No dia em que o Grêmio completa seus 120 anos de glórias (um século e um quinto/rumo ao infinito do amor que sinto), venho aqui falar sobre paixão e identificação, dois sentimentos que a magia do futebol desperta e que o Clube de Todos, com sua alma fantasticamente plural e inclusiva (que retratei em sete livros), muito em especial amplifica nas almas de algo entre 60% e 70% dos torcedores gaúchos (dados apurados em rigorosamente todas as pesquisas). Posso falar em grandes epopeias e inúmeros heróis da nossa História. Se citar o Lara, o Airton, o Jessy, o Foguinho, o Everaldo, o Tarciso, o Catimba, o Renato, o Roger… precisaremos de muito espaço. Mas, ao mesmo tempo, sou impelido pelo contexto a pedir que o clube, definitivamente, seja mais agressivo na condução de temas estratégicos referentes ao imaginário popular.
Que seja intolerante contra perversidade alheia. Não me refiro à atual gestão nem às recentes, que fique claro, até porque elas já avançaram nisso. Refiro-me a uma tradição de timidez, passividade e bom-mocismo que infelizmente nunca estiveram apropriadas ao necessário enfrentamento contra quem nasceu e vive para desconstruir a nossa imagem. Sempre fomos adeptos do “deixa pra lá”, sem perceber que mentiras repetidas viram falsas verdades, na mais pura lógica nazista de se comunicar. Na mesma semana em que se festeja o aniversário, o presidente do rival local desfez do clube negando sua maior honraria: o mundial interclubes conquistado em 1983, com o charmoso e tradicional nome de Copa Intercontinental (entre continentes, ou seja, mundial).
Que lido ter a Intercontinental!
Mostra que nossa grandeza vem de longe.
Meu sangue ferveu forte, e fui correndo escrever aos gritos contra o presidente rival, que, como diz o nome do cargo, presenta (sim, essa palavra existe e é mais intensa do que “representa”) a instituição – ou seja, a fala desse sujeito é oficial. Meu sentimento era e é de que a falta de respeito e a agressividade ultrapassaram qualquer limite de razoabilidade, e um improvável rompimento seria o caminho que eu aplaudiria de pé. Veja bem se exagero: se alguém praticamente nega a tua existência, com desconstrução das tuas conquistas e até calúnias gravíssimas a teu respeito (a definição de “racismo” como algo exclusivo dos torcedores de um clube num Estado tomado por essa praga é uma piada de péssimo gosto), como que tu vai te sentar à mesa e ter esse agressor como interlocutor? Vai conversar com alguém que nega tua existência?Não, né?
Em diplomacia, existe o princípio da reciprocidade.
Demos a eles o que eles nos dão.
Que fique claro que não estou falando de flauta. Flauta é uma brincadeira, que necessariamente deve ter leveza. Já ri junto de piadas contra mim. Logo, não é senso de humor o que me falta. O que me falta é paciência com a tentativa perversa, contumaz e sorrateira de desqualificação do outro (no caso, nós). Vocês acham que exagero? Pois veja o ponto a que essa violência travestida malandramente de “zoação inocente” chega: um grande amigo gremista viveu algo simbólico dias atrás. Um menino questionou ao seu filhinho na escola se o Grêmio realmente ganhou um mundial (a pergunta, o assunto e a suposta dúvida, em si, já são um escandaloso acinte). Meu amigo teve a presença de espírito de explicar ao filho preocupado que, evidentemente, sim, somos. A Copa Intercontinental, conquistada pelo mítico Santos do Pelé e por todos (vejam bem, todos!) os grandes clubes argentinos e uruguaios, é o mundial interclubes, inclusive chancelado pela FIFA como tal (não com o nome do atual, mas “título mundial”, óbvio!). E acrescentou que os rivais que dizem o contrário (e preciso ressalvar que evidentemente não todos eles) são figuras desonestas recorrendo a práticas que usam desde sua fundação, como o despeitado, complexado e raivoso irmão menor.
O Grêmio nasceu pela bola e para a bola. Tanto que o nosso emblema é uma bola de futebol (o episódio que desencadeou a fundação do clube é lindíssimo, mas seria muito longo abordá-lo aqui, hoje, neste texto). E gosto também de brincar que o nosso nome tem seis letras, todas diferentes umas das outras, com aquele acento circunflexo que remete ao desenho de um telhado e ao sentimento de pertencer. Outro detalhe interessante é que o gentílico gremista é de gênero neutro. De todos!
Nossos rivais nasceram seis anos depois para nos enfrentar.
É fato! E é definidor de personalidade.
Que feio pode ser isso, hein?!
