Faz já mais de um quadrimestre (este é já o 21º texto seguido sobre o mesmo e inescapável assunto) que escrevo sobre o angustiante antissemitismo decorrente, por uma desgraçada ironia, do maior e mais devastador pogrom sofrido pelos judeus em oito décadas (desde o Holocausto). Isso mesmo: a vítima (o Estado judeu) reagiu e, até mesmo para parte da suposta “intelectualidade” e dos ditos “humanistas” (humanista que apoia grupos obscurantistas, racistas, misóginos e homofóbicos é uma contradição desconcertante), ao reagir, tornou-se o algoz, com acusações cujos requintes chegam ao ponto de chamá-la de “genocida” em razão da operação militar perpetrada para resgatar centenas de reféns e neutralizar os facínoras responsáveis por execuções, estupros, degolas a esmo de pessoas pelo simples fato de serem israelenses.
Observação necessária antes de que a leitura continue: sim, a infelizmente incontornável reação de Israel foi violenta e, lamentavelmente, matou inocentes em meio a terroristas psicopatas que se imiscuem entre eles – e isso é brutal. Este autor repudia sempre a violência e jamais flerta com a morte. Apenas pede reprimendas menos seletivas, implora que se enxergue a selvageria inqualificável do 7/10 e a existência, ainda hoje, de reféns, aparentemente invisíveis para algumas pessoas, cujo resgate qualquer país decente buscaria. Não nos esqueçamos de que houve quem justificasse o barbarismo inqualificável perpetrado pelo grupo terrorista e manifestamente genocida Hamas ainda antes de Israel reagir, e essas pessoas não podem justificar seu antissemitismo pelos ataques israelenses que nem tinham ocorrido quando o dedo acusador era brandido. Houve slogans implicitamente genocidas falando em “Palestina do rio ao mar”, o que equivale a negar o direito de Israel existir. Lembrar esse contexto serve para combater simplificações.
Mas voltemos ao primeiro parágrafo (antes da observação). Sim, creia! São essas vítimas as comparadas a “nazistas”, quando qualquer mente lúcida percebe que era e é o contrário.
Enfim, esse contexto faz eu me lembrar de um episódio ocorrido em Porto Alegre há mais de um século e de um personagem cuja trajetória tenho uma enorme curiosidade por conhecer. O episódio mostra como os judeus, diante da incompreensão e da invisibilidade, precisam se comunicar entre si, porque poucas pessoas fora da sua coletividade étnica os compreendem, e a incompreensão do lado de fora por vezes é muito cruel.
Em 1915, a comunidade judaica, ainda muito incipiente como grupo organizada em terras gaúchas (está fazendo 120 anos justo agora, em 2024), teve seu jornal em iídiche (o dialeto usado pelos judeus na diáspora da Europa Oriental, misturando seu idioma étnico, o hebraico, ao alemão local).
Di Menshait
O “Di Menshait” (A Humanidade) começou a circular em 1º de dezembro daquele ano, em meio à Primeira Guerra Mundial. O responsável pelos textos espalhados em quatro páginas era Josef Halevy, que havia sido antes repórter do “Hatzefira”, de Varsóvia. O editor era Nahum Socolov. O estudioso Josef Halpern explicava a importância disso: havia o atendimento de necessidades dos membros da coletividade que não dominavam ainda o português. E outra: as informações que chegavam da Europa pelas agências internacionais de notícias eram insuficientes, incompletas, não iam ao ponto que interessava aos 5 mil judeus existentes em todo o Brasil na segunda década do século 20. As reportagens do “Di Menshait” eram amplas, analíticas e didáticas, distribuídas em quatro páginas, tentando pôr os leitores no palco dos acontecimentos e nas suas circunstâncias. Houve textos como “A Guerra Europeia”, “Os Judeus na Rússia”, “Os Judeus e a Guerra”, “A Educação Judaica e a Autoeducação”. São títulos que revelam as preocupações, os assuntos que demandavam alto interesse.
Mas por que em Porto Alegre? “O aparecimento do primeiro jornal (judaico) justamente em Porto Alegre, a terceira cidade brasileira, e não no Rio de Janeiro ou em São Paulo, explica-se pelo fato de Porto Alegre se achar na vizinhança dos agricultores judeus”, explicava o escritor e pesquisador Elias Lipiner. Mas não só isso. Havia ambiente para o surgimento de uma publicação como essa na comunidade judaica porto-alegrense, e, claro, havia Josef Halevy, jornalista altamente vocacionado para as letras, daqueles que fazem do ofício um sacerdócio.
