Eu ia me ocupar nesta semana de escrever uma suíte (termo usado no jornalismo para definir a continuação de um tema em texto posterior) da coluna que fiz na semana anterior, sobre os 20 anos do “Caso Ellwanger”. O motivo principal é que conversei muito, depois da publicação do texto, com alguns amigos que participaram da mobilização cujo resultado foi a histórica e até catártica condenação do nazista Sigfried Ellwanger. Houve a atuação da Federação Israelita do Rio Grande do Sul (FIRS) e também a participação do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), com a excepcional figura humana (nos sentidos substantivo e adjetivo dessa palavra) de Jair Krischke à frente, mas também com Mauro Nadvorny e Carlos Josias Menna de Oliveira (o advogado), além dos seus companheiros Luís Milman e Luiz Francisco Corrêa Barbosa. Wilson Muller, na polícia, também teve papel destacado nesse incrível episódio, que é um enredo pronto para o cinema.
A questão é esta: o episódio é enredo de cinema. Tem muitos desdobramentos. Houve convergências, divergências, debates acalorados, percalços, êxitos, dramas. O importante é que Ellwanger foi condenado pela prática de racismo, e o pilar democrático da liberdade de expressão se tornou, à luz da Justiça brasileira, um valor relativo, que deixa de ser legítimo e defensável quando redunda num crime. Portanto, trata-se de um gigantesco precedente.
Como os primeiros momentos desse caso marcante se deram quando Mauro Nadvorny deparou com livro nazista de Ellwanger em Capão da Canoa (praia de forte presença judaica no litoral norte do Rio Grande do Sul) e o passo seguinte foi uma reunião no Dror (movimento juvenil judaico de corte social-democrata), onde tudo se desencadeou, cheguei a começar um texto que levava o leitor a um passeio pelas entidades judaicas juvenis, femininas e de direitos humanos em geral, com suas fascinantes histórias (o Dror é uma delas, muito especial para mim, aliás). Mas os fatos se impuseram, e sou jornalista. Mudei o texto.
É impossível ficar indiferente à enorme repercussão que teve a resistência de setores da torcida do Corinthians ao técnico Cuca e os assuntos que vieram à tona por conta disso. Na quinta-feira pela manhã, aliás, Cuca se viu obrigado a renunciar diante de tamanha pressão.
Deixo então o passeio pelas entidades judaicas para a semana que vem.
Vamos falar genericamente desse episódio envolvendo o ex-jogador do Grêmio que depois também passou brevemente pelo Internacional. A passagem de Cuca pelo Grêmio foi marcante tecnicamente (era ótimo meia-atacante), pelas conquistas de títulos e por esse episódio terrível que volta a se tornar assunto sob nova (e muito mais justa) visão no século 21. Cuca e os outros jogadores envolvidos naquele caso passaram por diversos clubes, e o caso caiu quase que no esquecimento. O zagueiro Henrique foi ídolo no próprio Corinthians. Agora, com o protagonismo das mulheres corintianas (o futebol feminino nesse clube paulista é maravilhosamente forte), houve inconformismos e protestos, e voltamos ao tema.
O fato ocorreu em 30 de julho de 1987. Quatro jogadores gremistas (Henrique, Cuca, Eduardo e Fernando), em meio a uma excursão pela Suíça (disputaram a Copa Phillips), foram acusados pelo estupro de uma menina de 13 anos. A repercussão constrangedora na imprensa da época foi de caracterização dos jogadores como meros traquinas e até como “doces devassos”, reportagens os humanizaram e demonizaram a menina, invertendo os papéis de autores e vítimas. Enfim, uma vergonhosa leitura machista dos fatos, há apenas 36 anos.
O que me mobiliza a escrever, depois de tudo que já foi dito nos últimos dias (e muita coisa já foi dita), é que não estamos falando simplesmente de “evolução”. Estamos falando de repercussões que antes eram muito erradas e agora são muito certas. Simples assim. Não se trata de termos novos costumes, sociedade diferente, outro contexto etc. Trata-se de que hoje estamos completamente certos e de que antes estávamos terrivelmente errados.
O estupro coletivo de uma menina de 13 anos é e sempre foi uma monstruosa tragédia.
Quantas reflexões esse episódio estabelece!
Chega, né, pessoal? O gênero masculino precisa passar por uma reeducação radical.
Difícil? Sim! Isso mexe com uma cultura arraigada.
Mas mãos à obra.
Fico muito à vontade para entrar nesse assunto, porque, aos 58 anos, posso assegurar que sempre fui diferente da maioria – eu e meus amigos mais próximos nunca fomos machos truculentos. Por alguma questão de temperamento ou de educação (ou ambos), nunca acreditei que o desinteresse de uma menina fosse jogo de cena. Se ela não estava afim, é porque não estava afim. “Não!” era não. Eu até eventualmente sofria e podia fazer alguma tentativa de convencimento. Mas identificava quando não rolava o clima e aceitava o cruel destino. Outra coisa que eu não fazia (e era tristemente usual): sair com uma menina dando a entender que tinha sentimentos profundos de paixão só para ter uns minutos de sexo.
Que asco!
Jamais fiz. Mas como os guris, em geral, faziam!
Que educação péssima tivemos! Como é importante falarmos sobre isso e mudarmos! Enfim, posso me olhar no espelho e fico muito à vontade para enfiar o dedo na cara dos boçais. Mas o sentimento amargo, como integrante da tribo dos machos, permanece.
…
É curioso. Sábado passado jantávamos na casa de uns amigos, e eu disse algo que pode parecer tolice. “Quero ser ingênuo”, comentei com os meus amigos, psicanalistas, músico… claro, falo de ingenuidade proposital, o que não deixa de ser um enorme paradoxo.
A questão é que este mundo cínico, de gente egoísta e sem coração, cansou.
Está na hora de insistirmos no papo reto, abrirmos mão das agendas ocultas e, principalmente, respeitarmos o outro, exercitando aquela máxima judaica que alimentou diversas culturas. “Não faças ao outro o que não gostarias que fizessem a ti”, dizia o sábio Hillel pra resumir a Torá numa frase curta. Vale pra tudo. Serve pro grosseiro que ficaria indignado se a vítima da sua grosseria fizesse com ele 10% da estupidez que ele costuma cometer. Serve pros autores de bullying. Serve pra racistas e homofóbicos. E serve pro machão que provavelmente ficaria muito revoltado se a vítima de abuso sexual fosse sua mãe, esposa ou filha.
O grande exercício a ser feito é o da empatia.
Só assim mudaremos.
E se aquela menininha de 13 anos na Suíça fosse sua filha?
Shabat shalom!
Foto da Capa: Reprodução da Revista Placar / 1987