Não quero entrar em detalhes sobre opções eleitorais e convicções ideológicas, mas dou uma pista que faz de mim uma pessoa politicamente insuspeita para dizer o que digo: é com tristeza que reconheço que Lula tem feito muito mal ao povo judeu, algo com raros antecedentes na nossa história. Como todo gado (descobri que bois e vacas são ambidestros), os animais semoventes de esquerda estão buscando uma saída para corrigir o descaminho lulista com retóricas inconsistentes.
Vejo os caras tentando dizer que Lula se referiu ao Holocausto como uma espécie de hipérbole pra caricaturizar a reação israelense e chamar a atenção com o objetivo de interromper a ofensiva militar. Tem quem espanque a semântica pra justificar o uso equivocado da palavra “genocídio” (eliminar um grupo humano de forma deliberada), algo já em si extremamente agressivo aos judeus, povo cuja maior tragédia, entre tantas que sofreu, foi o motivo da criação desse termo. É forte isso!
Judeus também rejeitam Nethanyahu
Outros recorrem a judeus famosos críticos à truculência do governo de Netanyahu como se disso se tratasse, numa simplificação grosseira (Nethanyahu tem e sempre teve forte rejeição entre judeus em geral e israelenses em especial, por motivos também de política interna). Como se quem entende a necessária e incontornável reação israelense diante do devastador pogrom sofrido é naturalmente de extrema direita (engraçado que não dizem isso de quem justifica o grupo assumidamente genocida, terrorista, obscurantista, homofóbico, misógino e racista Hamas) e apoiador do Bozo.
Espremendo bem, vão lá no fundo do cesto de lixo e encontram um tal de Breno delirante, o Sérgio Camargo lulista, um capitão do mato judeu que naturalmente é amado pelos antissemitas (“Viu, até judeus são antissionistas!”, vibram os tarados), porque eles amam de paixão os judeus dóceis e que desprezam sua identidade étnica. Usam a título de exemplo até os Naturei Karta, judeus fundamentalistas que rejeitam a refundação do lar judaico sem que para isso tenha chegado o Messias (veja bem: não que sejam contra a existência de Israel um dia. É só delírio). Repetindo: o tão demonizado sionismo é só o movimento de autodeterminação judaica no seu lar ancestral diante de tantas perseguições na diáspora, tendo diversas vertentes, da direita à esquerda, por vezes defendendo também a Palestina.
Para que fique muito claro, uso novamente a mim mesmo como “case”. Minhas convicções são sociais-democratas, e basta você voltar a textos anteriores aqui na SLER pra ver o quanto acho Bolsonaros e Netanyahus intragáveis. Pra ver o quanto sempre fui defensor de um Estado palestino ao lado de Israel, como quer a esmagadora maioria dos judeus. O quanto lamento qualquer violência. O quanto tenho na minha trajetória a marca intensa de fazer da defesa de minorias o centro do meu trabalho.
Volte lá, por favor, se você tem dúvidas.
Mas agora continue a leitura deste texto.
O mal que Lula faz aos judeus e que deveria ser motivo de improvável retratação (não adiantam os contorcionismos, até porque Lula foi muito claro e específico na frase em que disse, a título de uma absurda comparação, “quando Hitler decidiu matar os judeus”) talvez não esteja sendo entendido na sua dramática dimensão. Assim como o gado da direita fazia de tudo pra justificar a cloroquina e a rejeição à vacina porque precisava defender seu ogro de estimação, o gado canhoto busca de todas as formas contornar o incontornável. Sim, Lula errou muito feio! É gravíssimo! Num mundo polarizado, esse tipo de intransigência é inevitável, porque as pessoas se tornam reféns de narrativas e personagens, mesmo que claramente absurdos.
Genocídios de verdade
Vamos lá. Antes de dar nomes aos bois (sugestiva essa expressão), recapitulemos. A manifestação irresponsável do falecido Lula da Silva comparando o conflito em Gaza à Shoá tem inúmeros erros. Pra começar, ao dizer que nada houve de igual na história recente, uau, Lula ignora vários outros eventos muito piores do que o atual, como o genocídio promovido pelos hutus contra os tutsis em Ruanda (800 mil mortos), o Grande Salto para a Frente na China (ao menos 15 milhões de mortos), os 2 milhões de mortos no governo do Khmer Vermelho, no Camboja, os 600 mil mortos em Tigray, na Etiópia, o meio milhão de mortos na guerra civil síria, os 380 mil mortos no Sudão do Sul. Isso pra citarmos só os números, sem abordar os contextos (nenhum deles é uma reação como a de Israel).
