Sim, eu sei que este texto tem algum delay. “She said” (“Ela disse”) é uma produção de pouco mais de um ano atrás. Mas fui vê-la só agora no Prime, e é uma das histórias que mais fizeram eu sentir orgulho da minha profissão: o jornalismo. Por quê? Porque mostra a vibração de duas repórteres com o sentimento de ter informações relevantes nas mãos e de poder, com essas informações, modificar ou ao menos desencadear uma enorme mudança comportamental e de visão do mundo.
O que aquelas repórteres fizeram foi decisivo na luta pela busca de espaço e de respeito pelas mulheres neste mundo dominado pelo machismo explícito e estrutural, em que homens são opressivos muitas vezes sem se darem conta disso. Trata-se de um dos filmes que melhor descreve a importância da busca dos fatos como alimento para a evolução dos costumes.
Eu digo muitas vezes que sinto vergonha do meu gênero. Sério, pessoal, eu próprio já fiz muita merda na minha vida quando jovem, numa época em que poucas pessoas refletiam sobre algo tão essencial. Não fiz nenhuma grande merda, mas fiz as minhas merdinhas, reconheço isso e duvido que haja algum machinho com mais de 60 anos que não as tenha feito, em maior ou menor medida. Era permitido e incentivado como algo comum do jogo de sedução o homem interpretar “não” como “sim”. Era permitido e incentivado cultuar o corpo feminino como um objeto. Era permitido e incentivado o uso do corpo feminino para o próprio prazer sem questionar se ela também gostou.
Enfim, mundo machista pra caralho!
Literalmente.
Pois o filme de pouco mais de duas horas (129 minutos), dirigido por Maria Schrader, roteirizado por Rebecca Lenkiewicz e baseado no livro homônimo, de Jodi Kantor e Megan Twohey, traz um enredo extremamente importante para a luta das mulheres na crueza da vida real. Desvendou fatos asquerosos e removeu hipocrisias que os normalizavam, acompanhadas de risos cínicos e maus. Os atores, excelentes, foram Carey Mulligan, Zoe Kazan, Patricia Clarkson e o saudoso Andre Braugher (quem viu a série Brooklin 99 sabe a que me refiro).
As repórteres, com apoio decisivo da direção do The New York Times, tiveram uma tenacidade impressionante até conseguir o efeito dominó que levou um depoimento a outro e a uma marcante série de reportagens. No fim, várias falaram, se apoiaram e, com isso, mudaram os hábitos da indústria cinematográfica, ao exporem, em outubro de 2017, a conduta criminosa do poderoso produtor Harvey Weinstein.
Foram duas décadas em que Harvey Weinstein fez os maiores absurdos, entre abusos e violações, como o cara mais poderoso da produtora Miramax. A exposição desses fatos inadmissíveis deu um choque necessário de realidade na sociedade. Tornou-se inadmissível um homem usar seu poder para humilhar, submeter e provocar muita dor em mulheres. Se tirou a normalidade de algo que era tolerado e corrente nos bastidores não só do cinema.
O pacto de silêncio se quebrou, e as comportas das denúncias se abriram para sempre. Foi daí que se consolidou o movimento #MeToo. E por trás de tudo esteve a atuação de jornalistas, que foram a campo conversar com as fontes, checaram e rechecaram informações. Ou seja, jornalismo puro sangue. Só um suposto pilar do jornalismo ficou menor nessa operação pela busca da verdade. Harvey Weinstein teve 48 horas para apresentar sua versão, o que não configura o clichê do “ouvir o outro lado”, que às vezes é desnecessário para a construção de uma história completa, justa e ética (mas esse é papo pra outro momento). Foi dada voz para que ele falasse sobre fatos acachapantes, mas esses fatos estavam ali expostos, sem chances de remoção. A fala da besta era algo protocolar. Importante, mas protocolar.
É como uma matéria reafirmando que a Terra é redonda. Você até acha um lunático que conteste essa informação definitivamente comprovada pela ciência. Mas é só protocolo.
Era usual as atrizes iniciantes emudecerem diante de Weinstein, que não era um “monstro”, mas um homem comum e corrente. Talvez, sim, um monstro, mas nada incomum. E a frase de uma delas é extremamente simbólica: “Roubaram a minha voz justamente quando eu estava a ponto de encontrá-la”.
O enredo é do jornalismo mais essencial. De busca incessante pelos fatos. De zero hipocrisia. De trabalho efetivo, sem concessões. E de alimentar a História com dados objetivos.
Algumas curiosidades dão ainda mais peso à produção. Atrizes que sofreram com Harvey Weinstein participaram das filmagens. As autoras do livro em que baseou o livro são as próprias autoras da reportagem do NYT. Entre os produtores do filme, está o ator Brad Pitt, que namorava a principiante atriz Gwyneth Paltrow quando ela foi assediada por Weinstein e que, ao saber disso, o enfrentou (fico imaginando a emoção dessas pessoas).
As mulheres, o cinema, o jornalismo e a vida venceram.
Nada que impeça o surgimento e ressurgimento de figuras escrotas, até pelas urnas. Mas o que menos importa é essa resistência reacionária e os surtos obscurantistas que vemos por todos os lados. O importante é que um filme desses afirma a irrefreável e definitiva evolução dos costumes. Os monstros e as baratas que esperneiem. O jornalismo e a arte nos salvam.
Shabat shalom!
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Foto da Capa: Divulgação