Tenho verdadeiro pavor do uso indiscriminado e muitas vezes inadequado da linda palavra resiliência, que significa a volta ao estado normal depois de algum infortúnio, de uma queda. É o “levantar, sacudir a poeira e ir em frente”. As pessoas a usam como sinônimo de tudo o que tenha a ver com perseverança e fibra moral. Acho ruim. Isso banaliza e desgasta uma palavra forte. Costumo dizer: nem toda perseverança é resiliência, mas toda resiliência é perseverança. Sacou a diferença? Nem acho sutil. Perseverança é seguir adiante enfrentando obstáculos, sem necessariamente ter caído.
São manias, às vezes meio obsessivas, de um cara que vive da palavra e por ela zela.
Neste texto, vou falar de resiliência, porque é exatamente o caso. Refiro-me a uma família que admiro e que tenho como queridos amigos, a começar pelo Luís Fernando Marques da Silva, o Nando, pela sua prima-irmã Denise Helena da Silva e por um dos filhos dela, o Otávio Pereira, 31 anos, mano do Thayron, 36, do Leonardo, 29, e da Naomi, 21. Eles vêm a ser, respectivamente, sobrinho, filha e netos do enorme e eterno ídolo gremista Everaldo Marques da Silva.
Há 50 anos, em 27 de outubro de 1974, Everaldo, lateral-esquerdo campeão do mundo pela seleção brasileira, das “Feras do (gremista) Saldanha” e treinada depois por Zagallo, morria em um acidente na BR-290. Também morreram na tragédia, em que seu Dodge Dart colidiu com uma jamanta carregada de arroz, a filha Daisy Gisele (de dois anos), a esposa do craque, Cleci, e uma tia, Romilda. Sobreviveram o tio Jardelino e a filha Denise, que depois daria à luz o Otávio e seus irmãos, os quais dariam continuidade à herança de muito afeto e grandes feitos históricos dos queridos Marques da Silva.
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Quando eu era criança, o jeito do Everaldo, pra mim, era todo um estilo de ídolo. Reforçou muito meu gremismo. Ser ele aquela estrela dourada na nossa bandeira oficial é de um simbolismo potente. Assim como o hino do Lupicínio (de quem Everaldo era amigo e que morrera poucas semanas antes, em 27 de agosto daquele ano, com quase 60 anos – nasceu em 16 de setembro de 1914), que remete à humildade e à perseverança, a bandeira traz a homenagem a um homem, um homem negro.
Repito o que digo sempre e que comentei em redes sociais no dia 27: pra mim, as grandes conquistas são importantíssimas e intensamente festejadas, mas não são elas que constroem a minha paixão. São os seres humanos que compõem a história da instituição e moldam seu caráter. E há um detalhe nisso tudo. Curiosamente, 27 de outubro é também o aniversário do Otávio, o que aumenta ainda mais o poderoso simbolismo da foto acima. E isso é pura resiliência, porque é uma data em que se chora a ausência do Everaldo e se celebra a vida, que segue e é linda.
A foto que ilustra este texto foi tirada pela própria Denise, e o guri enrolado na bandeira com a estrela dourada em primeiro plano é o Otávio. Ou seja, é o neto do grande ídolo que se eternizou como estrela na bandeira oficial pelo olhar da mãe que o fotografava naquele dia e que sobreviveu ao acidente e deu continuidade à linhagem dos Marques da Silva. Veja bem: é o netinho enrolado na bandeira que leva a imagem do avô na forma de uma estrela. Muito louco isso, não?!
E tem o Nando, que também estava ali naquele dia de 2022 torcendo pelo Tricolor no jogo contra o Sport Recife. O Nando é como um irmão para a Denise e é como mais um filho do Everaldo, até porque a família foi vitimada por outra tragédia, o incêndio das Lojas Renner. Mas essa é outra (triste) história dessa querida família de muita luz e impressionante força.
Voltando à forma como vejo desde criança a figura do Everaldo, ele é de uma linhagem muito especial que me parece encarnar a alma gremista, a alma do “Até a pé nós iremos”, da estrela na bandeira que não remete a títulos arrogantes, a do cara querido que era o Tarciso e que virou mascote, em outra homenagem comovente. Esse é o meu Grêmio! Generoso, plural, humilde e perseverante, tão bem descrito pelo Lupi. O Everaldo substituiu o Ortunho na lateral-esquerda, e o Ortunho, outro homem negro, eu conheci nas cadeiras do Olímpico, já idoso. Meu pai e ele eram colegas no Conselho do clube e amigos.
Vejo a figura do Everaldo de forma muito emblemática, portanto. E se impunha esta homenagem. Aliás, vou mais longe. O atual técnico do rival, em uma compreensível etapa profissional da sua vida, é o meu amigo Roger. Sempre vi estes três homens negros, o Ortunho, o Everaldo e o Roger, como uma estirpe de laterais esquerdos tricolores, provavelmente os maiores e mais identificados que o clube já teve na posição.
