Tem dois conceitos de grandes intelectuais brasileiros negros que, combinados, ajudam na compreensão de quem quer compreender.
- Racismo estrutural, cunhado pelo gigante Silvio Almeida, que mostra como o racismo está impregnado no nosso cotidiano e às vezes é invisível para quem não sente seus efeitos.
- Lugar de fala, cunhado pela excelente Djamila Ribeiro, que mostra como é importante a minoria (seja ela social ou numérica) expressar suas próprias angústias para ser entendida e respeitada.
Vou falar então do meu lugar de fala, que está muito machucado, muito sentido, neste momento de inacreditáveis incompreensões. E do que eu falarei? Do antissemitismo estrutural que as pessoas praticam sem se dar conta ou, pior ainda, dando-se conta, mas pouco se importando.
Começo pelo efeito, invertendo um pouco a lógica? Sim. Vamos pelo efeito. O efeito é de a vítima desse preconceito tácito e velado se tornar uma pessoa extremamente desconfiada de todos. De não saber se está falando com alguém que a odeia. E entra aí um transtorno chamado “trauma transgeracional”. No meu caso particular, eu passei toda a infância e adolescência ouvindo meus avós contarem como na Europa eles já não sabiam com quem conversar e em quem confiar, porque eram os culpados pelos males do mundo e sofriam com a incompreensão.
Vamos, então, falar dessa incompreensão em 10 itens?
Ela ocorre quando Israel é alvo de um pogrom* devastador e, em vez de receber solidariedade, é posto na condição de vilão quando sai atrás dos facínoras e busca resgatar os 190 reféns que eles levaram consigo.
Ela ocorre quando o pogrom contra Israel resulta em estupros e dezenas de bebês executados e alguns degolados, e, mesmo diante desta monstruosidade, supostos humanistas não demonstram compaixão.
Ela ocorre quando os judeus são vítimas históricas de perseguições violentíssimas na condição imposta de errantes e, quando enfim, voltam para o local onde são indígenas… são tratados como invasores.
Ela ocorre quando o movimento de autodeterminação desse povo sofrido tem seu significado distorcido a ponto de se tornar justamente tudo aquilo que eles, os judeus, enfrentaram por séculos e séculos.
Ela ocorre quando os judeus sempre quiseram negociar um acordo em que o outro povo indígena desse lugar também tenha o seu Estado, mas são eles, os judeus, os supostos culpados por isso não ocorrer.
Ela ocorre quando Israel estabelece proteção a sua população, e essa proteção é definida como uma espécie de subjugação do povo vizinho de onde partem as agressões que levaram à necessidade de proteção.
Ela ocorre quando o antissemitismo tradicional é assustadoramente revivido e às vezes repaginado, mas se mostra, além de indestrutível, muito eficiente em se naturalizar penetrando na mente das pessoas.
Ela ocorre quando o judeu tenta mostrar todos os itens acima e, ao fazer isso, é visto como o centauro esquisitão num jardim inóspito, cheio de espinhos que o machucam sem que o machucado seja compreendido.
Ela ocorre quando o judeu olha para todos os lados do jogo político-partidário e se sente só e desamparado ao ver que à esquerda há antissemitas travestidos de humanistas e à direita nazistas clássicos.
Ela ocorre quando o judeu chama de antissemita o negador do seu direito ao lar ancestral, e o tal negador diz não ser antissemita, ignorando o lugar de fala do agredido, ou seja, tentando lhe tirar até seu lugar de fala!
Enfim… apesar de tudo:
Shabat shalom!
*(progrom: historicamente, o termo refere-se aos violentos ataques físicos da população em geral contra os judeus)
Leia também do Autor:
Foto da Capa: Freepik