que surgem cada vez com mais velocidade no mundo contemporâneo, ele está sempre um pouco atrasado. É preciso um tempo para que tais inovações na vida contemporânea sejam percebidas, analisadas, assimiladas e comecem a repercutir na sociedade e nos tribunais, e um tempo ainda maior para que os operadores do direito, advogados, ministério público, judiciário, conselhos profissionais, doutrinadores, etc., consigam entender os novos problemas, procurar e oferecer à sociedade respostas jurídicas que sejam adequadas. Obviamente, os posicionamentos jurídicos dependerão de muitos fatores, sejam eles culturais, políticos, éticos, econômicos e do sistema jurídico utilizado nos países, e isso acontece no mundo todo.
Em que pese o primeiro nascimento de uma criança gerada por fertilização in vitro no Brasil tenha ocorrido em 1984, seis anos após o nascimento do primeiro bebê “de proveta”, a resposta do direito é tão lenta que a maioria dos efeitos sucessórios, obrigacionais e civis trazidos por essa nova tecnologia sequer foi tratada pelo Código Civil de 2002, que fez apenas uma pequena menção sobre o assunto ao tratar sobre a paternidade. Como é de costume não só aqui, mas em diversos países, quando os impasses surgem e não existem leis aplicáveis, o poder judiciário é quem acaba analisando sobre o caso e criando precedentes que viram um norteador a ser observado no silêncio da lei.
E esse artigo trata de um assunto muito controverso no mundo inteiro, que é a reprodução humana “Post Mortem”, que ocorre quando a mulher é inseminada após a morte do marido e são utilizados os embriões criopreservados (congelados) para serem usados em um outro momento.
Apesar de não haver no Brasil uma legislação específica que trate o assunto e suas implicações de forma detalhada, isso é possível graças ao disposto no item VIII da RESOLUÇÃO CFM nº 2.320/2022, que ao tratar sobre Reprodução Assistida Post Mortem determina que “É permitida a reprodução assistida post mortem, desde que haja autorização específica para o uso do material biológico criopreservado em vida, de acordo com a legislação vigente.”
Essa autorização nada mais é do que um documento assinado pelos pacientes para que o material genético (embrião ou esperma) seja armazenado e criopreservado, para uso no futuro, permitindo que sejam gerados filhos após a morte daquele que doou o material genético. Esses filhos são chamados de “prole eventual”, pois ainda não haviam sido concebidos quando da morte do pai ou da mãe. E o direito desses filhos herdarem, isto é, o direito sucessório, dependerá do evento futuro e incerto que é o seu nascimento.
Com as tecnologias hoje existentes, podemos imaginar que possa ser implantado em uma mulher um embrião gerado com material genético do seu falecido marido. Por outro lado, também podemos ter um marido que queira utilizar o embrião de sua mulher já falecida em uma mãe de substituição (barriga de aluguel ou barriga solidária) que lhe fará a cessão do útero, gerando o bebê por substituição.
Podemos imaginar, ainda, hipóteses mais complexas, por exemplo: (i) dois homens casados ou em união estável resolvem ter um filho, que será gerado por uma mulher, e o espermatozoide de um deles fecunda o oócito dessa mulher que também será a “mãe de substituição”, e esse embrião é congelado. Um dia antes da data em que haveria a implantação do embrião, falece justamente o homem cujo espermatozoide foi utilizado para o embrião. O marido sobrevivente e a “mãe de substituição” decidem então prosseguir com o projeto “bebê” e o embrião é implantado e nasce um lindo e saudável bebê; (ii) poderiam ser também duas mulheres e um homem nessa situação, e ter sido justamente o doador do espermatozoide que veio a falecer ou a mulher que tiver doado o oócito, e os sobreviventes seguirem em frente com a decisão de terem o bebê.
Saliente-se que, desde a Resolução CFM nº 2.294/2021, é permitido o uso das técnicas de Reprodução Assistida para heterossexuais, homoafetivos e transgêneros.
Para mim, em todos esses casos, é possível a reprodução assistida “post mortem”, desde que observada a exigência prevista no item VIII da RESOLUÇÃO CFM nº 2.320/2022 acima referida, ou seja, que haja autorização específica para o uso do material biológico criopreservado em vida, de acordo com a legislação vigente.
No nosso Código Civil está previsto que “legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão” e que na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão.”
O Artigo 1.800 do Código Civil também determina que, decorridos dois anos após a abertura da sucessão, não for concebido o herdeiro esperado, os bens reservados, salvo disposição em contrário do testador, caberão aos herdeiros legítimos. Em razão disso, há o entendimento de que os filhos que forem concebidos após esse prazo de dois anos não terão direito à herança, o que não me parece justo.
Entendo que, em razão do princípio constitucional da igualdade entre filhos, esse prazo deveria ser estendido, pois o Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar o Tema 1.200, em 2024, firmou a tese de que “o prazo prescricional para propor ação de petição de herança conta-se da abertura da sucessão, cuja fluência não é impedida, suspensa ou interrompida pelo ajuizamento de ação de reconhecimento de filiação, independentemente do seu trânsito em julgado.” E como esse prazo para a propositura da ação de petição de herança é de dez anos, conforme disposto no Código Civil, tal direito deveria ser estendido aos filhos concebidos post mortem.