Sobre o interesse da incipiente comunidade judaica em ter informação de qualidade e profundidade especificamente a respeito dos assuntos que lhe interessavam, basta ver que o “Di Menshait” foi sustentado financeiramente por um grupo de interessados na incrível, para os padrões daquela época, Sociedade Jornalística Israelita, em que cada cota dos acionistas valia 25 mil réis. E quem eram esses fantásticos pioneiros das letras e das notícias e do saber e da informação? Quem eram, enfim, esses iluminados? Os primeiros sócios foram Salomão Kaufman, Bernardo Lewgoy, Efraim Lifscitz, Lipe Waldman, V. Meltzer, Abraão Soibelman, Yechiel Ktvitko, Ch. Fischman, S. Reichel, G. Zeltzer, I. Goldmanberg, Baruch Goldenberg, José Lerner, Samuel Kleinman, Moisés Pecis, B. Tolpolar, M. Kapeluschnik e Moisés Weksler.
E outra informação incrível sobre um jornal em iídiche, pioneiro no Brasil e preocupado em (como fazia questão de esclarecer, por ver nisso algo essencial…) preservar sua independência editorial? Ele tinha correspondentes! Era S. Reichel em Santa Maria, H. Filchtiner em Philippson, Y. Becker em Quatro Irmãos, Bernardo Schulman em Curitiba, S. Nadler em São Paulo e K. Kutno em Cruz Alta.
Havia um endereço específico para solicitações de assinaturas, no então número 88 daquela que é a atual Osvaldo Aranha (Campos do Bom-Fim, na época). Essa parte, dos assinantes, ficava a cargo de Bernardo Lewgoy. Para cartas, oferecimentos de textos e reportagens, o escritório, comandado por S. Kaufman, ficava na Rua 12 de Outubro. Enfim, tudo muito organizado – uma verdadeira empresa jornalística.
Depois do Di Menshait, o Di Iídische Tzukunft
Depois, outro jornal breve, fundado em 15 de janeiro de 1920. Era o “Di Iídische Tzukunft (O Futuro Judaico), de linha francamente anarquista. E quem era o editor? Ora, o mesmo, o perseverante das letras e das informações, o visionário, erudito e libertário Josef Halevy!
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Uma curiosidade que mostra a movimentação geográfica da coletividade judaica no Brasil e, em especial, no Rio Grande do Sul: já ali, cinco anos depois do “Di Menshait”, mantinham-se correspondentes em cidades como Quatro Irmãos (claro!), mas já não havia em Philippson, a colônia breve. E, às outras “sucursais”, foram acrescidas as de Rio de Janeiro, Recife e até Santana do Livramento, na fronteira com o Uruguai.
Os assuntos do “Di Iídische Tzukunft” também mostravam a movimentação da história. Os textos traziam a combatividade do anarquista Halevy, que buscava uma forma de seu periódico ter independência editorial e financeira. Eram abordados o sionismo, a necessidade de criação do Estado de Israel (“O Renascimento de Eretz Israel”, como escrevia Halevy) e a migração judaica para o Brasil como medida urgente diante das perseguições na Europa. Lembrem: era 1920! O monstro Adolf Hitler ainda era só um antissemita recalcado, arruaceiro e beberrão movido a cervejas.
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Halevy, um incrível visionário
Percebam que figura singularmente inovadora foi o incrível Josef Halevy. Cabe conhecermos um pouco sobre esse personagem que deveria ser estudado com mais atenção e profundidade. Tratava-se de um abnegado. Teve de retornar para a sua Buenos Aires (de onde viera para se radicar em Porto Alegre um ou dois anos antes de estourar a Primeira Guerra Mundial), depois de tentar fazer com que o jornal tivesse mais estrutura, apelo e alcance nacional e, claro, rentabilidade – afinal, ninguém vive de ar. Em Porto Alegre, de acordo com o pesquisador Josef Halpern, ele possuía “apenas um fogareiro e alimentava-se quase que exclusivamente de arroz com leite”, que cozinhava sozinho sobre a espiriteira colocada no chão. Mas perseverava. Ainda conforme Halpern, “pouco tempo depois, ele faleceu como indigente”. Na lápide de sua sepultura, no cemitério de Liniers (bairro portenho), consta apenas “Aqui jaz Josef Halevy”.