Fazer esse papel miúdo, de desconstrução do oponente, não é atitude de adversário, mas de inimigo. No caso específico do mundial gremista, o comportamento desses adversários de índole desonesta é a atitude negacionista de tribo recalcada, encravada numa aldeia provinciana do Brasil meridional. Essa turma só não tem vergonha na cara por pura falta de noção. É literalmente coisa de sem-vergonha. Tão ridículo quanto utilizar algo sério como o racismo numa narrativa fragilíssima que tenta mostrar suposta superioridade moral e propriedade da virtude em detrimento do adversário acusado injustamente de segregador.
É patético! É torpe!
Logo, nestes 120 anos, eu peço: chega de respeitar quem nos desrespeita. Hoje, 15/9, certamente haverá hipócritas tapinhas nas costas e cumprimentos em páginas de jornais. Mas é tudo em vão. O sujeito que os presenta já se referiu a nós dias atrás, e foi horrendo o que ele disse. Sobre os enfrentamentos que precisamos fazer contra a maldade de adversários desqualificados, vão aqui reflexões que andei fazendo:
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Vi vídeo do presidente do Internacional dizendo que o mundial deles é mais que o nosso (ou o nosso nem existe) pelos motivos absurdos e desonestos de sempre. Esse sujeito (que, como não é ignorante, só pode ser mal-intencionado) deveria saber que ter o título “intercontinental” (entre continentes!) é o mais grandioso e charmoso dos mundiais. É aquele que conquistamos quando ninguém cogitava algo assim, 23 anos (uma geração) antes deles. Era tipo o homem chegar à Lua. Algo lindo que conquistamos quando o Santos do Pelé o tinha como a sua grande, reluzente e histórica conquista, e o Flamengo do Zico recém tinha chegado lá. Era uma enormidade! Era inacreditável! Era absurdo! Era descomunal! Era quase inalcançável! Era restrito! Foi uma festa que jamais vi igual. A gente se beliscava pra ter certeza de que aquilo não era um sonho. A FIFA (como amam a FIFA!) chancelou oficialmente o óbvio em 2017: que o mundial do Pelé era mundial. Aí vêm uns negacionistas ridiculamente desqualificados encravados numa aldeia do sul do Brasil dizerem que nós e todos os brasileiros acima citados, além de todos os grandes argentinos e uruguaios, não temos mundial, porque conquistamos pela Copa Intercontinental.
Essa tentativa perversa de emplacar uma narrativa calhorda contra todo o mundo não tem nada de inocente. É uma reiterada agressão. E digo mais: ela, junto com algumas calúnias gravíssimas que adoram repetir, praticamente nos negam a existência. Vão repetir essa ladainha sacana e desrespeitosa como “brincadeira” até, no mínimo, emplacarem a criminosa dúvida. Imagina se a gente disser que eles não são campeões brasileiros porque nem existia a CBF e o torneio tinha outro nome quando eles conquistaram! Que o Brasil é só tri mundial, porque não havia FIFA e nem todos os continentes do mundo participavam do torneio. É rigorosamente a mesma coisa. São vis! São baixos! Dão atestado de pequenez quando fazem isso (e aqui vai meu pedido de perdão aos que não fazem, até porque não me dirijo aos honestos). E esse sujeito presenta o clube. Ele é a instituição falando. Eu sempre detestei a rivalidade gaúcha. Mas, diante da repetição nada inocente de vilanias próprias de inimigos e não de adversários, hoje eu adoraria se o nosso presidente rompesse oficialmente relações com o Internacional.
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O que apodreceu tanto entre nós?
Aí me perguntam: por que tu te importas? E respondo tranquilamente. Porque pesquisei muito sobre a criação de narrativas e imaginários no futebol. Porque é importante para mim. Porque muito do meu tempo, afeto e energia já foi (e é) usado vivendo a paixão pelo meu time. Porque detesto ser desrespeitado (e não gosto de desrespeitar). Porque, sobretudo, vi historicamente o Grêmio aceitar de forma passiva muita lenda criada nesse ambiente em que até o inteligente fica burro e o bom fica desonesto. Dizer que a intercontinental não é mundial é uma afronta às páginas e personagens mais lindos da história do futebol só pela miudeza de uma rivalidade ridícula. Por que não respeitam o outro e curtem suas próprias glórias? Foram vocês mesmos que puseram as faixas de campeões do mundo no nosso peito orgulhoso. O que apodreceu desde então?! Por que não respeitam a profundidade das memórias afetivas alheias? Vale pra gremistas e colorados. Que ambiente tóxico é esse do futebol! Que asco! A fala do presidente do Internacional dizendo uma asneira alheia a qualquer diplomacia exigida de alguém que ocupa seu cargo foi um marco. Nessa sexta, o Grêmio faz 120 anos. Vai soar constrangedoramente falsa qualquer homenagem do sujeito que preside o Internacional nas páginas dos jornais. São páginas vazias que vão pro cocô do gatinho sem escalas. Acabou a cordialidade na relação Gre-Nal. Eu próprio deixei de ser aquele cara magnânimo que fui desde criança. Simplesmente impossível! A frase irresponsável do presidente colorado foi, em palavras, a pedra jogada no nosso ônibus oficial com todos dentro (lembram?). Uma agressão! A negação e a tentativa de desconstrução do outro! Parabéns aos envolvidos nesse triste desfecho.
