Eu estava em dúvida entre dois assuntos para escrever nesta semana. Mas eis que me dei conta. Ambos têm a mesma essência. Logo, vamos a eles. De que se trata? Do uso de ferramentas contemporâneas para viver melhor e dizer “dane-se” ao que nos faz mal.
O primeiro assunto que eu iria (e vou) escrever se inspira em fatos recentes do noticiário. Tem a ver com a maravilhosa e já saudosa Tina Turner, que apanhava do obscuro marido; do tenista machão e bisneto de nazista que maltratava a antiga companheira; de matéria do caderno DOC, de Zero Hora, mostrando o crescimento alarmante dos casos de feminicídio.
Tchê, que asco desses trogloditas!
E como é importante termos uma Delegacia da Mulher.
Pois é. Eu vivi uma experiência marcante, lá se vão uns 36, 37 anos. Estudante de Jornalismo (UFRGS) e Direito (PUC), devo confessar que, apesar de ter seguido a minha vocação como jornalista, fiz três estágios na área jurídica, e uma foi no Ministério Público.
O promotor com quem trabalhei não era exatamente uma figura afeita ao trabalho. Ficava a meu cargo, um guri de 20 e poucos anos, o encargo de pegar o inquérito da polícia e decidir se denunciava, arquivava ou pedia mais diligências para o esclarecimento do caso.
A área era a criminal, e a Delegacia da Mulher dava seus primeiros passos.
E vinham os inquéritos da polícia, com fotografias assustadoras de mulheres desfiguradas pela violência doméstica. O que eu fazia? Denunciava, óbvio. Só que o vagal tinha que assinar, e ele, costumeiramente alcoolizado, me olhava e dizia “isso é bobagem, é briga de marido e mulher”.
Quem tinha a caneta era ele, evidentemente.
Uma vez, a coisa foi feia demais. Combinei com o jurispinguço que as imagens superavam qualquer possibilidade de tolerância, e ele aceitou o meu texto de denúncia. Só que por algum motivo incompreensível ao meu entendimento lindamente inocente, ele desistiu de denunciar.
Juro, e meu amigão de infância Benamy Sniadower é testemunha. Quando eu soube que o cara arquivou o inquérito, peguei o telefone fixo, liguei pro homem e, apesar dos meus 20 e poucos aninhos, tremendo de raiva e medo, falei algo assim, pra depois renunciar ao estágio:
“Seu filho da puta, sem-vergonha, machista e canalha, por que você arquivou o inquérito? Vagabundo! Pinguço malparido! De que adianta existir a Delegacia da Mulher se o inquérito é arquivado por ti?!” eu berrava, olhando o rosto do meu amigão e seus olhos arregalados.
Falei tudo aquilo e simplesmente deixei de frequentar o despacho do sujeito.
Me lembro até hoje a vertigem que senti. Eu tremia!
Nunca mais o vi.
E asseguro: aquilo foi libertador. Me ajuda a mirar meu rosto impoluto no espelho até hoje.
Esse era um dos assuntos de que eu queria tratar. O outro é mais amplo, mas a minha reação de menino idealista (que nunca deixei de ser) na ocasião conversa com o uso das instituições civilizadas para reparar injustiças ou ao menos aliviar a consciência e provocar alívio.
Tenho pensado em algumas estratégias para a manutenção da sanidade.
Vamos a elas:
- Use a Justiça. Na faculdade, aprendi que ela existe como ferramenta civilizada de resolução das controvérsias e reparação de injustiças, tipo STF proibindo fake news. Em vez de remoer ou bater com um tacape na cabeça de quem lhe causa danos, leve sua causa ao juiz e resolva o assunto. É catártica a sensação de reagir a uma injustiça, e o mundo civilizado nos dá possibilidades elegantes de não sermos passivos.
- Tem quem diga que é feio, mas, por favor, que delícia a possibilidade de, ao cancelar uma criatura inoportuna (racistas pela cor ou etnia, fascistas e até torcedores de futebol que negam o diferente), deixar de ouvir suas sandices. Isso também é libertador. Cancelo sem dor nem compaixão, e no meu mundo redondo as pessoas se vacinam contra pestes, racistas, homofóbicos e negadores do alheio.
- Delicie-se na sua bolha. Dizem que “bolha” é ruim. Eu amo a minha bolha! No meu mundo, todos ficam chocados com o fato horripilante de termos sido governados por um fascista ignorante e mau. Às vezes, eu fico sabendo que algumas pessoas dizem determinado disparate e fico surpreso. Coisa boa ficar surpreso! Sinal de que, na minha bolha, estou protegido desse egoísmo e dessa insanidade.
- Procure um bom psicanalista e, se necessário, consuma ansiolíticos e antidepressivos. Viva a ciência! Coisa boa a medicina! Hoje há recursos para lidar com os dissabores citados nos três primeiros itens dessa lista. Motivos não têm faltado para nos sentirmos deprimidos no meio dessa selva de gente má e ignorante. Proteja-se. Busque ajuda e use os recursos que a ciência nos dá para viver melhor.
- Consuma arte, sem restrições. Literatura, cinema, música, séries, arte na forma que lhe convier. Mas a consuma sempre. Como é bom! Santo remédio contra a doença da realidade cruel. A arte afaga nossa alma e nos pega pela mão.
- Multiplique sua happy hour por 24. Mande às favas a lógica utilitária desse sistema perverso que nos escraviza sem que percebamos. A happy hour não precisa se limitar ao fim da tarde. Isso é convenção. Você já pensou em como somos sugados prum mundo que não é o nosso? Falei em arte e me lembrei do Saramago. Muito além do Ensaio sobre a cegueira, temos a Caverna, inspirada na do Platão, mas que trata de outras sombras, as do mundo corporativo que supomos ser o real, mas que nunca foi.
Talvez o resumo deste texto seja muito simples e grosso: mande tudo à merda!
Mas na catega! E não como eu aos 20 anos.
…
Shabat shalom!
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