Ora! Muito pouco, não?
Seu verdadeiro nome era Josef Levinson, de acordo com o pesquisador Nachman Falbel. Preferia, porém, ser chamado de Halevy (“aquele que levita”) e eventualmente utilizava os pseudônimos “Der Voloziner” e “Yid don Bord” (“Judeu sem barba”). Entusiasta do idioma iídiche (fez essa defesa em artigo publicado no jornal portenho Unzer Vort, “Nossa voz”, em 1913), dava aulas particulares de iídiche, hebraico e francês, fazia palestras sobre judaísmo, sionismo, socialismo, anarquismo e jornalismo e escrevia artigos para jornais judaicos de vários locais, como Varsóvia (o “Hatzefira”) e, claro, Buenos Aires. Estudou na yeshivá de Volozin (por isso o pseudônimo “Der Voloziner”) e em Paris. Um erudito, enfim, que defendia o iídiche como língua judaica antes da independência de Israel e de se perceber, na prática, a importância do hebraico como idioma unificador das origens asquenazi e sefaradim (que adotaram o ladino com o mesmo propósito na Espanha e norte da África).
Quando morreu, miserável e sempre obcecado pelo jornalismo, Halevy tinha algo como 50 anos. Na imprensa argentina, foi publicada a notícia de que se encontrava, em manicômio da cidade, um homem que não revelava seu nome e apresentava sinais de loucura, pois perdera o manuscrito de uma grande obra no seu caminho a pé, “vindo do Brasil”. Era Halevy, como eles próprios identificaram. E, sim: ele transitava a pé entre Brasil e Argentina! Chegava nos locais de forma surpreendente – surpresa causada ainda hoje. Imagino que você, como eu, tenha ficado curioso acerca do “manuscrito perdido por Halevy” no caminho entre Brasil e Argentina. Creio que estamos diante de grande figura histórica que precisa ser resgatada mais detidamente e de forma específica.
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Publicações posteriores
Em maio de 1927, começou a circular em Porto Alegre uma revista sionista de esquerda, a “Dos Naie Wort” (A Nova Palavra), iniciativa do partido Poalei Sion, que tinha representantes na capital gaúcha. O subtítulo da publicação definia seu teor, periodicidade e forma. Era “Revista mensal de literatura e problemas sociais”. Seu editor: Isaac Raizman, com a colaboração de Samuel Spiguel.
Sobre Raizman, depois da experiência com o “Dos Naie Wort”, que durou seis meses, ele se mudou para São Paulo, onde continuou atuando na área jornalística, sempre se dedicando a temas sociais. Em Porto Alegre, deu sua última conferência em 7 de maio de 1946, no Círculo Social Israelita – então situado na Osvaldo Aranha, nos altos do Cinema Baltimore. O momento era histórico. Havia fervor sionista e antifascista em todas as pedras de calçamento das ruas do Bom Fim e do mundo. O patrocínio da conferência, que tratava do tema “A continuidade do povo judeu e a Palestina”, foi do movimento juvenil sionista e socialista Dror. E faltavam ainda três anos para a independência de Israel. O Dror (como tratei em texto anterior na SLER) foi fundado em Porto Alegre no ano anterior, o ano em que terminara a guerra e o Terceiro Reich. Era o primeiro Dror em todo o Brasil. E, lindamente, já se fazia ouvir com suas preocupações de uma coerência histórica impressionante.
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Entre meados dos anos 1930 e 1940, a imprensa judaica experimentou um recuo. Com o Estado Novo, tudo ficou mais difícil. Quem se aventurasse a distribuir publicações era investigado, registrado e perseguido.
