Na semana em que a Rússia sofreu um avassalador ataque terrorista, uma execução em massa assumida pelo Estado Islâmico, em que ao menos 137 pessoas (no momento em que este texto está sendo escrito) morreram, o mundo se condói. A Nicarágua, do supostamente socialista Daniel Ortega, chegou a decretar luto nacional. As condenações foram gerais, de todas as partes. Ninguém ousou chamar o Estado Islâmico de “grupo de resistência” cujos métodos seriam justificáveis diante da opressão russa. Nem mesmo o vídeo de um soldado russo arrancando a orelha de terrorista capturado e fazendo o sujeito mastigá-la e engoli-la fez as pessoas contorcerem a semântica e o bom senso para transformar vítimas em algozes.
Visto isoladamente, ótimo que não foi assim.
Mas pense. Se fosse um soldado israelense arrancando a orelha de um terrorista do Hamas, qual teria sido a reação?
Enfim, qual o ponto? O ponto é que essa atitude sadia, verdadeiramente humanista e lúcida de condenar o ataque terrorista na Rússia, provoca sentimentos paradoxais. Tirando ela de contexto, os aplausos são feitos sem ressalvas. Mas por que isso não ocorreu quando, menos de meio ano antes, Israel sofreu um atentado terrorista muito mais grave, com 1,2 mil pessoas executadas em poucos minutos pelo simples fato de serem israelenses, com filmagens dos próprios terroristas mostrando regozijo, com degolas, estupros, fuzilamentos de todo e qualquer ser vivo que aparecesse à frente dos facínoras (nem os bichinhos estimação das vítimas escaparam) e ainda o sequestro de centenas de pessoas (a maioria delas ainda sob poder dos sequestradores quando este texto está sendo escrito)?
E não adianta você alegar que a reação israelense foi “desproporcional” (que proporcionalidade complicada essa!), uma matança que alguns têm a ousadia de comparar à Shoá (meu Deus!!!!) e classificar como “genocídio” (a aniquilação deliberada de um grupo humano, algo que jamais nem o pior governo israelense cogitou). Por que não adianta dizer isso? Por uma constatação fácil de ser comprovada: já antes de Israel reagir, havia ignorantes, irresponsáveis, desprovidos de empatia e sedizentes humanistas, alardeando aos gritos que o grupo terrorista Hamas é “resistência” e justificando seu barbarismo.
Enfim, seria essa confusão uma enorme incoerência?
Não. Não é. E explico que há, sim, um nexo nisso tudo.
Chama-se Israel. Eles são coerentes no ódio ao Estado judeu.
E aproveito esse raciocínio para irmos ao grão e para eu dar uma notícia: quem acompanha as colunas que tenho escrito insistentemente na SLER, com o apoio comovente do meu amigo e publisher Luiz Fernando Moraes (já falei sobre isso, o querido LF seria um “justo entre as nações” se vivêssemos na Europa dos anos 1930), terá seu conteúdo reunido em livro.
Então, vamos falar da essência de tudo o que tenho me empenhado em expor aqui com tanta paixão.
O problema central é que não aceitam a existência de Israel.
E não aceitam a recriação do lar judaico em 1948, depois de séculos em que o povo judeu era perseguido, rejeitado e desprezado por todo o mundo numa diáspora crudelíssima, porque são antissemitas. Negar o direito dos judeus à sua autodeterminação no pequeno lar ancestral é a invisibilidade do seu sofrimento, é negar a inquisição, os pogroms, a Shoá. É um tabefe na nossa cara, desferido como se fosse “humanismo”, porque supostamente defendem as vítimas palestinas. E é antissemitismo sem ressalvas. Não me venham querer abrir um debate sobre isso. Assim como outras minorias têm lugar de fala, esse lugar é nosso. Também não adianta citar capitães do mato judeus que certamente perfazem algo como 1% do nosso povo. A esmagadora maioria vê a negação de Israel (“antissionismo”) como uma brutal manifestação antissemita.
Também é pertinente a pergunta: por que diante de tantos conflitos às vezes muito piores, tantas guerras, tantos massacres inacreditáveis (Saddam Hussein matou 5 mil curdos iraquianos com armas químicas em poucas horas só pelo objetivo de matar e mostrar força, e ninguém o acusou de genocida ou pediu que o Iraque deixasse de existir), há uma afeição especial por apontar o dedo em riste contra Israel? Da minha parte, o assunto naturalmente interessa, porque sou judeu, e Israel é o país da minha etnicidade, é importante para mim. Mas quem não tem nada a ver com o assunto e o aborda passionalmente, levanta bandeiras indignado e faz defesas veementes, o que o move? Você tem dúvida? Eu, infelizmente, não tenho.
Faço, então, deste texto, o posfácio do futuro livro.
E, como dito acima, vou ao grão: Eretz (terra de) Israel é, ao contrário do que esses ignorantes dizem, um dos países mais legítimos do planeta. Já vi semoventes defendendo “Palestina do rio ao mar” (genocídio implícito, porque estamos entre o Jordão e o Mediterrâneo) e afirmando que Israel seria um “Estado artificial”. Ora, que vergonha alheia! Vamos por partes:
1 ) Judeus, como os árabes locais (palestinos), são o povo originário daquela terra. No caso dos judeus, é sua única referência territorial num mundo em que nunca foram aceitos. Os árabes têm outros 22 países, e os muçulmanos, muito mais.
2 ) Judaísmo é muito mais que religião. É etnia, ou, como preferem alguns, “grupo étnico-religioso”. É um povo que se tornou conhecido pelo nomadismo forçado e, por isso, ser considerado estrangeiro em todos os lugares onde estivesse.
