Grande, apropriado, até simples, mas muito criativo este nome: “Hijos” significa filhos em espanhol e também é a instituição H.I.J.O.S (Hijos y Hijas por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio), entidade de direitos humanos argentina fundada há exatos 30 anos (14 de maio de 1995) e que congrega algo como 2 mil pessoas, filhos e filhas, netos e netas de desaparecidos durante o mais recente regime militar argentino (1976-83).
Pois é. Essa agremiação importantíssima está marcada na minha vida. Modéstia à parte, quando morei na Argentina (era o correspondente da Folha de S. Paulo em Buenos Aires), fiz algumas reportagens que repercutiam no próprio país, o que é uma façanha jornalística. Era deliciosa a sensação de ver o meu nome estampado no jornal de maior circulação do Brasil com um “furo” de reportagem exclusivo até entre os veículos locais. E isso aconteceu algumas vezes. Eram reportagens cujos assuntos os jornais locais depois seguiam abordando, sempre citando a fonte de origem: “el diario brasileño Folha de S. Paulo”. Um luxo!
Uma delas me emocionou especialmente. Futriquei daqui e dali, consultei fontes generosas que eu tinha por lá, até localizar o primeiro filho de desaparecidos no regime militar argentino. O nome: Emiliano Huervalino, então (1 de fevereiro de 1998) com 20 anos.
O material mereceu chamada de capa da Folha, página inteira e, como dito acima, citação nos periódicos locais. Na época, pré-internet, eu mandava as cópias das citações dos jornais por fax pra direção da Folha, que as pedia. Evidentemente, pra minha alegria, o jornal brasileiro tinha justo orgulho e se exibia.
Assim eu comecei a matéria: “Emiliano Huervalino, 20 anos, é o personagem central de um enredo no qual não pôde ser protagonista voluntário. Com quatro meses, foi a primeira criança nascida na Esma (Escola de Mecânica da Marinha) a ser devolvida para a família de pais desaparecidos durante a guerra suja promovida pelo regime militar argentino (76 a 83). Localizado pela Folha na semana passada, Emiliano contou a sua história.”
São centenas de filhos de mortos e desaparecidos. Mais de 500. Alguns foram adotados por beneficiários (vários deles militares) do confisco de pais naturais. Dos 30 mil desaparecidos, 5 mil o foram depois de terem entrado nos porões da Esma. Entre eles, os pais de Emiliano, Mirtha Monica Alonzo (23 anos na época) e Oscar Lautaro Huervalino (22 anos na época), sequestrados em 19 de março de 1977, em meio ao velório do avô de Mirtha. Talvez Mirtha soubesse que jamais sairia viva daquele porão, pois marcou Emiliano com um alfinete na orelha esquerda, para que ele fosse identificado posteriormente. O bebê chegou a ser amamentado por 22 dias.
“Sinto asco sempre que vejo um militar uniformizado”, me contou Emiliano naquele verão de 1998, com a voz pausada e calma mesmo nos momentos mais tensos da conversa em que, me recordo perfeitamente, ele chegou a segurar o choro e confessou não ter conseguido assistir ao filme oscarizado (primeiro Oscar argentino) “A história oficial”, que tem tudo a ver com seu drama.
Emiliano me contou que chama os avós de “papai” e “mamãe”. São o seu núcleo familiar. Naquilo que ele definia como uma ampla família, os outros filhos de desaparecidos são parceiros de vida, com quem ele diz se entender só pelo olhar.
Confesso que, com mais de 30 anos no Jornalismo, essa foi uma das entrevistas que mais me emocionaram.
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Abaixo, um cheirinho do poema que o maravilhoso cantautor León Gieco fez e musicou para esses garotos e essas garotas de origens tão duras e destinos tão incertos. Gieco, autor de grandes canções de protesto e pelos direitos humanos, teve um sobrinho morto no pogrom de 7 de outubro de 2023 em Israel. O menino servia ao exército israelense quando houve o ataque bestial do grupo terrorista Hamas.
Eis um trecho da música “Sementes do coração” dedicada aos garotos argentinos (mas muito universal):
“Tu irás com as estrelas, romperás o mundo em dois
Virás com a tormenta pelas noites sem amor
Andarás pisando um sonho, sem os beijos nem um adeus”
É só o início e já basta pra calar fundo nos nossos peitos.
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Andres Calamaro
Sem sair do assunto Argentina, registro que na quarta-feira fui ver o roqueiro que talvez eu mais ouvia quando morei em Buenos Aires. Tchê, sou muito fã! Como gosto e como escutei nas minhas deliciosas andanças diurnas e noturnas pela cidade que se tornou pra sempre o meu lugar afetivo! Não digo que seja o meu “cantautor” argentino (de novo essa palavra…) favorito porque a lista é longa (o próprio León Gieco…).
O enorme Andres Calamaro se apresentou no Opinião, aqui em Porto Alegre. Óbvio que fui!
E foi uma espécie de reencontro com momentos lindos da minha vida: a minha vida portenha.
O show durou duas horas, e ele esbanjou simpatia e qualidade. Que banda, senhores! Assistir a um show do Andres e vê-lo ao vivo tocar “Flaca”, “Loco”, “Alta suciedad” e outros orgasmos sonoros foi uma injeção de amor à vida, em Porto Alegre, Buenos Aires “and everywhere”.
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Shabat shalom!
Todos os textos de Léo Gerchmann estão AQUI.
Foto da Capa: Divulgação