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Mas, assim como neste 27 de outubro, o 27 de outubro de meio século atrás era um domingo. E o Brasil se vestiu de luto diante da tragédia que vitimou o ídolo gremista, uma das feras do Saldanha. No domingo, em reportagem do querido colega Cristiel Gasparetto em Zero Hora, Denise, que era a irmã mais velha e tinha seis anos naquele trágico dia, falou das suas recordações. A família se dirigia a Cachoeira do Sul. Denise se lembra do pai conversando num posto de gasolina, no meio do caminho, com o grande amigo Loivo (ex-ponta-esquerda tricolor). Depois, voltaram para a estrada, ela dormiu no banco de trás e, poucos quilômetros depois (10 ou 15, diz Loivo), tudo escureceu.
A jamanta com a qual o carro colidiu levava 20 toneladas de arroz e saía de um posto em Minas do Butiá. O velório do ídolo gremista que se eternizou como estrela reuniu milhares de pessoas. Conforme meu amigo Cris recupera da Zero Hora de então, as pessoas, pasmas, caminhavam em silêncio, cabisbaixas, mostrando incredulidade diante de algo tão devastador. Houve desmaios e cenas de desespero. Denise só foi avisada de que os pais e a maninha quatro anos mais nova tinham morrido (“viajado pro céu”) um mês depois, pela diretora da escolinha infantil que frequentava, com os tios chorando na sala.
Denise ficou sem os pais e a maninha, mas criou uma relação de profundo afeto com a família ampla. A relação com o Nando é de irmãos. Já era assim antes do acidente e se estreitou ainda mais depois. A menininha Daisy tinha um carinho especial pelo primo mais velho, que tinha 12 anos quando o Tio Everaldo faleceu.
Na entrevista que concedeu ao Cris, pra ZH, Denise conta como só se deu conta de que os pais tinham morrido quando viu o corpo da mãe numa foto do acidente, já com mais de 20 anos. Tudo muito triste e delicado. Mas algo ajudou na elaboração do luto. A decisão unânime do conselho deliberativo gremista de pôr a estrela dourada na bandeira é uma forma de manter vivo aquele ser humano lembrado por todos como excelente pai, excelente amigo e maravilhoso jogador de futebol, bom marcador e de técnica apurada, que chegou a atuar no meio-campo. De tudo o que a querida Denise falou ao Cris, algo me calou fundo e aqueceu este coração tricolor: “Quando vejo as pessoas saindo do estádio enroladas na bandeira, ele está ali. Quando eu passava pela Azenha (Olímpico) e via a bandeira, pensava: ‘lá está ele’. Então, ele está presente na história do Grêmio.” Esse é o tipo de situação que engrandece o clube.
Nando ainda se emociona com a situação que viveu já pré-adolescente. “Minha mãe me acordou na madrugada chorando, dizendo ‘perdemos o Tio Everaldo, filho’! Na minha inocência, pensei que ele tinha se perdido em algum lugar! Logo depois, ela falou que ele morreu! Mesmo aos 12 anos, tive uma crise! Ele me levava pra escola quando eu ficava na casa dele, nas piscinas do Grêmio, na ilha do Pavão! Queria que minha mãe fosse morar com ele pra estar perto deles!”, conta o querido Nando, de cuja linda proximidade com a prima Denise eu sou testemunha.
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Foi justa a homenagem. Everaldo chegou ao Grêmio praticamente uma criança, aos 13 anos. Estreou como profissional cinco anos depois, em novembro de 1962. Foi emprestado ao Juventude em 1964 e 1965 pra ganhar cancha. Aos 23 anos, em 1967, chegou à Seleção. No escrete, compôs o grupo com Pelé, Tostão, Jairzinho, Piaza, Carlos Alberto, Gerson, Rivellino, Clodoaldo, Brito, Félix, Leão, Dario e outros ícones do futebol, no time mais épico da História. Seu reserva imediato era o excepcional Marco Antônio, que vem a ser o pai do atual auxiliar-técnico gremista Marcelo Salles. Olha o que é a vida!
Everaldo jogou 374 jogos em nove anos e conquistou três títulos gaúchos (1966, 1967 e 1968) pelo Grêmio. Foram 212 vitórias, 108 empates e 54 derrotas. No meio dessa trajetória marcante, muitas curiosidades ocorreram. Uma que ainda hoje as pessoas não compreendem não é lá muito positiva: foi a biaba que ele deu no juiz José Favile Neto num jogo entre Grêmio e Cruzeiro-BH. Palhinha foi desarmado nitidamente na bola pelo zagueiro gremista Beto Bacamarte, e Everaldo não se segurou diante do absurdo. Reconhecido por ser disciplinado, calmo e jamais levar cartões, foi expulso e pegou gancho de um ano.
O último jogo do ídolo pelo Tricolor ocorreu em 8 de setembro de 1974, menos de dois meses antes de sua morte. Ou seja, como diz a Denise, a estrela ainda brilhava pelo Tricolor quando se apagou na BR-290 e foi parar na bandeira oficial, contrastando com o azul que também é o do céu, o lugar que ele merece.
Shabat shalom!
Foto: Denise Helena da Silva / Acervo de Família
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