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Tem semoventes que não entendem o significado das palavras. Nenhum problema de o nosso mundial se chamar “intercontinental” (entre continentes). Já teve época, quando a CBF nem existia, em que o campeonato brasileiro tinha fórmula e nome diferentes. Essa lógica, vinda de vocês, é uma pedrada no seu próprio telhado de vidro.
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Ou param de vez com esse desrespeito afrontoso, ou combinamos o seguinte: se vocês dizem que não temos mundial, passem a concluir que vocês não têm campeonato brasileiro. Pelo menos terão um critério.
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Responder que não existe o mundial do Grêmio do Renato, do Santos do Pelé, do Flamengo do Zico e do São Paulo do Raí (além de TODOS os grandes argentinos e uruguaios) é tão criminoso quanto perguntar a respeito. Quem perguntou também é um imbecil.
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Jornalismo hoje é, além de informar, combater a desinformação. Ou seja, é cada vez mais essencial! É engraçado como minha intuição, há 9 anos (Coligay, Tricolor e de todas as cores, Libretos, 2014), fez eu entrar nessa seara. Depois veio “Somos azuis, pretos e brancos” etc. Mas, enfim, o Marco Túlio De Rose recebeu um texto completamente errado sobre Grêmio, Inter e suas origens, repleto de vícios e perversas inverdades. Fiquei honrado que ele tenha me procurado pra esclarecer os fatos. E aqui copio o que respondi, sempre me referindo à mensagem que ele recebeu: “Meu livro ‘Somos azuis, pretos e brancos’ também descreve esse episódio da chamada ‘Liga da Canela Preta’. E o primeiro jogador preto da dupla Gre-Nal foi o Adão Lima, do Grêmio. Jogou de 1925 a 1935. São informações que encontrei inclusive no banco de dados da Federação Gaúcha de Futebol. O Inter teve o Dirceu Alves em 1928 (três anos depois). Ficou só 10 meses. Antes disso, lá em 1912, o Grêmio já tivera o pardo Antunes. Jamais houve uma cláusula vetando pessoas por origem ou cor de pele no Grêmio (ninguém nunca mostrou essa suposta cláusula! Curioso, né? Falam nela, mas não mostram. Por quê? Porque jamais existiu). Pelo contrário. O primeiro estatuto é bem inclusivo (trago ele na íntegra no meu livro).
A Liga da Canela Preta foi criada em razão, ironicamente, de um veto do Internacional de Henrique Poppe ao time do pai do grande Lupicínio Rodrigues (o maior nome da nossa cultura popular, negro, que tem lindíssimo busto na esplanada da Arena), e isso levou o Lupi a virar gremista fanático (a ponto de fazer o nosso hino), segundo suas próprias palavras em textos facilmente localizáveis. Curiosidade: o judeu Salim Nigri expôs a faixa ‘Com o Grêmio onde estiver o Grêmio’ em 1946, e o Lupi a usou no hino em 1953. Vejam bem: uma tabelinha entre um judeu e um negro no ‘clube segregacionista’ (sic). Nos anos 1930, o torcedor-símbolo do Grêmio era o negro Bombardão, depois o Salim, depois teve até a incrível Coligay. Não é qualquer clube que ostenta uma estrela dourada na bandeira oficial em homenagem a um homem negro, o eterno Everaldo, uma das feras do também gremista João Saldanha. Não é qualquer clube que tem um hino que fala em humildade e perseverança, escrito pelo maior nome da nossa cultura popular, também um homem negro. O Internacional (fundado em 1909) era ligado ao pessoal da fronteira, e isso teve muito peso na sua História.