Haja seletividade. Por que será?!
Tenho algumas pistas de discursos parecidos que a história da humanidade me traz à lembrança desde a Judeia (depois nomeada como Palestina, quando o império romano varreu os judeus de sua casa) até a Shoá na Europa da Segunda Guerra, passando pela inquisição medieval e pelos pogroms. Desconfio que esses eventos numa crudelíssima diáspora não se repetirão, graças a D’us, por um motivo poderoso e muito apropriado ao tema deste texto: a refundação de Israel como lar judaico em 14 de maio de 1948, com a tentativa de uma partilha que permitisse também a existência do Estado árabe local (digo “local” porque já existem 22 Estados árabes no mundo).
Mas são muitas as pontas desencapadas dessa narrativa bovina escrita com a mão canhota: os judeus não invadiram a Alemanha matando deliberadamente, torturando, violentando e sequestrando os seus cidadãos. Também nunca atiraram centenas de foguetes com trajetos aleatórios sobre a população civil (os atuais têm os terroristas como alvo), não possuíam uma milícia armada de 40 mil soldados orientados a abrir mão da própria vida pra varrer um povo do mapa e jamais se imiscuíram entre civis em túneis e bunkers pra provocar mortes e martírios de forte e pensado teor propagandístico. Os judeus morreram só por serem judeus. Na Shoá, mais de um terço da população judaica mundial (dois terços da população judaica europeia) foi assassinado industrialmente só por ser quem era, e isso, sim, é genocídio (no caso, 6 milhões só de judeus, fora outras minorias). Já a infelizmente necessária ofensiva israelense em Gaza acabará assim que os reféns israelenses (ah, esqueceram-se deles?!) sejam libertados e o Hamas baixar as armas.
E os reféns, sumiram?
Outra falácia que o presidente repete é dizer que as Forças de Defesa de Israel (reflitam sobre o nome do exército israelense, ele em si diz o seu propósito) são uma potência militar lutando “contra mulheres e crianças”. Céus! Como não percebem o absurdo?! Além de apagar a figura dos terroristas que se misturam à população de Gaza (é como se o Hamas não existisse, não tivesse feito as atrocidades que cometem e não mantivesse reféns em cativeiro), parece que os jovens soldados israelenses são máquinas mortíferas (é exatamente o contrário). O Hamas sumiu, pessoal? E os reféns? E os jovens que perderam a vida nos kibutzim e na rave do devastador pogrom de 7/10?!
Enfim, depois de falarmos sobre tantas pontas abertas na narrativa frágil que o falecido Lula da Silva endossou, vamos ao “Eu acuso” (sim, copio Zola no Caso Dreyfus) a que me proponho. E ressalvo aqui que nos últimos dias o próprio Lula e o ex-chanceler Celso Amorim, entre outros, insistiram em tentar contornar o assunto sem fazer o gesto simples e humano de uma necessária retratação à fala ignóbil, agressiva, desrespeitosa, irresponsável. Vou listar absurdos que andei vendo por aí, muitos deles encorajados pela atuação do mandatário brasileiro:
1 ) Acuso que vi o cartum de um homem barbudo de nariz adunco com as mãos sujas de sangue após matar criancinhas (antissemitismo clássico, medieval!).
2 ) Acuso que vi mapa dos EUA com parte sendo hipoteticamente judaica, como quem compara uma eventual ocupação dos EUA com a legítima volta dos judeus ao seu lar ancestral, ocupado pelos turcos-otomanos e depois pelos britânicos até a primeira metade do século 20. Uma comparação violenta.
3 ) Acuso que vi crianças e jovens evitando o uso de estrelas de David nos seus ambientes de estudo para evitar serem discriminados e até temendo ser vítima de violência.
4 ) Acuso que vi professora universitária sugerindo que ‘judeus sionistas” (aviso útil: praticamente todos os judeus são de alguma forma sionistas) fossem caçados nas ruas.
5 ) Acuso que vi sindicalista da minha categoria profissional, um notório burro, citando uma mulher brasileira de etnia judaica como sendo uma “brasileira” (assim, entre aspas).
6 ) Acuso que vi chamarem a defesa israelense da própria integridade como “genocídio” por celerados que propunham o genocida slogan “Palestina do rio ao mar”.
7 ) Acuso que vi supostos esquerdistas que defendem grupos genocidas, obscurantistas, racistas, misóginos e homofóbicos sobrepondo uma suástica à estrela de David.
