Vi o grande Billy Joel (foto da capa) cantando com uma estrela de David amarela grudada no peito pra afirmar que é judeu e protestar contra o crescente antissemitismo, fruto da ignorância e de uma invisibilidade que ele fazia questão de combater. Autor da bela “Honesty” e de outras baladas, ele esbanjava honestidade.
Lembrei-me de uma lição que aprendi por tabela quando morava em Buenos Aires. O cantor mexicano (nascido em Porto Rico) Luis Miguel, cultuado nos anos 1990 com seus boleros, mariachis e voz de veludo, contava que seu empresário, o argentino Hugo López, lhe ensinava: ninguém se arrepende de ser valente.
A música pop… ser fã incondicional dos Beatles desde a infância fez meu gosto musical ir muito além do rock’n roll. Como os Beatles são a inspiração de rigorosamente tudo o que veio depois dos anos 1960, um cara que cresceu os ouvindo tinha sensibilidade pra todas as sonoridades, bastando serem belas.
Quando eu era adolescente, no século passado, gostar de pop seria “caretice”. O irado era só curtir rock’n roll. Aí um dia eu li uma entrevista da Marina Lima na Playboy, e ela dizia algo de que nunca me esqueci: “Ser careta é não ser autêntico”. Ali eu já aprendera que tinha muito roqueiro caretão por aí.
Mas neste mundo de maniqueísmos, discursos mainstream, polarizações, bullyings e outros ascos, as pessoas temem ser verdadeiras. Sabe aquele lance de ser “gado”? Nos últimos tempos, aprendi que bois e vacas são ambidestros. Tem o tarado que glorifica o Ustra e o imbecil que justifica o Hamas.
Ser “gado” é a forma extrema do que antigamente chamávamos de “Maria vai com as outras”, um problema de caráter bem sério. Mas tem outras definições que considero ainda mais pertinentes: bunda mole, pusilânime, por vezes leviano, irresponsável e, por que não dizer?, verme.
Se na minha vida inteira primei pela importância de ter personalidade, hoje redobro a convicção de que essa é uma baita qualidade. Já não chamo mais de “personalidade” ou, como dizia a Marina, autenticidade. Hoje a coisa encrespou. Uma pessoa que pensa por si é o que dizia Hugo a Miguel: valente!
Neste mundo virtual, contaminado pela crueldade das redes sociais, a valentia se tornou obrigação. E, no meu caso, ela é uma qualidade em dois níveis: pessoal e profissional. O jornalista, hoje, precisa ter ótimo texto, muita credibilidade e uma valentia que o mantenha permanentemente com a cara limpa.
Esse conjunto de sentimentos moldou minha trajetória profissional, que foi influenciada de forma muito definitiva pela fase, no fim dos anos 1990, em que a Folha de SP me deu a oportunidade de aprender uma enormidade vivendo em outro país e fazendo imersões variadas na sua realidade.
Não é só que o fã do Charly, do Fito, do Calamaro, do Flaco Spinetta, dos Ratones e do A77aque também se permitia apreciar a voz de veludo do cafona Luis Miguel. Não é só assumir o suposto lado brega. É ser livre! A música talvez seja o maior sintoma. O cara, ao rejeitar o que a música traz, é um tolo.
Rá! Alguém dizer que não curto rock faria todas as pessoas que conhecem minha alma e minhas tatuagens rirem alto.
Mas não me limito a isso.
Vamos ao jornalismo: não foi por acaso que eu resolvi assumir meu time de futebol e escrever histórias pouco conhecidas das quais me orgulho, sem jamais deixar de negar as mazelas que todos têm. No dia 13 de maio, fará uma década que enveredei pela reportagem em livro. Sou um jornalista autor de livros!
Preciso ser valente
E nesses livros eu sou valente: alguns amigos muito próximos e também os bons colegas sabem do custo que isso tem. Desde “Coligay, Tricolor e de todas as cores” (2014), dediquei-me com afinco a pôr nos trilhos histórias antes mal contadas, lendas urbanas frágeis que se encrustavam num imaginário capenga.
Fiz livros que são reportagem. Logo, reportam-se a fatos. Muito pouco de interpretações. Documentos, personagens de carne, osso e CPF, fotografias de nitidez incontestável. Esse é o suporte para desmontar tolices. E já era muito pesado pra mim. Mexer em narrativas consolidadas pela repetição tem alto custo.
Mas nada se compara com o que tenho vivido. Antes, eram os narizes torcidos de quem não admitia ver suas lendas clubistas desmontadas. Tenho elementos eloquentes que me mostram a rejeição de antigos colegas e motivos muito sérios pra acreditar que fui banido em algumas ocasiões. Virei um maldito.
E hoje. O que houve que provoca sabor tão ocre? É que sou judeu como o Billy Joel, adoro “Honesty” e assumo minha identidade étnica, pondo sua defesa acima de outros valores muito menores. Rompi com muitos supostos amigos que revelaram o tamanho do antissemitismo adormecido.
O problema não é só ser judeu. De judeus que não ligam, eles gostam. Os judeus capitães do mato, que fazem a delícia da turma se voltando contra seu próprio povo, amam! A questão é a estrela que também grudei no meu peito, como fez o valente Billy Joel. Essa estrela eles rejeitam, seu portador é malvisto.
O antissemitismo é tão sorrateiro, que penetra onde menos se imagina. Se o cara grita alto contra o pogrom monstruosamente avassalador que os terroristas genocidas do Hamas fizeram contra Israel e vê a reação israelense como inescapável, pronto, é um fascista que defende a morte de crianças.
O cara se vê, como homem de comunicação, obrigado a pôr os pontos nos is. Não é atraído pelo canto da sereia que fala absurdos e até comete o bárbaro crime de rejeitar a legitimidade inquestionável do Estado judeu. Aceitar isso pra ficar de bem com a turma é coisa de pusilânime e mau jornalista.
Difícil? Muito! E, às vezes, bem solitário.
“Nadie se arrepiente de ser valiente”, dizia o Hugo pro Micky, com rima no espanhol, conteúdo e, claro, musicalidade.
Ah, como a arte salva!
Podem torcer o nariz. A Marina Lima tinha razão.
Como é bom ter a espinha ereta, o coração tranquilo, a alma serena, a cara limpa e a dignidade intacta.
Caretas, burros, tolos e maus são vocês!
Shabat shalom!
Leia mais textos de Léo Gerchmann aqui
Foto da Capa: Billy Joel | Divulgação