Os movimentos juvenis sionistas sempre tiveram publicações. Em maio de 1946, o Dror (que editava o Itonzito – “jornalizinho”, em hebraico -, criado pelo meu querido amigo Paulo Burd e sua turma nos anos 1960), o Dror publicou o folheto “O sionismo e a realidade judaica”, em que diz: “Com a presente publicação, apresentamos nosso primeiro esforço editorial, no sentido de fazer com que não só a juventude, porém todos os homens de consciência livre do Brasil compreendam nossos ideais, saibam o porquê da nossa luta e se identifiquem conosco nesse afã de criar um mundo de liberdade e justiça onde, como judeus e homens, possamos viver uma vida normal e digna…”
Numa linha revisionista (“Israel, cuida do seu destino”) e igualmente muito simbólica, outra publicação, “Observador sionista”, traz textos assim, do jornalista Pierre Van Passen, autor do livro “O aliado esquecido”: “O destino levou o povo judeu à desgraça…” o povo judeu deve alargar seus passos por pura razão de autopreservação. Deve mudar o passo de tartaruga para o de um trem rápido. Deve recuperar seu ânimo. Deve acostumar-se a ter imaginação e olhar para o futuro. Basta de servilismo. Ação! Ação é que é necessário”. O objetivo do Observador, criado em fevereiro de 1947 e encerrado nesse mesmo ano (foram seis edições), era ser o “órgão de comunicação da coletividade israelita do RS”. A primeira frase da publicação foi: “Sai o Observador Sionista para, acima de mesquinhos interesses pessoais ou partidários, falar ao mundo a verdade”.
Linhas editoriais diferentes e complementares.
E a luta continua…
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Teatro em iídiche
É impressionante, também, o poder aglutinador, na comunidade judaica gaúcha, do teatro falado em iídiche, o idioma do shtetl. O hebraico, antes restrito a eventos litúrgicos nas sinagogas, sobressaiu-se como língua nacional. Ainda assim, o iídiche manteve o charme e o apelo de traduzir muitos sentimentos de uma linda e longa caminhada. Diz a historiadora Ieda Gutfreind: “As manifestações teatrais em iídiche representaram um elemento aglutinador dos laços identitários de parte representativa dos judeus de Porto Alegre. Divulgadas em jornais locais e propagandeadas no interior da comunidade judaica, tais apresentações, seja por parte de profissionais ou de amadores (…), lotavam o Theatro São Pedro, principal instituição cultural da capital do Estado, com capacidade aproximada para 700 espectadores, cujo número aumentava com cadeiras extras. Além das apresentações nesse teatro, instituições sociais da coletividade judaica, como o Círculo Social Israelita e mesmo as sinagogas _ espaços não exclusivamente religiosos _, abriam suas dependências para tais espetáculos, que contavam com expressivas plateias. Na primeira e na segunda geração de imigrantes, as representações teatrais criavam um interesse coletivo, tornando a programação assunto obrigatório (…)”.
Assistir a uma peça em iídiche tinha o poder de uma madeleine proustiana embebida no chá em busca do tempo perdido. Era uma volta às ruas estreitas dos shtetls. Esse sentimento de aconchego fez com que manifestações em iídiche se estendessem por décadas. O grupo Viva a Vida reunia pessoas de terceira idade em um coral. Também havia grupos como o Le Chaim e o que foi organizado pela família Rotenberg. Tudo motivado pela expressão “yiddishkeit”, o sentimento da alma judaica. O teatro amador arrecadava fundos nas sinagogas Centro e União. Fazia-se presente também no Clube de Cultura.
Mesmo quando o começo da colonização judaica se limitava à vida rural em Quatro Irmãos, foram criados grupos dedicados ao teatro e às leituras de histórias em iídiche. Um deles foi o Clube Macabi, cuja origem vinha da Lituânia. Ieda Gutfreind traz três relatos sobre essas manifestações, dois deles passados em cidades do interior gaúcho para onde acorreram judeus no início do século 20. O terceiro em Porto Alegre. Eram pessoas em busca da pulsação cultural. Em Pelotas: “O doutor Saul Sokolowski nos informou que, na década de 1930, os judeus tinham maioria das lojas de fazendas e de móveis na Rua General Osório e que, durante muitos anos, funcionou um colégio em iídiche. Ao final do ano letivo, os alunos participavam de representações teatrais. Citou ainda que, na década de 1940, todos os grupos de artistas judeus que faziam temporadas em Porto Alegre também vinham se apresentar em Pelotas. Recorda Max Perelmann e Guita Gallina e outra companhia de TI (teatro iídiche), da qual Berta Loran fazia parte. Havia ainda, anualmente, representação de TI, a cargo de amadores locais (…)”. Em Rio Grande: “O senhor David Pechanski contou-nos que, naquela época (1920), foi constituído um grupo de teatro em iídiche, do qual participaram o senhor Tolchinsky e cinco membros da família Pechanski (…)”. Em Porto Alegre: “Pelos anos 1914-15, houve a apresentação de grupos amadores em iídiche, e, pela leitura de artigo do Theatro São Pedro, pode-se constatar a frequência dos espetáculos, a ponto de serem considerados como o segundo em importância no referente a línguas estrangeiras ali apresentadas”.
