Em primeiro lugar, devo esclarecer que sou um típico gremista: sempre orbitando entre a quinta e a sétima maior torcida do país e a maior da região sul, com quase 10 milhões de almas, somos, entre todas, a mais fiel, ou seja, aquela que não tem outra opção, não tem um “vice-time”, tal o fanatismo pelo seu próprio. O Tricolor é o único time a ocupar o nosso coração, não havendo espaço para outros. Esse recorte curioso de pesquisa foi feito por uma recente encomendada pelo jornal O Globo. E assim eu sou. Mas me permito algumas simpatias vistas de soslaio, entre as quais estão o Racing e o Botafogo, times que brilharam neste difícil 2024 de muita angústia tricolor em meio a erros próprios e cheias trágicas que o atingiram de forma especial. Na Argentina, por algumas circunstâncias de quando morei lá e pela influência de amigos, o River também já contou com a minha simpatia.
Mas, enfim. Vamos ao ponto.
Sou crítico a torneios como a Sula (Sul-Americana), que vejo como banalizadores das conquistas continentais (premia o demérito, uma vez que os seus participantes são necessariamente os times que fazem campanhas de medíocres a péssimas e ganham um prêmio de consolação). Mas evidentemente é título que dá dinheiro, prestígio e vaga na Libertadores, o grande torneio continental (e dar vaga na Libertadores como trunfo, por si, já mostra a diferença de patamar). Se tudo der certo, meu time, já assegurado numa posição medíocre da classificação do campeonato brasileiro, vai disputar a Sula em 2025 e, quem sabe, dar essa volta olímpica paradoxalmente sem sentido e relevante. Vou desejar a conquista, óbvio, mas, caso ela ocorra, não vou beber todas na Goethe, como faria se fosse a Libertadores ou um dos títulos nacionais. Aliás, acho estranho os torcedores do Racing estarem eufóricos enquanto os do Atlético-MG, meritório vice-campeão da Libertadores, remoem uma depressão depois da ótima campanha que os levou a serem o segundo time do continente. Percebam a maluquice dessa situação! Não me agradam esses descritérios banalizadores e contradições absurdas do futebol. Percebam a aberração: o time que teve o mérito de ser vice da América termina o ano abatido, e o que conquistou a competição de segundo nível dá volta olímpica.
De qualquer maneira, fico feliz pelo Racing, que é azul, branco e também preto no calção, foi fundado em 1903 (como o Grêmio), tem o rival local vermelho (Independiente) e é um dos cinco grandes clubes argentinos mesmo estando fora do centro econômico (em Avellaneda, como o Independiente). São muitas coincidências com o meu time. Em 2001, eu estava no Obelisco (a Goethe portenha no futebol) festejando com eles o título nacional naquele ano de crise econômica histórica. Sentei-me numa cafeteria da Cerrito, tomei um licuado e comi um sanduíche de miga, vendo e participando da festa de um grande que recém havia voltado do rebaixamento e da quase falência.
Viva o querido Racing, não por acaso clube-irmão gremista (sim! Pode conferir, isso existe entre as duas instituições) e time de Carlos Gardel (como o nosso Imortal é o do Lupicínio Rodrigues, e não deixa de haver aí outra coincidência), Gustavo Cerati, Guillermo Francella, Mirtha Legrand e até, ao menos antes de ser jogador, do Andres D’Alessandro (não espalhem!).
Assim como o nosso “Clube de Todos” orbita entre a quinta e a sétima maior torcida brasileira, o Racing é a terceira torcida argentina. Proporcionalmente, é parecido. Assim como aqui temos o “Clube dos 13” como balizador dos grandes brasileiros, na Argentina os chamados “Cinco Grandes” são Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo. E isso, de ser grande fora das badalações do centro, é outra coincidência bem forte.
E o Botafogo?
Torci muito pro Botafogo em 2024, ano em que ganhou a Libertadores e está muito próximo de levar também o Brasileiro. Não sei se você reparou, mas, no ano da maior tragédia ambiental já ocorrida no país (a cheia no Rio Grande do Sul), o clube da estrela solitária foi a única instituição do futebol brasileiro, incluindo a omissa CBF, a nos estender a mão. Jogamos contra o Botafogo duas partidas em campo neutro. Se os outros clubes topassem, essa teria sido a solução para a absurda desvantagem competitiva que o meu time teve ao jogar mais da metade das suas partidas fora de casa, como se, em vez de vítima, fosse uma agremiação punida por eventual infração de alta gravidade. Não esqueçamos que a retirada do mando de campo é a tradicional punição determinada pelos tribunais desportivos. Em resumo, no nosso caso, é como se a vítima fosse o bandido. Nós, das Porto Alegres e Avellanedas, já estamos acostumados a essas atenções dadas aos outros, mas desta vez isso passou todos os limites do bom senso. Uma entre tantas soluções seria o Grêmio ter jogado em campo neutro todo o campeonato, com todos. Havia outras, mas essa seria uma das mais simples. Justifica totalmente o mau desempenho do time? Óbvio que não. Mas, com a desvantagem atenuada, certamente estaríamos na Libertadores em 2025.
