Sempre fui, sou e continuarei sendo um aliado de primeira hora das manifestações que combatem o uso perverso das palavras. Dois motivos: sou um ardoroso ativista da causa antirracista e, como jornalista e em tese advogado (digo “em tese” porque, apesar de ter me formado em jornalismo na UFRGS em 1986 e em Direito na PUC -OAB 26.640- em 1988, sempre fui jornalista e jamais exerci a advocacia), aprendi o valor que tem o uso das palavras. Não digo só no âmbito teórico, mas também e principalmente nas consequências práticas. Exemplo: o hino do Rio Grande do Sul. O que custa modificar uma ou outra palavra, sem jamais ferir a métrica, para mudar o sentido pejorativo de pensar que a escravização decorre da falta da virtude? Você que é um purista (no sentido da composição ou, meu Deus!, da “raça pura”) precisa entender. Os negros têm toda a razão em ver nisso um acinte, uma agressão, uma falta de respeito. Façamos um exercício de empatia e nos coloquemos no lugar do outro. No Brasil, o povo escravizado foi o negro. Logo, seriam eles as pessoas sem virtude. De nada adianta você alegar que o hino fala genericamente em um temperamento, o da falta da virtude que leva à escravização. Na medida em que os negros foram os únicos escravizados no país e no Estado, eles estão cobertos de razão. De mais a mais, com um par de palavras, sem mexer na métrica, você resolve o assunto. Ignorar essa solução simples e possível nos traz outro elemento do preconceito: a invisibilidade.
Faço parte de um grupo de judeus progressistas que se envolveu ativamente nesse assunto, esteve nas manifestações, teve a natural empatia que sentimos em relação a uma minoria historicamente discriminada como nós, com as peculiaridades que cada caso tem, mas as inescapáveis coincidências de uma diáspora crudelíssima e de eventos especialmente devastadores, que foram o Holocausto sofrido pelos judeus e a escravidão africana.
Jamais vou usar palavras como “denegrir”, “lista negra” e, depois de ter conhecido o significado, “mulato” -“mulata tipo exportação”, então, nem falar. Não uso porque fere! Não uso porque tenho empatia e compaixão. Não uso porque tenho noção das palavras e seus significados, da palavras e do seu poder na formação de imaginários, conceitos e culturas. Eu realmente sou antirracista e exerço o antirracismo como algo que julgo necessário na perspectiva de uma conduta respeitosa, civilizatória e humanista.
Bueno, agora mudemos levemente de assunto e falemos de outro racismo, que não tem a ver com a tez, mas com a etnia da vítima. Trata-se do racismo antissemita. Você sabe, né? O conceito de raça é uma convenção sociológica. Biologicamente, não há raças entre humanos, porque a raça humana é uma só. Mas, sim, existe raça porque existe racismo. Ou seja, por uma ironia; o negro só é grupo racial porque existe a figura abjeta do racista. E o antissemitismo? Existe por causa do antissemita, que, assim como o racista, pode se manifestar de forma explícita ou estrutural. O uso dessas palavras e a defesa daquele hino é um tipo de racismo estrutural. A existência dessas palavras é racismo estrutural, e a negação dos seus efeitos perversos e deletérios é a invisibilidade da vítima, sendo isso, em si, uma forma estrutural de preconceito.
Mas eu disse que mudaria de assunto.
Talvez você nem tenha notado que já mudei.
Falemos de “genocídio”, “holocausto” e “apartheid” em relação ao povo judeu, um grupo étnico-religioso historicamente muito perseguido na sua crudelíssima diáspora de 1,9 mil anos, desde que foi expulso daquela terra que já foi conhecida como Canaã, reinos de Israel e Judá, Judeia e, como uma das tantas tentativas de apagamento dos judeus, a região chamada Palestina.
1) Genocídio: o povo judeu foi a vítima que levou à criação desse vocábulo logo depois da Segunda Guerra Mundial. Procure no dicionário. É a eliminação deliberada de um grupo humano. Os nazistas fizeram isso na Europa, chegando a eliminar 2/3 dos judeus europeus. O Hamas tem no seu estatuto essa intenção. Israel, por pior que seja o seu governo (o atual, de extrema direita e recheado de judeus fundamentalistas, é o pior de todos!), jamais teve a intenção de aniquilar árabes, e a intenção aqui é chave. Se dependesse de Israel, já haveria ali dois Estados desde 1947, quando a ONU fez a partilha. E, veja bem, a população árabe palestina só cresce!
2) Holocausto. Hein?! Holocausto (ou Shoá) é o nome de uma ferida vivíssima na nossa pele! Vocês não percebem como isso machuca?! É tão grande sua insensibilidade? É tão exasperante sua falta de empatia e compaixão? Holocausto foi o genocídio dos nossos pais, tios, primos, avós, irmãos de nossos avós, seus levianos! É um episódio cheio de dores que vivemos por traumáticas transmissões transgeracionais? Você não se dá conta da violência de atribuir errada e irresponsavelmente esse horror a Israel? Você dirá que Gaza é um campo de concentração? Pois saiba que Gaza não é completamente fechada e que o seu cerco, como em tudo nas ações de Israel (com as quais nem sempre concordo), é defensivo. Em meados da década de 2000, cercar Gaza foi a única forma de conter os ataques terroristas do grupo terrorista e genocida Hamas, inclusive com homens-bomba. Esse grupo, aliás, que quer varrer Israel do mapa e eliminar todos os judeus no mundo, impondo um califado obscurantista. Esses são seus companheiros?! Pois então. Eles fariam um Holocausto, o que fica muito claro diante do brutal pogrom implementado em Israel, com execuções deliberadas de inocentes e sequestros de pessoas que ainda precisam ser resgatadas (falei antes em reação, né? Às vezes ela se impõe).
3) Apartheid. Ok você usar essa expressão figuradamente para caricaturar uma situação. Mas vamos lá: árabes em Israel sobem nos ônibus, entram nos prédios, vão aos cinemas, estudam nas faculdades, são artistas, parlamentares, médicos e soldados do exército israelense. Os negros na África do Sul eram apartados de tudo isso. Em Israel, isso não existe! E as provas têm nomes, sobrenomes e endereços. É uma aberração dizer isso de Israel, ao menos de uma forma literal. Os EUA até os anos 1960 poderiam ser comparados a um regime desses. E Israel? Logo Israel?! Jamais!
…
Por tudo isso, como dói ver companheiros de outras lutas, tão parecidas com a nossa, levantando em cartazes o slogan genocida “Palestina do rio ao mar”. Ao bradar esse horror, você defende o genocídio do povo judeu! Entre o Jordão e o Mediterrâneo, seríamos apagados. De certa forma, desgraçadamente, já fomos.
Obs: escrevi o texto acima em Curitiba, onde assisti ao show do meu amado James Paul McCarney, o cara que nos deseja feliz Chanuca e pinga afeto em cada palavra e em cada nota do seu contrabaixo, o contrabaixo que escreveu em notas as mais belas canções já feitas pelo ser humano. Te amo, Paul!
Shabat shalom!
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