Havia teatro em iídiche em Pelotas, Rio Grande, Santa Maria e Porto Alegre. A intensidade arrefeceu durante o Estado Novo (1937-1945), que rejeitava manifestações de outras nacionalidades que não a brasileira. Depois do regime de feições fascistas e das duas guerras mundiais, houve uma febre de apresentações em iídiche. Artistas do Exterior vinham a Porto Alegre. Testemunhos relatam que os europeus passavam pela capital gaúcha na rota de Buenos Aires e Montevidéu para Rio de Janeiro e São Paulo. E Porto Alegre mantinha relações mais estreitas com as capitais argentina e uruguaia. Recebia, das numerosas comunidades judaicas dessas cidades, uma influência decisiva. Israel era celebrado em versos, atos e cantos.
A proliferação do teatro
Havia até um agente especializado em trazer os espetáculos em iídiche para o Rio Grande do Sul: Jacó Dvoskin. Pelas mãos de Dvoskin, vieram a Porto Alegre e cidades do interior companhias da Europa, dos EUA e, claro, de Montevidéu e Buenos Aires. Estiveram em Porto Alegre artistas como a declamadora Berta Singerman, os diretores Herman Klatsin e Sygmund Turkow, e atores como Leonid Sokoloff, Sofia Rafalovitch e Ester Perelman. Tudo entre o final dos anos 1920 e os anos 1960.
Ieda Gutfreind faz um interessante apanhado cronológico: “Clara Friedman, primeira figura da Companhia Israelita de Operetas e Dramas, apresenta-se, em 1938, em três montagens em Porto Alegre, dentre as quais Aless Ken Guechen in Leiben (Tudo Acontece na Vida). Ainda nesse mesmo ano, em setembro, Dora Rosemblum e Naum Melnik representaram um espetáculo de arte dramática. No mês seguinte, Melnik fez mais duas apresentações. Retornaram para um recital de canto em agosto de 1946. Visitaram Porto Alegre uma vez mais, em 1953, quando a imprensa destacou que os dois artistas já haviam integrado a Vilner Troupe. Apresentaram Menachen Mendels Mazel (A Sorte de Menachen). No ano de 1941, é a vez da Companhia Israelita de Opereta Itzikfeld realizar várias apresentações na capital gaúcha. Contando seu elenco com 15 artistas, a companhia encenou as peças Di Eintigue Meidlech (As Moças de Hoje), A Menina da Pensão, Lang Leiben far America (Viva a América), Farloirene Veltn (Mundos Perdidos) e Varche is Mit-Natch (Varsóvia à Meia-Noite). Saltamos para o final de 1945, início de 1946, quando a Companhia Israelita Max Perelman e Guita Gallina realizou 11 apresentações. Em novembro, ocorrem mais sete espetáculos. Retornaram em 1949, apresentando Der Chussen a Shlimazel (O Noivo sem Sorte), Der Mames Zindel (O Filhinho da Mamãe) e Gelel fun Chelem (O Presidente de Chelem), que foi reprisado. Em sua última estada, apresentaram vários espetáculos: Yankel furt far America (Jacó vai para a América) e Der Freilecher Chnaider (O Alfaiate Alegre), do próprio Perelman; Drei Kinder iz Nicht Kain Guelechter (Três Filhos não é Brincadeira); Parnusse (Ganha-pão); Der Groiser Fardiner (O Grande Lucrador), Tzurik Tzu Main Folk (Retorna para o Meu Povo) e Tzwei Milionen (Dois Milhões). Nos primeiros meses de 1946, a Companhia de Operetas Stramer encenou Es Iz Schver tzu Zain a Iid (É Difícil Ser Judeu), que foi reprisado. Di Froi Voss ot Ferloirn (A Mulher que perdeu), Lua de Mel e Main Froi um Main Balibte (Esposa e Amante). Nesse mesmo ano, a Vilner Troué encenou Correntes da Vida, em três ocasiões.”
