Entram no sensível tema de que vou me ocupar nesta coluna alguns elementos muito caros à esquerda, presentes em todos os dicionários civilizatórios e progressistas: 1) lugar de fala; 2) racismo estrutural; 3) comportamento de gado.
Desdobremos:
1) O lugar de fala para definir o que é ou não antissemitismo é judaico, assim como o lugar de fala para definir o que é racismo é dos negros e o lugar de fala da homofobia, da misoginia e de outros preconceitos contra minorias sociais ou numéricas são de suas vítimas. Do alto do lugar de fala judaico, a esmagadora maioria dos judeus, restando apenas algumas pessoas muito cretinas ou mal resolvidas, diz com todas as letras que “antissionismo” é a modalidade atual de antissemitismo. E o preconceito começa pela ignorância quanto ao que é o sionismo, um movimento libertador de autodeterminação do povo judeu no seu lar ancestral, com diferentes vertentes, da esquerda à direita, algumas delas defendendo ardorosamente também o Estado Palestino. É indiscutível que os judeus, assim como os árabes palestinos, são os indígenas da região onde ficam Israel e Palestina. A solução de dois Estados sempre foi a ideal, quando e se houver condições de segurança para isso. O judaísmo é uma etnia ou um “grupo étnico-religioso”, como preferem alguns, porque os rituais religiosos são manifestações simbólicas importantes dos valores dessa cultura e desse povo. E essa etnia foi barbaramente perseguida nos 1,9 mil anos de crudelíssimos preconceitos na diáspora, depois da expulsão daquela terra que já foi Judeia e passou a ser conhecida como Palestina (a partir da expulsão). Perseguições que levaram à urgente criação do sionismo político (o “sionismo”, de certa forma sempre existiu, porque os laços judaicos com Jerusalém são de 4 mil anos e estão registrados de forma vasta e intensa). Foram cruzadas, inquisição, pogroms e, por fim, a Shoá (Holocausto), quando 6 milhões de judeus foram assassinados de forma industrial, a partir de uma planejada “solução final”. Somente a escravização africana ombreia em crueldade com esse genocídio, palavra, aliás, criada para definir o inimaginável. Logo, negar ou banalizar a Shoá, com tudo o que significa, é antissemitismo.
2) O racismo antissemita estrutural sempre existiu, em detalhes muitas vezes imperceptíveis (estrutural, enfim). Exemplos: a palavra “cristão” sendo usado como sinônimo de solidário, as cruzes grudadas nas paredes dos tribunais como se fossem uma imposição, as diversas caracterizações depreciativas usadas na vida e na literatura para integrantes desse povo. E o fato de ser imperceptível é da essência do preconceito, porque é a invisibilização da vítima. Logo, questionar aos quatro ventos a legitimidade de Israel como se nada, fazer pouco da história sofrida desse povo sem terra (do primeiro século da Era Cristã até 1948) e outras manifestações tratadas como simples “trocas de ideias” que supostamente devem ser respeitadas num mundo pretensamente civilizado (alguém tem a cara de pau de dizer que o racismo contra os negros é só uma ideia a ser debatida e, pior ainda, respeitada?). Também ignorar a história sofrida desse povo ao banalizar a bestialidade tragicamente singular da Shoá é um atrevimento aceito por uma sociedade em que voltou a ser voz corrente a demonização do judeu. Logo, esse conjunto de desrespeitos é antissemitismo muito mais violento do que vários casos de racismo, homofobia ou misoginia estrutural que todos (inclusive eu) condenam e deploram.
3) Comportamento de gado: ai, como usei essa expressão para definir os alucinados que justificavam absurdo de uma extrema direita ignorante, que defendia o terraplanismo, a rejeição à ciência, a oposição às vacinas, o reacionarismo no campo da sexualidade e outras barbaridades. Era um pesadelo! Olhávamos aqueles malucos que cantavam o hino nacional para um pneu e pensávamos: que maluquice! Pois bem, agora estamos na versão pecuária de esquerdistas que pastam bovinamente justificando absurdos como chamar logo Israel de “genocida” a partir da reação ao maior pogrom sofrido pelo povo judeu em quase 80 anos. Veja bem: usar o termo genocídio para judeus é muito mais grave do que usar a palavra “escravo” em vez de “escravizado”, até porque genocídio é uma ação deliberada de eliminar um povo, o que nem o pior governo israelense jamais cogitou, enquanto seus inimigos extremistas islâmicos querem exatamente isso, de forma explícita registrada até em seus estatutos. Repetir tamanhos absurdos porque um líder cometeu essa sandice é equivalente a cantar o hino para um pneu.
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Agora, vamos ao grão: falemos sobre o presidente Lula da Silva e sua desastrosa verborragia. Primeiro, Lula usou a palavra “genocídio” para definir a reação de Israel contra um ato destinado a matar deliberadamente pessoas de um povo, com a intenção de eliminá-lo (genocídio). Depois, definiu como “Holocausto”. Não é um oceano que divide a Shoá, com sua matança deliberada e industrial de 6 milhões de pessoas (2/3 do povo judeu na Europa), da reação israelense, por mais tristemente violenta que ela esteja sendo, com milhares de vítimas. A distância é de todos os oceanos da Terra reunidos, de tão vasta que é a diferença entre esses dois fatos.
E vários elementos entram nesse raciocínio.
1) Por que essa reprovação só a Israel, quando há matanças muito maiores e injustificáveis (não são reações necessárias a uma agressão monstruosa) neste exato momento mundo afora?