3 ) O antissemitismo já foi religioso. Depois foi “racial” (na Europa nazista, em especial). Mais adiante, quando do advento de Israel, tornou-se político. Por quê? Ora, porque, havendo Israel, é importante esvaziar o caráter étnico que o justifica.
4 ) Diante do contexto acima, alguns “antissionistas” alegam que judeu é só religião (!). Fazem contorcionismos pra explicar essa aberração. Veja no dicionário a definição de etnia: se você puser a imagem de um judeu no verbete, é muito adequado.
5) Digo eu mesmo: etnia é o compartilhamento de história, idioma, cultura, hábitos, religião. No caso da “religião”, um dos elementos da cultura, no judaísmo é um Deus incorpóreo e uma série de princípios éticos observáveis até por ateus.
6 ) Curiosidade: um dos capitães do mato judeus que fazem a alegria dos antissemitas (antissemitas amam judeus que odeiam judeus) é ateu. Justifica o Hamas e escreve até livros contra o “sionismo”. Percebam a brutal contradição desse sujeito!
(obs: vale uma ressalva aqui. Sabe aqueles judeus ortodoxos “antissionistas” que os antissemitas também amam? Eles, os naturei karta, são, de certa forma, sionistas. Querem Israel, mas quando o messias chegar. É só delírio fundamentalista)
7 ) Todos os conceitos são criações. “Raça” só existe porque existe o racismo, uma vez que, biologicamente, o humano, com qualquer cor de pele ou origem, é racialmente um só. Mas ao judeu recai a permanente necessidade de se explicar.
8 ) Países como Síria e Iraque são, ao contrário de Israel, territórios com fronteiras definidas aleatoriamente pelas potências vencedoras da Primeira Guerra. São integrados por tribos que se odeiam. E logo Israel é posto em dúvida.
9 ) E o Brasil, nosso país? Onde estão os povos originários? Apagados do mapa! Vivendo, aí sim, genocídios em suas aldeias paupérrimas. Veja: se formos falar em “país artificial”, todos descendentes de europeus precisamos ir embora daqui.
10 ) Uma das tantas tentativas de aniquilar o judeu (há as físicas e, sendo elas ineficientes, agora também as semânticas) é a de dizer que um grupo na Europa, os kasaris, se converteu ao judaísmo no século 8 (o Brasil nem sonhava em existir…).
11 ) Sobre o item acima, um grande amigo meu, o Marcos Bliacheris (também colunista da SLER) me disse certa vez que está para os antissemitas como a cloroquina está para os bolsonaristas mais fanáticos. E faz muito sentido.
12 ) Aí dizem que o iídiche não é idioma semita, mas germânico. Como podem ser tão rasteiros? O iídiche, mistura de alemão e hebraico (semita), é o idioma dos judeus askenazim na Europa Central para se adaptar ao lugar onde vivem, como todos fazem.
13 ) Pra tirar qualquer dúvida dos seres de má vontade e péssima índole, que fique claro: inúmeros testes de DNA já foram feitos com askenazim mostrando sua ligação ancestral com Israel. E, de mais a mais, qual seria o problema de termos antigos conversos?
14 ) De certa forma, todo judeu é sionista. Há 4 mil anos temos comprovada ligação com Israel. Você pode alegar que o conteúdo da Bíblia não tem valor histórico. Pode ser. Mas é certo que, em si, é o livro mais antigo da humanidade. E lá estamos.
15 ) Há 4 mil anos, todas as nossas festividades são determinadas pelo calendário agrícola israelense. Há 4 mil anos (tirando a exceção de quando vivíamos lá), rezamos nas sinagogas sempre voltados para Jerusalém, porque ela é nossa capital eterna.
16 ) Nunca deixou de haver judeus em Israel, mesmo que em minoria. Com a inequívoca necessidade demonstrada pela Shoá, tornou-se uma imposição lógica e histórica que os judeus tivessem (e voltassem ao) seu lar, para terem paz e segurança.
17 ) Um povo originário que volta ao seu lar por não ter outro no mundo e por que de todos foi perseguido ou expulso não é “colonialista”, como dizem as falácias antissionistas. Se houvesse partilha e aceitação, viveriam em paz ao lado dos vizinhos.
18 ) Chegamos ao item 18, e isso não é aleatório. O 18 é a representação numérica da palavra “chai” (vida, em hebraico). E me despeço repetindo algo que direi sempre que necessário:
Israel é um dos raros países legítimos no mundo.
O resto é injustiça, maldade e puro antissemitismo.
Le chaim (à vida), então!
E shabat shalom!
Leia minhas colunas sobre este assunto nas últimas semanas:
> Antissionismo é antissemitismo
>> Os poréns seletivos que constroem narrativas desonestas
>> Compreenda o conflito israelo-palestino
>> Efeitos do antissemitismo estrutural
>> Não é preciso fazer montagem
>> A invisibilidade dos israelenses
>> Só se aperta a mão de quem a estende
>> A maldade independe de ideologia
>> Presidente Lula, enxergue-nos
>> A esquerda burra dá vida à extrema direita
>> Mais atenção às palavras
>> A narrativa vazia do “intelectual” antissemita
>> Aviso aos antissemitas: vocês nos fortalecem
>> A única opção justa: 2 Estados e 2 povos, Israel e Palestina
>> A necessidade fez deste meu espaço um espaço judaico
>> Por que o antissemitismo é uma espécie de síndrome?
>> Todos devemos ler o livro de Nelson Asnis
>> Conheça a pluralidade generosa e humanista do sionismo
>> Fala sobre Holocausto é a homenagem de Lula ao Ustra
>> Eu acuso
>> Há mais de cem anos, o jornalismo judaico busca empatia
> > Seria Jack Sparrow um judeu fugido do Brasil?
> > Os 120 anos da imigração judaica no RS (e no Brasil)
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