Era a arte alimentando a memória e a nostalgia.
Veio ainda “o maior ator norte-americano da atualidade” (conforme o Correio do Povo) Benzion Witler, em 1947 e 1951, com recitais de canto acompanhado de Shifrele Lerer. Também estiveram em Porto Alegre artistas judeus do icônico Teatro Mitre, de Buenos Aires. Apresentaram-se, por longas temporadas, Miriam Lerer, Aron Alexandrov, Clare Goldstein, Moises Lipman, Davi Lederman, Bernardo Sauer, Willi Goldstein, Jaime Halperin, Leon Gold e Dina Fink. A presença dos artistas portenhos foi um sucesso marcante, embalado pela euforia com o incipiente Estado judeu no outro lado do mundo e sua mensagem de triunfo da perseverança. Esses artistas apresentaram espetáculos como Wen Kaptzunem Wern Raich (Quando os Pobres Ficam Ricos), Dos Lid fun Ofenung (A Canção da Esperança), Der Amerikaner Chossen (O Noivo Americano), A Roman fun a Nacht (Romance de uma Noite) e Simches Bei Idn (Festas Israelitas), In a Rumeinische Kretchme (Na Cantina da Rumânia), Zain Greste Liebe (Seu Grande Amor), Main Briders Kale (O Irmão de Minha Noiva), Di Freileche Michpuche (A Família Alegre), Der Mazeldiker Bucher (O Rapaz de Sorte) e Der Wilder Mensch (Homem Selvagem). Avançavam-se os anos 1950. Há registros de apresentações dos festejados artistas do Teatro Mitre ainda em 1954.
A Companhia Israelita de Comédias Musicadas tinha atores estimados pelo público, como Mische Bernstein, Ester Perelman, Sucher Handfus, Berta Ais (conhecida na televisão como Berta Loran), Idel Laks, Sali Bernstein, Ruben Hochberg, Victor Goldberg, Herman Schertzer, Jaime Galperin e Rosa Cipcus. As peças, muitas vezes, repetiam as encenadas por outros grupos. Os teatros lotavam! Uma peça com apelo cômico era Mazel Tov, com 15 canções e coreografias. Outro espetáculo que provocava gargalhadas era Der iberiker mensch (O Homem que está sobrando). Teatro, música e dança, tudo ao mesmo tempo.
Vieram depois novos enredos e coreografias. A demanda justificava tremenda efervescência. A Companhia Israelita de Operetas apresentou Dos Meidel fun Tel-Aviv (A Moça de Tel-Aviv) e Main Nechumele (Meu Consolo). E havia a companhia israelita Tel-Aviv, com a comédia Der Blinder Zinger (O Cantor Cego). Outros títulos: Vi Azoi Libn Di Mener (Como Amam os Homens), Di Groisse Iriche (A Grande Herança), Di Erchte Valtz (A Primeira Valsa), Ain Guebrenkte Dinst (Uma Empregada Importada), Jenkis Chassene (O Casamento de Jenky).
Outro grupo de Buenos Aires que fez temporada marcante em Porto Alegre foi o do Teatro Soleil. Uma apresentação que encantou o público gaúcho foi a comédia Zing Isruel, Zing (Canta Israel, Canta). Outra foi A Chossen on a Kale (O Noivo sem Noiva) e A Chassene in Shtetl (Casamento na Aldeia), Der Comediantik (Os Comediantes) e Di Goldene Chassene (O Casamento Dourado), com sátiras de costumes, humor judaico e evidentes referências ao cotidiano na diáspora e à vida em Israel.
Em meados dos anos 1950, foi a vez do talento da Companhia Israelita de Comédias Henri Guerro e Rosita Londner. Duas temporadas, em 1955 e 1957, foram marcadas por títulos como Yosl, der Chneider (José, o Alfaiate), Fun Artz (Cantor do Coração) e Azoi iz dos Leben (Assim é a Vida). Ieda Gutfreind conta que os enredos eram “ingênuos”, mas cativavam com “lembranças trágicas e mensagens referentes a Israel”.
