Comecemos por Eva! Grande Eva! Injustiçada por nos ter dado o maior de todos os presentes: a capacidade de viver, estudando, trabalhando, transando, duvidando e amando.
Que porre seria se fôssemos um rebanho de bovinos.
Sim, alguns são, mas deixa pra lá.
O fato é que Eva mordeu a maçã, e os carolas do mundo inteiro põem esse delicioso fato na conta das mulheres como algo negativo, quando é todo o contrário.
Foi a primeira e maravilhosa transgressão.
Sem temer uma contradição, eu diria que uma divina transgressão.
Mas saiamos do Gênesis e sigamos na Torá. Vamos ao Êxodo.
Sou muito fá das parteiras Shifrá e Puá.
Devemos tudo a elas.
Ao desobedecerem às ordens do faraó, elas se negaram a matar os varões que vinham ao mundo. Foram radicalmente maternais. Radicais e transgressoras.
Ao se negarem a cumprir a ordem do faraó, o que elas nos deram? Tudo!
Moisés veio ao mundo porque elas foram radicais e transgressoras.
Os Dez Mandamentos existem porque elas foram radicais e transgressoras.
O mandamento “não matarás” existe porque elas não mataram.
E, ao não matarem, foram radicais e transgressoras.
Portanto, jamais confunda “radicalismo” e “extremismo”.
Às vezes, é lindo ser radical. Muitas vezes eu sou, confesso.
É possível inclusive ser radicalmente moderado.
Ir à raiz pode ser a promoção do diálogo e da concórdia.
Acho que essa coluna se estenderia muito se eu abrisse uma aba (aliás, “aba” é pai em hebraico) pra defender a necessidade de sermos radicais nesta esquina da vida.
Radicalmente antifascistas, radicalmente antirracistas, radicalmente contra a homofobia, radicalmente contra a ignorância, radicalmente contra a maldade e o egoísmo.
Aliás, meu Pai!, eu abriria ainda outra aba pra dizer que, na minha profissão, tem sido essencial o radicalismo. E me dói ver a pusilanimidade de alguns colegas.
O jornalismo, tema do qual me ocupo frequentemente neste espaço (até porque tenho a bendição de amar o meu ofício), precisa ser radical. Esse é o seu primeiro mandamento nestes tempos que nos tocam viver. Perceba: não estou falando de extremismos. Mas a qualidade deve ser radical, a busca da essência (a verdade) deve ser radical e, muitas vezes, o posicionamento claro precisa ser radical. É um baita bunda-mole o jornalista que cumpre o nem sempre necessário (e às vezes contraproducente) princípio de “ouvir o outro lado” quando, por exemplo, um tarado começa com a ladainha de que a Terra é plana.
É redonda! Isso é mais que comprovado.
Quem diz o contrário é lunático. Ponto.
E sigamos.
Ou melhor, voltemos a Shifrá e Puá.
Vejam a importância do seu radicalismo e da sua transgressão.
Li em algum lugar uma linda reflexão sobre esse assunto. Ao se negarem a cumprir ordens, as parteiras foram corajosas. Puseram a cara, como ser diz hoje.
Foram o que precisamos ser hoje, urgentemente.
Você já leu “Judas”, de outro hebreu, o Amos Oz?
É uma defesa da traição como transgressão.
O GÊNIO Amos Oz mostra que Judas, na verdade, foi o mais fiel amigo de Jesus, porque acreditou na sua ressurreição. É incrível!
Aliás, mais incrível ainda é que outro GÊNIO, Raulito Seixas, gravou uma música absurdamente linda, com o mesmo nome: Judas. Procure na internet. Tem um videoclipe maravilhoso.
Bem, eu facilito pra você. Aqui está!
Sobre Shifrá e Puá, na mesma reflexão que cito acima, me lembro que seu autor me arregalou os olhos ao dizer uma frase maravilhosa: “Na vida, você às vezes tem o dilema entre ser Shifrá e Puá ou o (verme do) Adolf Heichmann.” Cumprir ou não o script.
Não cumpram, pelo amor de Deus!
Transgridam!
…
Outra mulher citada aqui por ter sido decisiva nas nossas vidas, de certa forma fazendo uma dobradinha com Shifrá e Puá, é a Miriam. Quem foi Miriam? A irmã de Moisés e Arão.
Irmã mais velha, com aquele lindo sentimento maternal.
Pois Míriam pegou seu irmãozinho, pôs bem acomodado numa cestinha (que depois entraria para a posteridade com o óbvio nome de “Moisés”) e, ao contrário do que mostram alguns filmes de aventura, deixou o guri preso nos arbustos, exatamente no mesmo lugar onde ela sabia que a princesa egípcia se banhava todos os dias. Moisés já tinha três meses. Era um lindo bebê, e, evidentemente, a princesa se encantou com tanta belezura. Mulheres, mulheres…
E eis que, do nada, surge quem?! Miriam! Fazendo-se de sonsa, Miriam viu a cena do encontro entre Moisés e a princesa e, generosamente, sugeriu:
– Eu sei de uma ama seca que pode amamentar essa criança.
A princesa curtiu a sugestão. Encantada pela formosura do menino supostamente perdido no Rio Nilo, ela autorizou Miriam a procurar a tal mulher que o amamentaria, com o compromisso, claro, de devolvê-lo são, salvo e nutrido para ser seu filho adotivo.
Foi assim que Miriam salvou um bebê e a todos nós.
Golpe de Mestra!
Moisés, líder e legislador do povo judeu, foi o responsável por todos os valores civilizatórios que enobrecem a humanidade. E tenho a convicção de que nós, judeus, pagamos esse custo há milênios justamente porque eles incomodam. Mas é outra coluna.
No fundo, o que todo fascista e nazista despreza é isso.
Portanto, seja radical e seja transgressor. Para ser humano.
Shabat shalom!