Uma coincidência e tanto: eu à tarde na praia vendo as guerreiras gremistas, feliz com a conquista do Ladies Cup pelas gurias da minha amiga Marianita, e, à noite, resolvo conferir um filme novo no catálogo da Netflix: The six triple eight.
Futebol e cinema. Que belo coquetel de paixões.
Fiz tudo sem pensar em ligar uma coisa à outra.
Você acompanhou, imagino, a grandeza das gurias gremistas que se voltaram como umas leoas contra as adversárias racistas do River Plate, que xingaram um gandula. As nossas gurias tomaram as dores e acabaram também sendo agredidas. O maior rolo!
As argentinas acabaram expulsas de campo e depois presas, e nós ganhamos o jogo e depois derrotamos o Bahia na final. Lindo! Justo! Deu orgulho das nossas guerreiras e do clube, que entrou em campo também no sentido figurado e as respaldou.
E o filme?
Tchê, que linda história!
O roteiro não se deu sob a direção da querida Marianita, claro, mas de Tylker Perry. Não é futebol, mas a sétima arte.
Conta a história do 6888th Central Postal Directory Battallon, um batalhão composto por mulheres negras com o propósito de fazer a correspondência dos soldados chegar a suas famílias e vice-versa na Segunda Guerra. Mulheres negras nos anos 1940!
A filósofa Djamila Ribeiro fala sobre as camadas da exclusão. Ser mulher e ainda negra é um composto que põe a pessoa na periferia da periferia, na exclusão da exclusão. Não é fácil. Isso é cultural. No futebol e nos anos 1940, é e era algo brutal.
No filme, 855 mulheres se juntaram à guerra para resolver o atraso de três anos na entrega da correspondência. Conseguiram destravar a entrega de 17 milhões de cartas. O ano era 1943, e a ajuda da sensível primeira-dama Eleanor Roosevelt foi essencial.
A resistência dos superiores homens era um enorme empecilho. Os caras faziam de tudo pra que não desse certo. Mas as gurias deram diversas lições, e uma é muito básica: a da importância de se corresponder, de quão estratégica é a comunicação.
Comunicação é afeto. Comunicação é civilidade. Comunicação é algo agregador. Os comandantes não tinham a sensibilidade de entender que isso era estrategicamente relevante pro bom funcionamento das tropas, que precisavam aquecer a alma.
Mulheres, mulheres. Vocês são as mães da civilização. Sei que alguém me dirá: poxa, isso é óbvio. Em termos literais, sim. Mas, em termos simbólicos, a sensibilidade maternal de mulheres marcadas pela exclusão racial é algo que merece reflexão.
Você não entendeu qual a relação entre as meninas do filme e as meninas do time de futebol? As mulheres negras que puseram em dia a comunicação dos soldados com as famílias têm a mesma essência que as nossas craques, campeãs nacionais.
A solidariedade com o gandula, a revolta contra o barbarismo racista e a manifestação desse sentimento levaram à punição e a uma lição de extrema importância neste fim da primeira quadra do século 21: as meninas estão no comando. Prestem atenção!
E o filme resgata uma história de 80 anos atrás que precisava ser contada, porque ali tem os elementos de uma revolução cujos lindos frutos nascem nessa árvore de fortes raízes. O machismo, o racismo e a brutalidade não resistem à comunicação e à arte.
Que venha 2025!
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Ao encerrar esta coluna, mudo de assunto sem sair do futebol e da comunicação. Há muita ligação entre ambos e a arte, no drible, nas belas frases e nas imagens. Mas essa é outra história, que certamente mereceria um texto só sobre ela.
Nestas férias, em plena era digital, enfatiza-se o nível alto de desinformação entre “influencers” e até entre jornalistas ansiosos na internet. Contratações e negociações levam essa turma a chutar mais que os próprios jogadores de futebol.
E eu penso na SLER. Esta plataforma criada pelo meu amigo Luiz Fernando é um ambiente onde o jornalismo se preserva como espécie rara. O que foi o texto aí em cima? Foi uma análise que informa sobre o significado de um jogo e de um filme.
Percebam: enquanto a poluição verbal toma conta do universo digital, há onde você identificar a seriedade que vai ao grão, que aprofunda. Isso é informar! Isso é chegar à essência, com dados verdadeiros e análises que os interpretam para o público.
Obrigado, querido Luiz Fernando!
Aqui neste espaço, eu me sinto fazendo o que amo: jornalismo!
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PS: na virada do ano, uma triste notícia. Não por acaso, criador da expressão “la grieta” pra definir a polarização política e sobretudo cultural (“Duas meias Argentinas não são uma Argentina inteira, são duas meias Argentinas”), Jorge Lanata era um farol, uma referência. E era muito mal compreendido em razão da sua impressionante independência, algo essencial no jornalismo. Seu compromisso era com a verdade! Ponto. Nunca vou me esquecer da sua frase sobre o mau jornalismo ao contar que o diário pinochetista El Mercurio anunciou falsamente a falta de açúcar no mercado durante o governo Allende; com a notícia incorreta, as pessoas foram em peso aos supermercados comprar açúcar, e a escassez se tornou real, o que encobriu a atuação leviana do jornal e favoreceu o clima caótico pro golpe militar que afundaria o país nas trevas. Ou seja, o jornal interferiu, e isso, evidentemente, é péssimo. Lanata fundou o irreverente jornal Página 12, que eu assinava e lia, me deliciando naquele fim dos anos 1990 em que morei lá. “A realidade já é bastante trágica. O humor é uma espécie de inteligência. Não queremos ser os bêbados da festa, sempre engraçados, mas queremos dar informação sólida com humor”, mais ou menos assim ele definia a saborosa linha editorial do jornal que fundou em 1987 e do qual depois se distanciou. Lanata escreveu livros interessantíssimos e tinha visão equilibrada sobre diversos temas delicados. Primava pelo bom senso! Tornou-se profundo crítico do kirchnerismo, e essa foi a sua danação. Meteu o dedo na ferida dos atentados terroristas contra alvos israelenses/judaicos e denunciou a corrupção comprovada no kirchnerismo. Era certeiro quando falava nas contradições da direita e da esquerda, seu campo ideológico. Seria, numa classificação usual, um social-democrata. Mais: foi um dos maiores jornalistas dos quais tive o prazer de sorver a sabedoria. Lamento nunca tê-lo conhecido pessoalmente. Vá em paz, mestre!
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Shabat shalom!
Todos os textos de Léo Gerchmann estão AQUI.
Foto da Capa: Divulgação do filme Batalhão 6888