Em 30 de outubro de 2023 foi promulgada a Lei 14.711 que, dentre outros assuntos, tratou sobre a execução extrajudicial de créditos garantidos por hipoteca, a execução extrajudicial de garantia imobiliária em concurso de credores, e o procedimento de busca e apreensão extrajudicial de bens móveis em caso de inadimplemento de contrato de alienação fiduciária.
Essa lei chamada, pelo governo de “Marco de Garantias” visou tornar muito mais rápido o recebimento pelos credores e instituições financeiras das importâncias emprestadas aos seus clientes. A justificativa do governo é a facilidade do acesso ao crédito, e teoricamente a diminuição das taxas de juros, o que custo a crer venha a ocorrer de forma significativa. Lembro quando o governo autorizou a cobrança das bagagens em aviões, alegou que isso poderia reduzir os preços das passagens, o que não ocorreu.
Importante salientar que a Presidência da República, em atenção ao posicionamento do Ministério da Justiça e Segurança Pública, vetou a possiblidade de busca e apreensão de móveis, por entender que essa é inconstitucional. No entanto, os vetos do presidente da República foram derrubados pelo Congresso Nacional, em 23 de dezembro de 2023.
Vale transcrever parte das razões do veto, que foi derrubado:
“Em que pese a boa intenção do legislador, a proposição legislativa incorre em vício de inconstitucionalidade, visto que os dispositivos, ao criarem uma modalidade extrajudicial de busca e apreensão do bem móvel alienado fiduciariamente em garantia, acabaria por permitir a realização dessa medida coercitiva pelos tabelionatos de registro de títulos e documentos, sem que haja ordem judicial para tanto, o que violaria a cláusula de reserva de jurisdição e, ainda, poderia criar risco a direitos e garantias individuais, como os direitos ao devido processo legal e à inviolabilidade de domicílio, consagrados nos incisos XI e LIV do caput do art. 5º da Constituição.
Registre-se que, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.668/DF, o Plenário do Supremo Tribunal Federal – STF decidiu que a busca e posterior apreensão, efetuada pela Agência Nacional de Telecomunicações sem ordem judicial, com fundamento apenas no poder de polícia do qual a agência reguladora é investida, ofende a inviolabilidade domiciliar do inciso XI do caput do artigo 5º da Constituição.
Além disso, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.886/DF, o Plenário da Suprema Corte entendeu que a decretação de indisponibilidade na via administrativa é inconstitucional, por se tratar de forte intervenção no direito de propriedade, de forma que deve ser respeitada a cláusula de reserva de jurisdição.
Todavia, ao julgar, em 25 e 26 de outubro de 2023, o Recurso Extraordinário nº 860.631/SP, com repercussão geral reconhecida (Tema 982), o Plenário do STF considerou constitucional o procedimento de execução extrajudicial da alienação fiduciária de bens imóveis em garantia, porém consignou que, se o devedor fiduciante permanecer no bem imóvel após a consolidação da propriedade, será necessário o ajuizamento de ação de reintegração de posse para conseguir a desocupação do bem imóvel.
Vale reproduzir o seguinte trecho do Acórdão do Recurso Extraordinário acima mencionado:
“Nesse sentido, exemplifica-se, a partir da própria redação legislativa, a possibilidade de controle judicial posterior caso seja necessária ação de reintegração de posse do imóvel, na situação em que o devedor fiduciante nela permaneça após a consolidação da propriedade (art. 30 da Lei 9.514/1997). Trata-se de ocasião na qual será possível a análise judicial da legalidade do procedimento executivo, além de essa ser também providência possível acobertada pelo direito de ação em geral. Desse modo, inexiste violação à garantia da inafastabilidade de jurisdição, tampouco há ofensa à garantia do juiz natural (art. 5º, LIII, CF/88), tendo em vista que, não obstante a consolidação da propriedade independentemente de intervenção judicial, assegura-se às partes a possibilidade de controle de legalidade do procedimento executório na via judicial. Dispensa-se, assim, que o credor fiduciário obtenha na via judicial o reconhecimento do direito já avençado extrajudicialmente, sem prejuízo que o devedor fiduciante pleiteie suas razões em via própria junto ao Poder Judiciário.”
De qualquer forma, entendo que é evidente que a busca e apreensão extrajudicial e a própria execução extrajudicial oferecem risco à estabilidade das relações entre particulares pois permitem que direitos e garantias individuais sejam violados independentemente de decisão judicial.”
Isso já está dando o que falar, e nos dias 9 e 14 de fevereiro deste ano, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a União dos Oficiais de Justiça (UniOficiais-BR) acionaram o Supremo Tribunal Federal (STF) em razão de entenderem inconstitucional a busca e apreensão e a transferência da propriedade de bens, de forma extrajudicial, ou seja, sem o crivo do judiciário.
Imagino que um julgamento sobre a constitucionalidade desses dispositivos poderá demorar algum tempo, mas não tão longo assim, em razão da importância que tais inovações permitem. Vale lembrar, que ao tratar de assunto semelhante, em 26 de outubro de 2023, o STF entendeu que ser constitucional a execução extrajudicial de imóvel dado em garantia fiduciária de financiamento imobiliário, conforme disposto na Lei 9.414 de 2) de novembro de 1997.