2) Por que não enxergam que o Hamas é um grupo terrorista (e assim deve ser definido) cujo propósito é criar um califado e, para isso, eliminar os hereges (leiam-se judeus e Israel), sendo exatamente a mesma coisa que os nazistas com a intenção de impor a “raça ariana”, dominar o mundo e matar os judeus?
3) Por que, mesmo quando Israel nem tinha reagido ao pogrom devastador do 7/10, os protestos de monstros vestidos de humanistas eram justamente contra Israel e a favor do Hamas, um grupo terrorista que, além de impor o islã, se pudesse mataria todo público LGBT que ousasse assumir sua orientação sexual (bandeira cara aos movimentos progressistas?
4) Quando os aliados atacaram a Alemanha em 1945 e (aparentemente) salvaram o mundo do nazismo, por que, então, não houve protestos contra a inevitável morte de alemães inocentes (sim, assim como nem todo palestino é do Hamas, nem todo alemão era nazista)?
5) Por que tanta má vontade com os judeus?
6) Por que ignorar que o Estado judeu, desde que foi criado, aceitou e defendeu a existência também do Estado Palestino ao seu lado, sendo os árabes que rejeitaram a partilha (o que provavelmente hoje permitiria a convivência fraterna entre dois países)?
7) Por que a demonização permanente e incoerente de Israel e a tentativa permanente e absurda de eliminar o judeu fisicamente ou pela semântica (são completamente malucas as teses delirantes que afrontam a História e até os testes genéticos ao contestar o caráter semítico dos judeus com o único propósito de esvaziar a legitimidade de Israel)? Por quê?!
Posso dizer a palavra para todas essas indagações.
É o meu lugar de fala. E você já sabe qual é.
Mas voltemos ao falecido Lula da Silva.
Lembro quando aquele ex-presidente que eu chamava e ainda chamo de Bozo cometeu a afronta de homenagear um comprovado torturador diante da vítima que foi por ele torturada. Até hoje aquela cena me dá engulhos. Na época, eu defendi que ele deveria ter sido cassado e ficado sem seus direitos políticos (não podendo disputar eleições). Pois o mesmo sentimento eu tive agora com o falecido Lula da Silva ao vê-lo absurdamente comparar a necessária reação israelense (depois se investiga se houve crime de guerra ou se as mortes de civis foram consequência da sabida prática de usar escudos humanos por parte do Hamas; mas não chamem isso de genocídio, por favor!) ao Holocausto. Se depois de ler as linhas acima você ainda justificar a afronta do presidente brasileiro, resta-me esperar apenas uma palavra vinda da sua hipnotizada boca bovina: muuuuuuuuuuuuuuuu!!!!
Sim, você é a versão esquerdista do fenômeno pecuário que leva pessoas a cantarem para pneus e pastarem em inadmissíveis atos falsamente humanistas na Cidade Baixa.
E Lula, tristemente, contribuiu muito para isso. Num mundo polarizado, assim como até médicos bolsonaristas, para sustentar seu líder, eram capazes de defender a cloroquina e se contrapor à vacina mesmo sabendo se tratar de uma barbaridade, os lulistas embarcam no absurdo da comparação entre Shoá e reação ao terror, buscando argumentos para justificar seu líder e não dar munição a seus adversários.
Nessa armadilha estamos.
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O senador petista Jacques Wagner, líder do governo no Senado, enfim expôs seu mal-estar, que já era sabido por muitas pessoas. De forma tímida, o judeu Wagner criticou a comparação feita pelo falecido Lula da Silva. Creio que, pela sua condição funcional, ele foi ao limite do que poderia ter ido. Mas bem que Wagner poderia, usando exatamente o mesmo discurso que usou (defendeu dois Estados, ufa!), ter falado o nome daquilo que o define, por formação e convicção e que dá arrepios em muitos companheiros ignorantes. Ele tem sólida formação sionista nos grupos juvenis judaicos.
Sim, Wagner é sionista, sionista de esquerda.
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Pra finalizar, uma alinha de português.
A diferença entre as pessoas de bom senso mais ou menos condescendentes acerca da comparação criminosa feita pelo falecido Lula da Silva está no detalhe de uma vírgula.
O condescendente:
“Que comentário estúpido!” (sem vírgula)
O não condescendente:
“Que comentário, estúpido!” (com vírgula)
Sacou?
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Para ler mais sobre o tema, confere os meus textos anteriores:
>> Antissionismo é antissemitismo
>> Os poréns seletivos que constroem narrativas desonestas
>> Compreenda o conflito israelo-palestino
>> Efeitos do antissemitismo estrutural
>> Não é preciso fazer montagem
>> A invisibilidade dos israelenses
>> Só se aperta a mão de quem a estende
>> A maldade independe de ideologia
>> Presidente Lula, enxergue-nos
>> A esquerda burra dá vida à extrema direita
>> Mais atenção às palavras
>> A narrativa vazia do “intelectual” antissemita
>> Aviso aos antissemitas: vocês nos fortalecem
>> A única opção justa: 2 Estados e 2 povos, Israel e Palestina
>> A necessidade fez deste meu espaço um espaço judaico
>> Por que o antissemitismo é uma espécie de síndrome?
>> Todos devemos ler o livro de Nelson Asnis
>> Conheça a pluralidade generosa e humanista do sionismo
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Shabat shalom!