O ressentido é aquele que não esquece “o que fizeram com ele”. Como se estivesse sempre à espera de que algo de um passado que não se pode esquecer se repita para sentir de novo, re-ssentir, o ressentido é esse sujeito que está numa posição que coloca o outro em uma dívida imaginária. Impagável. Contraída porque o outro não quis dar a ele o que poderia, ou fazer por ele o que estava a seu alcance. Tinha para dar, poderia ter feito, mas por uma decisão consciente e sempre equivocada – na visão do ressentido – não deu, não fez, preteriu esse que se tornou, então, ressentido. Claro, sempre erra aquele que não escolhe o que é obviamente o falo brilhoso! Escolheu outro falo brilhoso, o que, nessa lógica, apagou o brilho do que então só restou se ressentir.
Sendo o ressentimento um afeto daquele que se sentiu, um dia, preterido na escolha do outro, seu objetivo da vida é, por vezes, atacar esse outro que não o escolheu – bem como o suposto escolhido – e se vitimizar, com o objetivo de deixar o outro culpado pelo seu próprio sofrimento.
Para o advertido, “não esquecer” vem de outro lugar. De algum modo, ele sabe que, em vários momentos, foi e será preterido na vida, porque o desejo do outro é furado, sem dono e sem paradeiro. O advertido sabe que a questão não é não ter sido o escolhido – porque foi isso que o libertou para ele próprio escolher – e sim que muitas vezes na vida não foi dado a ele o que lhe cabia de direito. Algumas vezes porque o outro é mesmo um algoz perverso, muitas vezes porque o outro não se responsabilizou pela sua própria vida e de seu entorno, bem como pelas suas próprias escolhas. O outro fez o que pôde, dentro da sua própria novela neurótica. Sacar que esse outro aí tem a grama que às vezes fica seca, dá uns bichos, até morre, precisa aparar porque não para de crescer, dá tanto trabalho quanto se responsabilizar pela própria grama – e pela própria vida. Mas é isso, ou o pior. A bolsa ou a vida, já anunciava Lacan.
O advertido, diferente do ressentido, não se vitimiza pelo que o outro fez ou não, escolheu ou não – sabido que já é que o desejo do outro é furado, sem dono e sem paradeiro. Ele próprio faz valer o que é seu dever e direito, única coisa que lhe cabe nesse latifúndio com parada certa que é a vida
Os crimes cometidos contra o Brasil no dia 8 de janeiro de 2023 contaram com centenas de ressentidos. Este tempo obscuro da política nacional e internacional depende deles, que não cessam de exaltar um tempo passado como melhor, tempo que só existiu na mesma novela neurótica estruturada pelo afeto do ressentimento. São ressentidos porque não aceitaram que seu falo brilhoso perdeu as eleições de forma democrática e porque aquele que elegeram como algoz ganhou e assumiu legalmente o lugar que lhe cabia de direito. Os ressentidos, unidos, são perigosos. Que tenhamos nos advertido disso.
Meu desejo é que na vida – pública e privada – contemos mais com sujeitos advertidos do que com ressentidos. Esses que suportam renunciar o re-ssentir em prol do desejar.
Daniela Bridon é psicanalista, doutora em Psicologia e membro da APPOA (email, @DanielaBridon, @psicanalise_na_vida)
Foto da Capa: Agência Brasil