Execução extrajudicial de créditos garantidos por hipoteca
Hipoteca é uma garantia que recai sobre:
I – os imóveis e os acessórios dos imóveis conjuntamente com eles;
II – o domínio direto;
III – o domínio útil;
IV – as estradas de ferro;
V – os recursos naturais a que se refere o art. 1.230 do Código Civil, independentemente do solo onde se acham;
VI – os navios;
VII – as aeronaves.
VIII – o direito de uso especial para fins de moradia;
IX – o direito real de uso;
X – a propriedade superficiária;
XI – os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas e a respectiva cessão e promessa de cessão.
Em razão do disposto no Marco de Garantias, os créditos garantidos por hipoteca poderão ser executados extrajudicialmente da seguinte forma:
I – Vencida e não paga a dívida hipotecária, no todo ou em parte, o devedor e, se for o caso, o terceiro hipotecante ou seus representantes legais ou procuradores regularmente constituídos serão intimados pessoalmente, a requerimento do credor ou do seu cessionário, pelo oficial do registro de imóveis da situação do imóvel hipotecado, para purgação da mora no prazo de 15 (quinze) dias, observado o disposto no 26 da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997, no que couber.
II – Se decorrido o prazo, não for purgada a mora, estará autorizado o início de procedimento de excussão extrajudicial da garantia hipotecária por meio de leilão público, e o fato será previamente averbado na matrícula do imóvel, a partir do pedido formulado pelo credor, nos 15 (quinze) dias seguintes ao término do prazo estabelecido para a purgação da mora.
III- No prazo de 60 (sessenta) dias, contado da averbação, o credor promoverá leilão público do imóvel hipotecado, que poderá ser realizado por meio eletrônico.
Caso o lance oferecido no primeiro leilão público não seja igual ou superior ao valor do imóvel estabelecido no contrato para fins de excussão ou ao valor de avaliação realizada pelo órgão público competente para cálculo do imposto sobre transmissão inter vivos, o que for maior, o segundo leilão será realizado nos 15 (quinze) dias seguintes.
No segundo leilão, será aceito o maior lance oferecido, desde que seja igual ou superior ao valor integral da dívida garantida pela hipoteca, das despesas, inclusive emolumentos cartorários, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais, podendo, caso não haja lance que alcance referido valor, ser aceito pelo credor hipotecário, a seu exclusivo critério, lance que corresponda a, pelo menos, metade do valor de avaliação do bem.
O devedor ou o prestador da garantia hipotecária poderá, antes do bem ser leiloado, remir a execução, mediante o pagamento da totalidade da dívida, cujo valor será acrescido das despesas relativas ao procedimento de cobrança e leilões, autorizado o oficial de registro de imóveis a receber e a transferir as quantias correspondentes ao credor no prazo de 3 (três) dias.
Se o lance para arrematação do imóvel for superior ao valor da totalidade da dívida, acrescida das despesas, a quantia excedente será entregue ao hipotecante no prazo de 15 (quinze) dias, contado da data da efetivação do pagamento do preço da arrematação.
Todavia, se o lance oferecido no segundo leilão não ser igual ou superior ao referencial mínimo para arrematação, o credor terá a faculdade de:
I – apropriar-se do imóvel em pagamento da dívida, a qualquer tempo, pelo valor correspondente ao referencial mínimo devidamente atualizado, mediante requerimento ao oficial do registro de imóveis competente, que registrará os autos dos leilões negativos com a anotação da transmissão dominial em ato registral único, dispensadas, nessa hipótese, a ata notarial de especialização.
II – realizar, no prazo de até 180 (cento e oitenta) dias, contado do último leilão, a venda direta do imóvel a terceiro, por valor não inferior ao referencial mínimo, dispensado novo leilão, hipótese em que o credor hipotecário ficará investido, por força desta Lei, de mandato irrevogável para representar o garantidor hipotecário, com poderes para transmitir domínio, direito, posse e ação, manifestar a responsabilidade do alienante pela evicção e imitir o adquirente na posse.
No caso de operações de financiamento para a aquisição ou a construção de imóvel residencial do devedor, excetuadas aquelas compreendidas no sistema de consórcio, se o produto da excussão da garantia hipotecária não for suficiente para o pagamento da totalidade da dívida e das demais despesas, o devedor ficará exonerado da responsabilidade pelo saldo remanescente.
Concluído o procedimento e havendo lance vencedor, os autos do leilão e o processo de execução extrajudicial da hipoteca serão distribuídos ao tabelião de notas com circunscrição delegada que abranja o local do imóvel para lavratura de ata notarial de arrematação, que conterá os dados da intimação do devedor e do garantidor e dos autos do leilão e constituirá título hábil de transmissão da propriedade ao arrematante a ser registrado na matrícula do imóvel.
Essa garantia hipotecaria com a execução extrajudicial pode ser realizada nos mais diversos contratos, inclusive em contratos de prestação de serviços. Vale salientar que o entendimento de muitos colegas, é que a execução extrajudicial somente seria possível para hipotecas realizadas após o início da vigência do Marco de Garantias.
Se você tiver interesse de entender melhor as operações de alienação fiduciária, referidas no início desse artigo, recomendo ler meu artigo publicado aqui na Sler, no dia 13 de novembro de 2023 (link aqui).