Precisamos ter uma conversa. Nós, judeus, e todos os que possam escutar, porque o assunto é amplo e muito importante. Por favor, os judeus precisam urgentemente tomar as rédeas da sua história, da sua sofrida trajetória, dos seus símbolos, valores, cultura e fé.
Da sua etnia, em resumo.
Vou tentar pôr neste texto a infinidade de reflexões que isso me provoca.
E essa conversa, além de ser com judeus, é com não judeus.
Essa conversa é com gente de esquerda, centro e direita.
Precisamos defender o judaísmo e, sobretudo, nossa terra ancestral.
Israel, neste momento, sofre com ataques terroristas de quem não o admite nem como vizinho numa convivência fraterna ideal (não admite sua eloquentemente óbvia legitimidade) e, neste momento, também com perigosos ataques à sua essência, partidos desde dentro, de ortodoxos que podem passar eight days a week lendo a Torá, mas dela não entendem nada. Só entendem de símbolos vazios parados no tempo. E, a partir dessa petrificação jurássica, andam tentando impor alguns retrocessos na terra socialdemocrata por vocação.
Mas precisamos nos unir contra essa ameaça e valorizar os vários judeus notórios que souberam interpretar a Torá. Exemplos? Temos aos magotes! A alguns deles:
- Baruch Spinoza. Só foi o gênio que foi porque sorveu a literatura que fala num Deus incorpóreo, na rejeição a mitos, na onipresença, na recusa à crença em céu e terra. Monista, panteísta (se discute isso, mas acho apropriado dizer que, sim, ele era panteísta, na imanência ou na transcendência, tanto faz). De onde teria tirado toda a sua genial teoria? Foi tão forte o que escreveu, que acabou sendo expulso (e expulsão no judaísmo não é como em qualquer religião, é ser expulso dum povo, duma nação, duma etnia) justamente porque o rabinato jamais poderia endossar aquela clareza toda com que ele explicava racionalmente o judaísmo. O poder cristão viria em cima.
- Walter Benjamin. O cara misturava a ortodoxia judaica à ortodoxia marxista. Parece um disparate, mas não é. Benjamin traduziu Baudelaire pro alemão. Adorava o poeta maldito, a voz dos excluídos. E você se pergunta: como pode isso? PODE! E MUITO! Quando Benjamin fala criticamente que a História é escrita pelos vencedores, encontra Baudelaire com suas prostitutas e seus miseráveis. E de onde vem isso? A Torá é, nas palavras do sábio Hillel, “não faça aos outros o que não gostarias que fizessem pra ti” (tenho isso tatuado em espanhol). Deus é o todo. Não se resume ao bem. Einstein sacou! “É o Deus de Spinoza”. Vejam quão profundo é isso.
- Amos Oz. Na sua brilhante obra, Oz deixou um libreto muito pequeno, já escrito quando ele estava indo embora deste plano. Fala sobre o fanatismo e sugere como cura o humor e a curiosidade. O humor é muito judaico, apesar de tudo o que os judeus viveram em especial na diáspora de 1,9 mil anos que se encerrou com a refundação do Estado de Israel (que era a terra de Israel, depois virou Judeia e, por obra dos romanos, tornou-se Palestina, que vem de filisteus). E a curiosidade? Ora, o chamado “povo do livro” vive dela. Cada letra da Torá é motivo de intermináveis debates nas yeshivot. O judaísmo é uma cultura vocacionada à ciência.
- Jesus de Nazaré. Sim, Jesus nasceu e morreu judeu. Nem sei se queria fundar uma religião. Sua mensagem é de amor. Mas de onde ele tirou isso? Ora, na Torá já aparece a máxima de amar ao próximo como a ti mesmo como princípio ético. E o sábio Hillel, já citado acima (que era contemporâneo de Jesus e teria morrido aos 120 anos), o “sábio dos sábios”, especificou melhor ao resumir tudo em “não faças ao teu próximo o que não gostarias…”. Que o resto é interpretação, e há 70 formas de professar o judaísmo. Quando vejo aqueles enredos em que Jesus volta à Terra e vê sua mensagem transformada em poder e suntuosidade, sendo perseguido por supostos seguidores, penso aqui comigo: Jesus voltou e, claro, continuou sendo judeu.
Poderíamos ir muito mais longe. Mas agora vamos falar sobre a perversidade do antissemitismo, tão sorrateiro, tão penetrante. É enorme a quantidade de pessoas que falam absurdos e depois dizem que não era antissemitismo, como se não fosse nosso (dos judeus) o lugar de fala pra denunciar esse ódio étnico. Veja bem, preste atenção… como as pessoas deixam de usar alguns princípios quando o dedo é apontado pro judeu. E isso é automático! Tácito! Cultural! Você vê um velhinho hindu ou muçulmano e acha fofo, mesmo que o cara seja um baita misógino. Mas… se o velhinho barbudo usa talit e kipa… hmmm… olha lá o judeu filho da puta. Pense bem nisso e negue se é capaz.
