“O único herói válido é o herói em grupo, nunca o herói individual, o herói solitário.”
Hector Oesterheld
A icônica “El Eternauta”, história em quadrinhos argentina de 1957, sempre foi muito além da sua origem, e isso fica claro nas reedições que teve desde então. Na época do primeiro lançamento, a Argentina já tinha vivido os golpes militares de 1930, 1943 e 1955, e o recado contra o arbítrio era claro. As quarteladas mais cruéis, a de 1966 e principalmente a de 1976, estavam por vir e foram contempladas em reedições. Mas a série da Netflix que estreou no dia 30 vai além das ditaduras.
Tanto é assim que uma das licenças poéticas essenciais para a sua atualização foi a transformação do protagonista Juan Salvo (o sempre ótimo Ricardo Darín) em veterano das Malvinas, conflito ocorrido cinco anos depois da morte do autor da HQ, Héctor Germán Oesterheld (na parceria com o ilustrador Francisco Solano López), assassinado, assim como todas as quatro filhas, na devastadoramente violenta ditadura instaurada pelo golpe militar de 24 de março de 1976.
Oesterheld morreu em 1977 ou 1978 (foi sequestrado pelos militares em 27 de abril de 1977 e desde então nunca mais foi visto), e a Guerra das Malvinas ocorreu na mesma época (abril) do ano de 1982, sendo ela própria uma ação desesperada do regime militar para se manter e a sua danação.
Já estava guardada na gaveta mental deste colunista escrever sobre o mundo crudelíssimo em que vivemos. Percebam: estamos normalizando aberrações como o desvio da merenda de criancinhas; o leitinho antes inocente adulterado com soda cáustica; a renda dos idosos (aposentados) surrupiada; um presidente que imita alguém sem ar para debochar das mortes na Covid; figuras públicas desdenhando do pogrom de 7 de outubro em Israel como se não tivesse sido algo insuportavelmente monstruoso (e depois justificando os terroristas que o perpetuaram e que defendem o inadmissível apagamento de Israel e dos judeus); na própria Argentina um presidente eleito com o discurso de que, no afã da desregulação socioeconômica radical, liberaria até o comércio de órgãos.
Enfim, um mundo que não depende de golpes militares para ser um pesadelo distópico como o retratado pela HQ e agora pela linda série que tem o requinte de começar com a cúmbia de Gilda e terminar com o blues do Manal e seu “suco de tomate gelado” a correr pelas veias dos maus.
E a série nos entrega esse sentimento de exasperação e impotência que um mundo distópico provoca independentemente de haver ou não uma ditadura militar já desnecessária, porque o que ela ofereceria não mais requer armas. Um mundo em que o absurdo ocorre de forma muito mais sutil e sorrateira. Uma época em que o cinismo claramente venceu, em que o egoísmo tomou conta do cotidiano sem a necessidade de alguma intervenção militar para calar quem defende um mundo solidário. Mas, no enredo de Bruno Stagnaro, com supervisão de Martín Oesterheld (neto do autor da HQ), continua valendo a essência que nos traz o texto original: o que a obra enfatiza é a ideia do coletivo lúcido e generoso como sendo o próprio grande herói, como a salvação das mãos que não se soltam, até como aquilo que talvez a humanidade um dia experimente, que é o “messias”, mas no formato coletivo e não na condição individual de um líder, um caudilho, uma figura autoritária, que seria muito paradoxal.
“El Eternauta” é um símbolo da resistência argentina, e seu autor é um herói sacrificado pela violência de coturnos. No enredo, Juan Salvo enfrenta uma nevada de toxicidade fatal que se derrama sobre Buenos Aires. A neve, fria e mortal, é uma metáfora de um inimigo invisível e poderoso, que a série, na atualização chancelada pelo neto do autor, deixa claro não se resumir à obviedade de uma ditadura opressiva. Na trama, os sentimentos de perseverança, generosidade, egoísmo, medo, coragem, pusilanimidade e valentia se misturam de forma muito plural e realista.
É, fundamentalmente, uma obra humana e humanista. O autor deixa nítida sua visão ideológica e a intenção de provocar a reflexão coletiva. Convenhamos que são valores atemporais e universais, seja qual for o contexto. Nesse caso, autor e obra se confundiram. Oesterheld não pegou em armas, mas era uma espécie de assessor de imprensa dos montoneros, a guerrilha da esquerda peronista. Isso e as metáforas que criava na HQ o levaram a ser perseguido pela repressão. Foi detido e desapareceu naquele fim de abril de 1977, então, como já tinham sido detidas e desaparecidas suas quatro filhas. Mas a obra ficou, como alerta, denúncia e memória, e a Netflix agora ajuda a que algo tão essencial se universalize.
El Eternauta es eterno.
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Shabat shalom!
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Foto da Capa: Divulgação