Nos anos 1930, em razão da quebra da Bolsa de NY, esses caras faliram. O Inter recorreu então a jogadores da Liga da Canela Preta (veja a ironia!) e criou a partir de então o slogan ‘Clube do Povo’, numa grande sacada de marketing do Antenor Lemos (nada contra, quando o assunto se restringe ao folclore). Em 1952, diante da abertura experimentada pelo rival, o Saturnino Vanzelotti incluiu uma cláusula expressando em palavras que o Grêmio era aberto a todas as cores, etc. e contratou o Tesourinha como símbolo. Houve resistências? Houve! Como ainda há entre os reacionários que existem no Grêmio, no Internacional, no Flamengo, no Corinthians, no Palmeiras, no São Paulo, no Vasco, Botafogo, Santos, Cruzeiro, Atlético. Os mesmos que hoje falariam em “mimimi”. Enfim, escrevi de supetão e até com alguma raiva, porque o tempo faz eu desconfiar de que, na verdade, os colorados têm é inveja da nossa linda história de pluralidade e inclusão. E certamente o que mais incomoda é que tudo isso é real, com fatos e pessoas de carne e osso. Tudo comprovável, ao contrário das lendas urbanas que eles criaram a partir de uma abertura pontual nos anos 1940.
Em tempo: o principal fundador do Grêmio foi o ‘pelo duro’ Cândido Dias da Silva. O do Internacional foi o italianíssimo Henrique Poppe. Havia alemães? Claro! E qual o problema? Houve uma forte colonização alemã no Estado, e na Voluntários da Pátria, mais ao norte (no Vale do Sinos idem), eles tinham seus estabelecimentos comerciais e industriais, assim como judeus e árabes, mais ao centro da mesma via. Detalhe: esses descendentes de alemães tiveram seu próprio clube (fundado pelo Leopoldo Rosenfeld, de nome, aliás, tipicamente judaico), o Fussball, que era rival dos gremistas antes de o Internacional surgir, seis anos depois, com o objetivo de derrotar o clube mais velho (como acho que essa necessidade se introjetou a ponto da permanente busca de desqualificação do rival, seja nas suas glórias ou na sua própria honra).”
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Somos o Grêmio que desbrava
Clube de uma torcida brava
Somos o Grêmio do Eurico Lara
Que o Lupi imortalizou na rima rara
Somos o Grêmio do Fortim
Onde se iniciou uma glória sem fim
Somos o Grêmio da Azenha
Onde vibramos, venha o que venha
Somos o Grêmio do Humaitá
Onde a vocação de inclusão se dá
Somos o Grêmio do IGT
Onde se aprende a pertencer
Somos o Grêmio da estrela dourada
Na bandeira com nossa alma simbolizada
Somos o Grêmio do Seu Verardi
Que foi humilde e lindo sem alarde
Somos Cândido, Koff, Dourado e Guerra
Todos gente simples da minha terra
Somos o Grêmio do doce Tio Hermínio
Amigão do meu pai, me tratava como um filho
Somos o Grêmio do Lumumba
Cuja linda negritude me deslumbra
Somos o Grêmio de Ancheta, Roger e Iúra
Pra simbolizar tanta belezura
Somos o Grêmio do Jessy ao Pavilhão
Que meu pai incrustou na minha visão
Somos o Grêmio da Coligay indo ao jogo
Por isso, Clube de Todos não é só um logo
Somos o Grêmio do Salim e do Bombardão
Uma torcida que transporta de paixão
Somos o Grêmio do futebol feminino
Que a Marianita mudou o destino
Somos o Grêmio de Elis, Teixeirinha e Quintana
Uma constelação de artistas que nos ufana
Somos o Grêmio de Erico, Elza e Gil
Que levam longe o branco o preto e o anil
Somos o Grêmio de Ramil, Bebeto e Josué
Tricolores apaixonados que vão até a pé
Somos o Grêmio dos Leos e do Nico
Clube com o qual me identifico
Somos o Grêmio, enfim, de artistas
Citei alguns sem querer fazer listas
Somos o Grêmio de dores e amores
Que vai dos Aflitos a três Libertadores
Somos o Grêmio da estátua Renato
Que fez da conquista do mundo um fato
Somos o Grêmio do Tarciso
Que será mascote num lance preciso
O Grêmio será também o Mosqueteiro
Porque retrata o espírito guerreiro
No Grêmio não é só lugar comum
Dizer “um por todos, todos por um”
…
Desta vez, vou trocar a saudação de paz que costumo fazer no pé da minha coluna às sextas-feiras (se você costuma me ler, sabe que sempre encerro com meu judaico “shabat shalom”). Vou terminar desejando novos 120 anos ao Grêmio e seguindo o lema do fanático gremista Mario Quintana, segundo o qual, como sabemos, eles passarão, nós passarinho.
Vamos com força, vamos com raça, porque nada pode ser maior.