O meu maior apelo é aos judeus intelectualizados em geral e de esquerda em particular. Acho que posso me considerar dessa tribo, assim como meu amigão Marcos Bliacheris (brilhante colega aqui na SLER que me emocionou na semana passada ao lembrar aqui seu pai, o querido Maurício – leia aqui). Só que eu e o Xixa (esse é o apelido do Marcos) somos de um grupo que tem fortes interesses humanistas e intelectuais, mas não deprecia as suas raízes. Aviso que não somos poucos. Temos um grupo de whatsap em que nos reunimos virtualmente desde 2018, chorando pelo uso fascista dos nossos símbolos entre outros temas (melhor não sair do foco, mas esse grupo grande e lindo valeria uma coluna toda).
Sabe aquele lance de o negro ter seus espaços e de os LGBTQIA+ idem? Os judeus também merecem isso. Aí você dirá que a mídia é judaica. Ok, em muitos judeus na imprensa (sou o exemplo vivo, graças a Deus, por estar vivo e por ser minha única vocação), na literatura, na medicina e no comércio. Pode haver muitos jornalistas judeus, mas a narrativa está longe de nos defender. Pelo contrário! E perceba como essas atividades são fruto da própria cultura e até mesmo das perseguições. Nunca foi pecado para os judeus o manuseio do dinheiro, e a cura no judaísmo nunca foi vista como bruxaria. Ademais, quando veio o Iluminismo e os judeus puderam sair dos guetos, aqueles caras que passavam o dia lendo e interpretando a Torá sobraram nas universidades, explicando-se daí, inclusive a impressionante quantidade de prêmios Nobel a povo tão pequeno. Nada de superioridade nisso; somente a tradição de uma etnia que valoriza o estudo.
Mas tudo leva à perseguição (percebam a perversidade disso).
Enfim, estou farto de ouvir judeus se dizerem “de origem judaica”, por exemplo. Cacete! Tu é judeu, cara! JUDEU! JU-DEU! Para de ter vergonha das tuas raízes só porque uma avó vítima de perseguições te fez ter a necessidade de olhar pra fora pra respirar. Também tive avós opressivos, mas sempre os entendi (não é bolinho perder toda a família). Olha pra fora! Mas olha pra dentro! Olhar somente pra fora é um tipo de limitação talvez até pior que só olhar pra dentro. É negar sua essência. E isso não necessariamente tem a ver com religião. Existem judeus ateus! O judaísmo é uma religião ética, ancorada sobretudo na palavra (“Deus” é uma delas) e em valores. Os Dez Mandamentos são o princípio do justo. Podemos interpretar aqui, questionar ali, mas tudo se ajusta numa das 70 formas preconizadas pelo sábio Hillel. É curioso isto. O judaísmo, por princípio, não é proselitista. Tornar-se judeu requer uma conversão feita com estudos e se equivale ao ato do estrangeiro que vive no Brasil e resolve se naturalizar. É a mesma lógica. De povo, nação.
Quero que esta coluna seja uma das minhas mais lidas, porque a considero essencial, certamente uma das mais importantes. Judeus que depreciam suas raízes me incomodam profundamente (evitei a palavra “asco”). Estamos falando de algo muito sério. Precisamos nos defender. Não podemos ser judeus só quando a perseguição aperta. E Israel é essencial. Entrevistei dezenas de sobreviventes da Shoá (“Holocausto”). Rigorosamente todas essas pessoas se emocionavam ao falar sobre nosso lar ancestral, tão necessário, tão legítimo e tão justo, sem desmerecer outros povos originários daquela região, que também têm direito ao seu país, numa convivência sadia. O que diziam aqueles senhores e aquelas senhoras, muitos chorando? “Ufa, enfim passamos a ter quem nos defenda, a ter nosso canto, a ter pra onde correr”. E veja bem: não é em qualquer lugar. O Tanach (“Antigo Testamento” ou “Bíblia judaica”) existe há milênios, e ali está Jerusalém, o tempo todo. Mesmo que você veja a Bíblia como uma coleção de parábolas, ela em si é concreta e existe muito, mas muito antes do atual contexto de conflito naquela região. Logo, é quase como um documento juramentado de legitimidade a um lar.
Termino esse raciocínio (que certamente ficou incompleto, porque o tema é longo) recorrendo a outro filósofo, desta vez não judeu. Sartre dizia, em meio à resistência francesa a Hitler, que o judeu precisa agarrar as rédeas da sua narrativa. Era um homem de esquerda fazendo esse alerta aos tolos e pusilânimes. Se deixarmos isso para antissemitas e/ou fanáticos (incluindo aí fanáticos judeus), eles contarão quem somos.
E nós sabemos quem somos!
Ou, sobretudo, sabemos quem não somos.
Shabat shalom!