O grande astro do teatro iídiche era Morris Schwartz, tido como o maior ator do gênero. Nos anos 1950, ele transitou por Buenos Aires, Porto Alegre e São Paulo, em longas temporadas.
Amparada em pesquisas nos diários do Theatro São Pedro e no Correio do Povo, Ieda estabelece em 1962 o último registro da dramaturgia iídiche em Porto Alegre. O teatro iídiche era múltiplo: tinha dança, música, por vezes humor; outras tantas vezes, dramas. As pessoas se emocionavam, acorriam aos locais onde havia apresentações.
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Broadway
Havia, nitidamente, algo de Broadway nisso. Vale uma explicação sobre esse fenômeno, que não se restringia a Porto Alegre, evidentemente. Reportava-se à Idade Média, quando mímicos, dançarinos, cantores e trovadores judeus andavam de aldeia em aldeia, divertindo o povo. Essa tradição se manteve até o século XVI, quando o teatro em ídiche começou a assumir a forma e o estilo que o celebrizaram durante décadas, até produzir grandes sucessos na Broadway. Os primeiros espetáculos eram tradicionalmente realizados durante a comemoração de Purim. Danças, acrobacia, muita música e palhaços compunham as apresentações, quase sempre improvisadas. Então, em 1876, Avraham Goldfadn escreveu a primeira peça profissional em iídiche e a levou de shtetl em shtetl. A obra flertava com a comédia. Por isso, os intelectuais torciam o nariz. Mas sempre havia uma moral edificante da história, e a perseverança do povo judeu era uma marca quase que permanente nos enredos. Nos shtetls, as pessoas riam e choravam. Enfim, emocionavam-se. Com o recrudescimento do antissemitismo na Europa, a significativa comunidade judaica de Nova York fez dessa cidade, no início do século 20, o centro da dramaturgia em iídiche. Curiosamente, uma das peças mais marcantes na virada dos séculos 19 para o 20 tinha o nome de “Baltimore”. Era esse, também, o nome da principal sala de cinema de Porto Alegre, encravada no Bom-Fim, o bairro judeu. Também não por acaso, o cinema, derivado do teatro, foi a maior de todas as expressões culturais da indústria do entretenimento americano.
Talvez essa transição entre teatro e cinema possa ser ilustrada pelo clássico Fiddler on the Roof (Um Violinista no Telhado), que era musical da Broadway (inspirado em contos de Sholem Aleichem) em 1964 e se tornou campeão de bilheterias no cinema ao ser lançado em 1971. Na trama, claro, eram retratados os costumes do shtetl. A figura do violinista sobre o telhado é vista como a grande metáfora do equilíbrio entre tradição e modernidade, sempre tendo a música e a literatura como condutoras de um povo acostumado a ler, rir e chorar.
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Hollywood
No livro “An Empire of their Own How the Jews Invented Hollywood”, Neal Gabler cita levantamento feito pela revista Fortune, em 1936, conforme o qual, de 85 nomes que aparecem nos créditos da produção de um determinado filme, 53 são de judeus. Os criadores de Hollywood tinham trajetórias semelhantes. Carl Laemmle, nascido em 1867, emigrou de uma pequena cidade da Alemanha para os EUA no início do século 20. Percorreu uma série de trabalhos menores até fundar o Estúdio Universal. Adolph Zukor nasceu numa aldeia da Hungria. Órfão, foi criado por um tio que era rabino. Assim como Laemmle, foi para a América, conheceu o cinema primitivo, apaixonou-se pelo que viu e se tornou dono de seu próprio estúdio: a Paramount. William Fox também era húngaro. Chegou aos EUA levado pelos pais e começou a trabalhar por conta própria, ainda criança, como ambulante de pipocas e sanduíches. Anos depois, inaugurou a Fox Film Corporation, depois 20th Century Fox. Louis B. Mayer chegou da Rússia para construir o império da Metro-Goldwyn-Mayer. Benjamin Warner partiu de sua aldeia polonesa em 1883, deixando para trás a mulher, filha e filho. Começou a trabalhar como sapateiro em Baltimore e em pouco mais de um ano juntou dinheiro para reunir a família nos EUA. Benjamin era um judeu devoto que quase só falava iídiche, comia kasher e morava perto da sinagoga. Foi nesse ambiente que cresceram seus outros filhos. Então: a gurizada fundou a Warner Brothers.