Nesse ponto, sempre é bom lembrar que o rival local, ao ver que o segundo clássico seria na sua casa, rasgou todos os seus hipócritas discursos de solidariedade mútua, retratada na camiseta roxa (que junta azul e vermelho). Simplesmente cagou, em todos os sentidos. E acho que essa demonstração inequívoca de mau-caratismo por parte dos atuais dirigentes jamais deve ser esquecida. O presidente do Grêmio, meu querido amigo Alberto Guerra, me assegurou que estenderia a mão. E sei que é verdade. E também valeria lembrar o descaso dos poderes públicos com a Arena e seu entorno. Os bairros da Comunidade Tri foram os mais afetados pela cheia, e a Arena junto. Numa cidade que até já removeu vila, entortou avenida e aterrou rio para erguer estádio que existe onde havia água, é inacreditável que não haja soluções de estrutura praquela população absolutamente invisibilizada e desassistida.
Mas isso sempre dá um texto enorme, que seria outra coluna. O foco agora é o Botafogo, cujo gesto solidário também jamais deverá ser esquecido, mas, no seu caso, pela beleza da justiça e do humanismo. Acresça a isso outros elementos do “Fogão”. Quando eu era criança, comprei o livro “O time do bagaço”, escrito pelo meu eterno ídolo Zequinha, um ponta-direita endiabrado, que se tornou gremista de coração (leva a camiseta do Grêmio pras longínquas terras norte-americanas, onde tem escolinha de futebol) e também brilhou no Botafogo. Mas não é só o Zequinha. O Fogão é o time do Garrincha e do Jairzinho. Cultua a camiseta 7 como nós (pra nós e pros botafoguenses, o “7” é “10”). E tem entre seus nomes históricos o do enorme João Saldanha, jornalista de coragem e texto límpido, treinador que formou o escrete campeão de 1970 pelas mãos de Zagallo e desafiador de ditadores (numa frase famosa e “suicida”, que levou ao seu desligamento, lembrou que ele e o presidente-general-ditador Médici eram gremistas e gaúchos, mas que Médici escalava o ministério, enquanto ele escalava o time).
O Botafogo tem aquele charme da estrela solitária, como de certa forma nós também temos na bandeira oficial que homenageia o Everaldo, companheiro do Jairzinho na seleção mais icônica da História. Sempre achei uma pena um time de tamanha simbologia cultural e de tão forte apelo popular estar sempre fazendo papel de coadjuvante ou visitando a Série B. Esses títulos o redimem e, de certa forma, resgatam com louvor um clube de linda história e de exemplar comportamento ético, tão isolado quanto sua estrela, neste 2024 que se encerra.
Obs.: aproveito que o assunto desta coluna é futebol pra lembrar com alguma ironia que o mundial que antes se chamava Copa Intercontinental e que depois adotou o nome Mundial às secas, sem mudar quase nada da fórmula (apenas acrescentou alguns coadjuvantes que eventualmente chegavam à final), voltou a ter o nome “Intercontinental”. Convenhamos que “mundial” e “entre continentes” são rigorosamente a mesma coisa, assim como são a mesma coisa os campeonatos brasileiros, organizados ou não pela CBF e com nomes e fórmulas completamente distintas (caprichosamente, passaram a ser organizados pela CBF só a partir de 1980, o que é absurdamente irônico, e você sabe por quê!). Como agora haverá um torneio realmente mais amplo, o antigo mundial continua e retoma o nome pioneiro sem deixar de ter a relevância que sempre teve, de uma época, inclusive, que era para um grupo seleto (Santos do Pelé, Flamengo do Zico, Grêmio do Renato e São Paulo do Raí). Algo totalmente desnecessário e apenas simbólico, mas, puxa, é engraçado ver a cara de tacho dos tipos que criaram a “flauta” mais ridícula, mesquinha e abominável da história do futebol, aquela “flauta” rasteira que tentava desqualificar as glórias do rival, dos times mais icônicos da história do futebol brasileiro (o do Pelé incluso) e de TODOS os clubes grandes argentinos e uruguaios em vez de se ocupar da própria vida -naquilo que sempre foi um enorme atestado de pequenez e mediocridade. O tempo é o melhor remédio para estabelecer a justiça e calar a boca dos miúdos e recalcados. O Racing e o Botafogo que o digam. Festejem, amigos. Vocês merecem!
Shabat shalom!
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