8 ) Acuso que vejo pessoas ignorarem o fato de que a busca do califado por grupos como Hamas e Isis é exatamente o mesmo que os nazistas queriam com a “raça ariana”. E que esse califado liquidaria e perseguiria minorias. E que não só Israel seria aniquilado, mas todos os judeus do mundo seriam perseguidos.
9 ) Acuso que vi esquerdistas mugirem como o mais fanático gado bolsonarista fazia ao cantar o hino nacional em volta de um pneu, justificando a teoria da ferradura. Vi a inacreditável contradição de grupos em tese de esquerda defenderem o obscurantismo que quer destruir suas supostas bandeiras.
10 ) Acuso que vi pessoas comparando o simbolismo do “povo eleito”, que nunca teve conotações de superioridade ou de subjugação do outro, com a ignóbil tese da “raça superior” ariana. Até a isso chegaram! Se conhecessem a filosofia judaica, perceberiam que é todo o contrário. A Torá evita santificações (não há santos no judaísmo, fé radicalmente monoteísta), e todos seus personagens são essencialmente humanos, com falhas propositais para passar essa mensagem. E o judaísmo se caracteriza justamente por, entre outros muitos princípios, não ser proselitista. O lance do “povo eleito” é no sentido de ter recebido os 10 Mandamentos e levar adiante a palavra da Torá. Mas isso não afeta superioridade e não quer dizer que outros povos não sejam também “eleitos”.
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Por fim… acuso o falecido Lula da Silva por, com sua desastrada fala, chancelar todos os absurdos itens citados acima, o que faz com que seja urgente uma imediata retratação.
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E repito: é com muita dor na alma, mas com a leveza reconfortante de quem sabe estar do lado lúcido e justo, que imploro ao representante, até há pouco, do meu campo ideológico: por favor, chega de tergiversações pra justificar o injustificável. Retrate-se, presidente Lula! Ainda dá! Juro que, caso ocorra esse muito improvável gesto de grandeza, aceito tua ressurreição e paro de te chamar de “falecido”.
PS sobre “sionismo”
Cabe repetir o conceito de “sionismo”, porque a nova armadilha do ódio ao judeu é dizer aos incautos que tentamos equiparar antissionismo e antissemitismo, e isso seria inadequado, seria uma artimanha. E o q vou dar aqui é informação, não mera opinião: está corretíssimo dizer genericamente que ser contra o sionismo é ser antissemita, porque o sionismo é, basicamente, a autodeterminação do povo judeu no seu lar ancestral, e nada há de errado nisso, até porque o judeu é povo originário daquela terra (e quem tenta negar isso não merece meu respeito, minha energia, meu tempo e minha interlocução). Se você quiser criticar uma das vertentes do sionismo, óbvio que é aceitável, eu próprio faço isso. Meu sionismo, como a da esmagadora maioria dos judeus, defende o Estado árabe (Palestina) estabelecido ao lado do Estado judeu (Israel) caso isso seja seguro e possível, nas fronteiras demarcadas, sem ocupações do que foi definido para ser alheio. Logo, comparar sionismo genericamente a “colonialismo”, “racismo” e outros absurdos é, sim, preconceito, ignorância, antissemitismo. Se o cara é bem específico ao se dizer contra a mera existência e o direito de defesa de Israel, o que equivale à autodeterminação do povo judeu no seu lar ancestral, bem, aí o sujeito é um racista antissemita juramentado e incorrigível.
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Para ler mais sobre o tema, confere os meus textos anteriores:
> Antissionismo é antissemitismo
>> Os poréns seletivos que constroem narrativas desonestas
>> Compreenda o conflito israelo-palestino
>> Efeitos do antissemitismo estrutural
>> Não é preciso fazer montagem
>> A invisibilidade dos israelenses
>> Só se aperta a mão de quem a estende
>> A maldade independe de ideologia
>> Presidente Lula, enxergue-nos
>> A esquerda burra dá vida à extrema direita
>> Mais atenção às palavras
>> A narrativa vazia do “intelectual” antissemita
>> Aviso aos antissemitas: vocês nos fortalecem
>> A única opção justa: 2 Estados e 2 povos, Israel e Palestina
>> A necessidade fez deste meu espaço um espaço judaico
>> Por que o antissemitismo é uma espécie de síndrome?
>> Todos devemos ler o livro de Nelson Asnis
>> Conheça a pluralidade generosa e humanista do sionismo
>> Fala sobre Holocausto é a homenagem de Lula ao Ustra
Shabat shalom!