No início, a condição judaica era tratada com discrição, mas, após a independência de Israel, surgiram, nos anos 1950, filmes de temática judaica, como “O Diário de Anne Frank” (1959, Fox), “Marjorie Morningstar” (1958, Republic) e “Os Últimos Homens Maus” (1959, Columbia), “Adagas no Deserto” (1949, Universal), “O Malabarista” (1953, Columbia, com Kirk Douglas e todo ele filmado em Israel), “A Sombra de um Gigante” (1966, United Artists, também com Kirk Douglas). Eram filmes de cunho sionista, cujo maior sucesso foi o clássico “Exodus” (1960, United Artists), baseado no livro de Leon Uris sobre a necessidade de os judeus terem seu lar – a trilha sonora dizia “Esta terra é minha, esta terra me foi dada por Deus…” Steven Spielberg não só fez “A Lista de Schindler”, mas criou a Fundação Shoah. E quem são, por exemplo, Alan Stewart Koenigsberg, Betty Joan Perske, Israel Baline, Melvin Kaminsky, Bernard Schwartz, Elliot Goldstein, Asa Yoelson, Joseph Levitch, Gerald Silberman, Issur Danielovich Demsky e Ivo Levy? São Woody Allen, Lauren Bacall, Irvin Berlin, Mel Brooks, Tony Curtis, Elliot Gold, Al Johnson, Jerry Lewis, Gene Wilder, Kirk Douglas e Yves Montapand.
O teatro iídiche está no sangue e na alma deles. Assim como está em gente como José Lewgoy, Mirna Spritzer, Ilana Kaplan e José Victor Castiel, para citar artistas destes pagos.
A percepção de Moacyr Scliar
Vale ler Moacyr Scliar sobre o teatro em iídiche, depois de contar que os atores coadjuvantes ou até figurantes por vezes gritavam mais alto que os protagonistas e eram aplaudidos pelos pais na plateia: “Apesar do entusiasmo dos artistas, as produções eram modestas – um legítimo ‘teatro pobre’ – e sofriam de limitações às vezes inesperadas. No meio de um espetáculo, um ator, de repente, dá-se conta: quase meia-noite, a hora de ‘letz ter bonde” (do último bonde). E os gritos de ‘lomir guein se iz shoin shpeit’ (vamos embora, já é tarde), atores e público descem correndo a Rua da Ladeira, rumo ao abrigo de bondes da Praça 15. As companhias teatrais eram trazidas por Jacob Dvoskin, também empresário cinematográfico. Duas ou três vezes por ano ele apresentava, no Baltimore ou no Rio Branco, filmes falados em iídiche – dos quais mais de três centenas foram produzidas nos EUA, nas primeiras décadas do século 20 (incluindo vários bangue-bangues). Centenas de pessoas lotavam o cinema para ver o lacrimoso ‘Uma carta da mamãe’, que, como se depreende só do título, falava de perto ao coração dos imigrantes. A plateia toda chorava (ah, como é bom chorar de vez em quando!), e, terminada a sessão, muitos ficavam para a seguinte, para grande irritação do senhor Dvoskin.”
Para ler mais sobre o tema, confere os meus textos anteriores:
>> Antissionismo é antissemitismo
>> Os poréns seletivos que constroem narrativas desonestas
>> Compreenda o conflito israelo-palestino
>> Efeitos do antissemitismo estrutural
>> Não é preciso fazer montagem
>> A invisibilidade dos israelenses
>> Só se aperta a mão de quem a estende
>> A maldade independe de ideologia
>> Presidente Lula, enxergue-nos
>> A esquerda burra dá vida à extrema direita
>> Mais atenção às palavras
>> A narrativa vazia do “intelectual” antissemita
>> Aviso aos antissemitas: vocês nos fortalecem
>> A única opção justa: 2 Estados e 2 povos, Israel e Palestina
>> A necessidade fez deste meu espaço um espaço judaico
>> Por que o antissemitismo é uma espécie de síndrome?
>> Todos devemos ler o livro de Nelson Asnis
>> Conheça a pluralidade generosa e humanista do sionismo
>> Fala sobre Holocausto é a homenagem de Lula ao Ustra
>> Eu acuso
….
Shabat shalom!
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