Em 29 de setembro de 1964, a fantástica guriazinha chamada Mafalda, num desenho de traços simples que propositalmente valorizava o conteúdo, nasceu nas páginas da revista portenha Primera Plana e passou a traduzir em quadrinhos a alma da Argentina para dali se universalizar em dezenas de traduções.
Na verdade, ela traduz a alma humana.
A forma como Mafalda nasceu é curiosa. Seria a maninha de quatro anos coadjuvante de um menino numa tirinha com merchandising para uma empresa de eletrodomésticos. Só que a ideia da agência não vingou (o jornal não topou a estratégia), e apenas alguns meses depois ela veio ao mundo, revigorada.
Já ouvi gente comparando a menininha inteligente e mordaz aos Beatles, porque ela trouxe uma nova linguagem, em outra forma de expressão, que não a música (ela era fã dos Beatles, evidentemente). Quem me conhece sabe o quanto amo os Beatles, e não acho esse raciocínio descabido.
Depois da Primera Plana, Mafalda abrilhantou o diário El Mundo e, em razão do fechamento desse jornal importante, deixou de ser publicada, e, meses depois, reapareceu no semanário Siete días ilustrados. Já eram meados de 1968, e a menininha, com suas perguntas desconcertantes e reflexões profundas, estava num libreto, espalhada por jornais do interior argentino, com o nascimento de belíssimos coadjuvantes: o pai (sem nome), a mãe (Raquel) e a gurizada (Felipe, Susanita, Manolo Miguelito, Libertad e Guille, o maninho nascido em Siete días ilustrados).
E justamente, neste momento, vale a análise de um entre tantos aspectos dessa personagem genial do Quino: além das observações atualíssimas (ela olhando o planeta cheio de ataduras combina muito com a crise ambiental e a tragédia que desabou no Rio Grande do Sul), é interessante nos atermos à forma como seus amiguinhos (os coadjuvantes) se comportam.
Façamos as ressalvas de praxe em relação a racistas, homofóbicos, antissemitas e outras bestas com quem o diálogo é inadmissível antes de entrar no assunto: a Mafalda mostrava, por seus personagens, como diferentes podem conviver.
Vamos a eles, então, mostrando seus diferentes temperamentos e sempre lembrando que a progressista Mafalda, com suas posições firmes e ironia fina, conversava com todos:
Felipe: o mais sonhador, tímido e ingênuo de todos. Dentucinho, mostra uma ansiedade típica dos dias atuais, em especial em relação aos estudos. Ama os Beatles e uma menina chamada Muriel, de quem não tem a mínima correspondência.
Manolito: filho do imigrante espanhol Don Manolo, dono de um armazém, é pragmático, põe o trabalho à frente dos estudos, venera o capitalismo, é materialista e despreza os Beatles. Ajuda o pai no armazém. Eventualmente mostra ter bom coração.
Susanita: típica mulher de classe média nos anos 1960, sua obsessão é por se casar, ter filhos e ser acomodada. Fofoqueira, materialista, conservadora e competitiva, paradoxalmente valoriza a amizade com Mafalda. E odeia Manolito, o “rústico”.
Miguelito: outro sonhador. Faz perguntas complexas, às vezes até absurdas, sobre a realidade. Mostra nisso uma inquietação criativa. Ingênuo, se diz admirador de Mussolini porque o avô, um imigrante Italiano, assim era. Tem forma direta de falar.
Guille: é o irmãozinho da Mafalda. O único personagem que cresce fisicamente . Mafalda não entende como ele pode gostar de sopa (ela detesta a sopa, prato usado por Quino como metáfora da repressão). Passa a imagem do alienado.
Libertad: é pequena, porque, como diz Quino, assim é a liberdade: pequena. De temperamento incendiário, ideologicamente se afina com Mafalda no progressismo, mas Mafalda é mais realista, e Libertad mais radical e confusa.
…
Sobretudo, são crianças que convivem e se relacionam.
…
Mafalda foi desenhada até 25 de junho de 1973. Quino (Joaquín Salvador Lavado Tejón – 1932-2020) resolveu parar, até porque concluiu que sua produção começava a ficar repetitiva, e havia certo desencanto no ar. Perceba que em 1973 e 1974 começava a guerra suja, com o surgimento da Triple A (ação anticomunista), a repressão violenta oficializada a partir do golpe militar de 24 de março de 1976 com seu rastro de 30 mil mortos. Quino, nos anos seguintes, desenhou Mafalda eventualmente, sempre com motivações altruístas. Fico pensando no que ele sentiria ao ver a forma como certo setor ideológico de direita tenta se apropriar da linda palavra “Liberdade” para justificar o cinismo e o egoísmo.
Pobre Libertad, a pequena menininha tão radical em seu humanismo.
Shabat shalom!
Foto da Capa: Quino e Mafalda – Reprodução Agência Senado
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