Pois então. Vi a aguardada quarta temporada da série israelense Fauda e, até já nem me lembro por que motivo, perguntei ao Senhor Google, enfim, o que significa essa palavra que dá título à série. Pus a pergunta, em português, e veio uma resposta chocante.
“’Fauda, caos em árabe, apresenta a unidade militar dirigida pelo comandante Doron Kavillio, que planeja invasões nos territórios palestinos.”
Opa!
Você viu Fauda?
Ok, algumas operações ocorrem em territórios palestinos ou até em países como o Líbano (a palavra “caos” é muito pertinente ao contexto) e inclusive fora do Oriente Médio (EUA, Europa), mas que história é essa de “invasões nos territórios palestinos”, Professor Google?
A série, deliciosa, equilibra a violência dos tristes combates entre israelenses e palestinos (judeus e árabes), sem maniqueísmos, com os conflitos psicológicos, pessoais, de personagens muito humanos e fascinantes, entre os quais está o citado Doron.
Mas fiquei com um sentimento amargo ao ler essa definição no Google.
Quem escreveu tamanha estupidez?
Quem aceitou a mentira?
Qual a intenção de distorcer um enredo?
Buenas, sendo integrante de uma etnia marcada pela perseguição, não consigo pensar em outra possibilidade que não seja a tentativa de criar uma narrativa fake, mais um tijolinho na enorme construção da leviana, sorrateira e milenar narrativa antissemita.
Eu já falei umas quantas vezes aqui: do meu lugar de fala judaico (e essa definição requer lugar de fala, não me tirem isso), asseguro que a demonização de Israel é, sim, antissemitismo.
Veja bem: falamos de um povo passa 1,9 anos numa diáspora em que é vítima de discriminações, segregações e perseguições violentíssimas. Quando ocorre a Shoá (“Holocausto”), uma das duas mais graves violências perpetradas contra grupos humanos (a outra foi a escravização africana), finalmente o mundo diz basta, e essas vítimas recebem aquilo que lhes é de direito, que é o retorno ao lar ancestral, onde refundam sua linda nação.
O cara que questiona a legitimidade do Estado de Israel é 100% antissemita, porque está ignorando o sofrimento desse povo. A invisibilidade e a demonização dos judeus e de Israel são a continuação da milenar violência antijudaica, sempre se repaginando.
Vamos a uma ressalva essencial: uma coisa é ser contra a legitimidade (literal e figuradamente sagrada) do lar ancestral judaico; outra é criticar o governo de Israel. Por acaso, neste momento, tenho vontade de estar em Israel só pra ir às ruas protestar contra o governo.
Percebam a diferença e não façam simplificações levianas.
Portanto, ler que uma série tão bem-feita, tão bonita e tão humana trata de invasões das terras palestinas é de uma desonestidade descomunal.
Um tijolinho a mais. Mas de tijolo em tijolo se forja uma narrativa.
Sou uma pessoa atenta a todo e qualquer desrespeito às diferenças e atropelo à diversidade. Seja racismo, homofobia, preconceito contra pessoas com deficiências etc.
Na verdade, todas essas modalidades do mal têm em comum a violência de atingir a identidade das pessoas, seja pela cor da pele, pela etnia, pela orientação sexual ou pelas diferentes limitações. E isso é sempre monstruoso. É sempre desumano.
Mas há diferenças.
O antissemitismo é provavelmente o preconceito mais sorrateiro.
É uma espécie de ódio que penetra na cultura, no imaginário. É ambidestro, sendo acolhido de variadas formas tanto pela direita quanto pela esquerda. Quando não existia Israel, o antissemitismo tinha apelo racial, biológico; depois de Israel, passou a ser o oposto.
O judeu era raça e necessariamente povo, que contaminava com pestes e disseminava com bolchevismos ou liberalismos, sempre ao sabor das circunstâncias; depois, com o advento de Israel, pra desacreditar o legítimo Estado judaico, passou a nem ser povo.
Agora vem esse tijolinho sacana no Google incrementar uma narrativa malvada.
Por favor, Senhor Google, tira esse troço dali!
…
Sempre meço a importância de Israel lembrando a quantidade enorme de sobreviventes da Shoá (“Holocausto”) com quem eu próprio tive longas conversas quando fui correspondente da Folha de S. Paulo em Buenos Aires (aliás, posso lembrar as conversas com meus próprios avós…). Uma unanimidade entre aqueles senhores e aquelas senhoras sofridos e sofridas era demonstrar alívio quando se falava no nosso único cantinho, nosso lar ancestral.
Frases que ouvi:
“Agora temos quem nos proteja.”
“Agora temos pra onde correr.”
Perceba a enormidade do seu antissemitismo se você insiste em demonizar ou deslegitimar o lar ancestral judaico, que um dia foi a Terra de Israel, depois foi Judeia (como havia a Galia do Asterix, no Império Romano) e, mais adiante, tornou-se “Palestina” (referência ao gentílico “filisteu”, que era o povo inimigo dos judeus séculos atrás). Volto à ressalva: criticar o governo israelense é totalmente legítimo, inclusive eu me perfilo nessa crítica atualmente (faz já uns bons anos, diga-se). Mas existe uma fronteira que não pode ser ultrapassada.
E o Senhor Google precisa cuidar pra não alimentar essa maldade.
A Torá existe há milênios, e há milênios consta lá, permanentemente, em diversas passagens, a presença judaica em Jerusalém. É quase como uma certidão de posse. Os judeus rezam há milênios voltados pra Jerusalém, ora. E o tão castigado sionismo é, em suas diferentes vertentes (de algumas discordo), simplesmente um apelo por autodeterminação do povo judeu no seu lar ancestral, onde produz até séries lindas que passam na Netflix.
Quem diz isso, como eu e todas as pessoas lúcidas (de esquerda, direita ou centro) dizemos, não está pregando que os árabes locais não tenham direito também à sua Palestina. Os árabes que vivem naquele local, como os judeus, têm suas legítimas aspirações.
Mentir que uma série trata de “invasões” não ajuda a estabelecer a paz.
Estabelece a discórdia em vez de promover a concórdia.
Mas saiamos da virtualidade por vezes leviana e irresponsável e vamos para a genialidade da literatura de altíssimo nível. O escritor israelense Amos Oz conta, em De Amor e Trevas, que seu pai fugiu das perseguições na Lituânia, onde via muros pichados com a frase “Judeus, vão embora para a Palestina!”. Décadas depois, já cidadão israelense, ele voltou à Lituânia, para visitar seu antigo lar, e viu muros com a pichação “Judeus, saiam da Palestina”.
Antes eram os muros. Agora, é o Google.
Cuidado com os pichadores!
Shabat shalom!