Dessa forma, considero injusto com esse filho que foi concebido após o prazo de dois anos ter seus direitos sucessórios excluídos, pois a possibilidade do seu nascimento sempre existiu, tendo em vista o material genético deixado e que na Constituição Federal está previsto o princípio constitucional da igualdade entre os filhos.
A este passo, vale reproduzir o entendimento sobre o legado de material genético, apresentado no Dicionário de Direito de Famílias e Sucessões, de Rodrigo da Cunha Pereira, Terceira Edição, Editora Foco:
“Legado é a disposição testamentária a título singular, destinada a determinada pessoa. Especificamente em relação ao material genético, é a “autorização” do de cujus para a utilização do seu material genético, ou seja, espermatozoides, óvulos e embriões. Havendo prévia aceitação em escritura pública ou testamento, ou tendo o processo de reprodução já se iniciado quando da morte do cônjuge, o material genético poderá ser utilizado após o falecimento. A discussão passa pela tormentosa questão de serem os embriões seres humanos e, como tal, pessoas não sujeitas à apropriação. O Código Civil nada diz. A Lei de Biossegurança (Art. 5º, § 3º, Lei nº 11.105/05) limita-se a proibir qualquer tipo de comercialização. Na doutrina, há posições para todos os gostos. Uma corrente sustenta que os embriões pré-implantatórios e até o décimo quarto dia a partir da fecundação devem ser considerados res, ou seja, uma coisa ou um produto. Outros consideram uma in fieri ou pessoa virtual. Jurisprudência não há, ao menos nacional. A justiça francesa reconheceu espermatozoides congelados como um tipo único de propriedade. Nas cortes americanas há decisões considerando que, ainda que não sejam pessoas do ponto de vista legal, os embriões não são sujeitos a propriedade no sentido ordinário do termo (DIAS, Maria Berenice. Manual de sucessões. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 405).
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O material genético deixado na forma de legado pode ser utilizado para a concepção de uma prole eventual do testador, isto é, uma prole futura e incerta post mortem (Art. 1.799, CCB).
Os filhos gerados desse procedimento são herdeiros necessários. Entretanto, para que exerçam seus direitos em relação à herança deixada pelo testador, é preciso observar um prazo razoável para sua concepção, do contrário surgiria para os demais herdeiros uma eterna insegurança jurídica quanto aos seus quinhões. Tem-se como referência, de prazo razoável, o art. 1.800, § 4º do CCB: Se, decorridos dois anos após a abertura da sucessão, não for concebido o herdeiro esperado, os bens reservados, salvo disposição em contrário do testador, caberão aos herdeiros legítimos. O filho concebido e gerado por meio da inseminação post mortem tem direitos iguais aos demais descendentes do falecido, em razão do princípio constitucional da igualdade entre os filhos.”
Importante também destacar a possibilidade de ser realizado um testamento genético, por meio do qual o proprietário do material genético criopreservado pode estabelecer o que será feito com o seu material, se será utilizado ou descartado após a sua morte, quem terá direito ao seu uso para procriação, por exemplo. Isso evitaria muitos problemas.
Ressalte-se também que, de acordo com o Código Civil, “o planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas.” Dessa forma, considero que os concebidos “post mortem” não deveriam ter seu direito à herança prejudicado, ainda que isso possa interferir na herança dos herdeiros vivos por ocasião do falecimento e até mesmo impactar juridicamente os herdeiros que haviam sido beneficiados e até negócios jurídicos realizados por esses com terceiros envolvendo direta ou indiretamente o produto da herança.
No Dicionário de Direito de Famílias e Sucessões, de Rodrigo da Cunha Pereira, Terceira Edição, Editora Foco, também está informado que “nos Estados Unidos, durante a Guerra do Golfo, em 1991, e mais recentemente na Guerra do Iraque, em 2003, os soldados enviados para a linha de frente eram instruídos a depositar material genético nos bancos de sêmen para garantir gametas saudáveis caso fossem expostos a material radioativo durante a guerra. Contudo, nada foi estabelecido quanto ao que fazer com esse material quando o soldado viesse a falecer. Muitas viúvas e namoradas entraram com pedido na Suprema Corte americana requerendo a liberação do material para fecundação in vitro e a obtiveram. Assim, a Associação Médica Americana (AMA) instituiu normas para a utilização do material genético post mortem: 1) o material genético não deve ser utilizado para outras finalidades se não as intentadas pelo doador, isto é, procriação; 2) caso o doador tenha deixado instruções, essas deverão ser observadas. 3) do contrário, o material poderá ser entregue ao convivente do de cujus, ficando o médico instruído a avisar o doador desta política no momento da coleta.
Imagino que ainda levará um bom tempo até que nossos tribunais e o legislativo possam decidir quais são as melhores regras aplicáveis diante dessa nova tecnologia referente à reprodução assistida, lembrando que a igualdade e a justiça são valores supremos destacados no preâmbulo da Constituição Federal.
Se você achou interessante esse assunto, vale dar uma lida no artigo que publiquei aqui na Sler, 12 de dezembro de 2022, sobre “barriga solidária” e a reprodução assistida no Brasil.
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Foto da Capa: gerada por IA.