Vamos ao grão? Raça, entre humanos, é um conceito sociológico, e as diferenças dos homens por esse critério é uma convenção, ironicamente originada na própria abominação inadmissível que é o racismo. Biologicamente, somos uma única raça, a raça humana. Logo, se estamos falando de um conceito sociológico, antissemitismo é um dos tipos de racismo. Pode não ser pela cor da pele, mas é pela etnia. Por outro lado, mas de forma complementar, “liberdade de expressão” é um belo pilar civilizatório, mas que precisa chegar ao seu limite quando se torna crime.
Então, falemos aqui sobre decisão histórica de 20 anos atrás, quando a Justiça brasileira condenou o nazista Sigfried Ellwanger por ser aquilo que ele era: nazista. E esse julgamento, que estabeleceu o “trânsito em julgado” (quando não cabem recursos), criou importantes precedentes.
O assunto ganha em relevância quando, em 2023, vemos o ressurgimento de manifestações nazistas e até violências perpetradas por seguidores dessa abominação (evito usar “ideologia” pra definir um crime).
Voltemos no tempo, então. E aos fatos.
Entre 1989 e 2003, foi consolidado o arcabouço jurídico e legal para a definição de antissemitismo, com as caracterizações amplas de “discriminação” e “preconceito”. E é disso que tratamos aqui.
O ex-diretor jurídico e ex-presidente da Federação Israelita (FIRS) Helio Sant’Anna conta que, com o apoio decisivo do então deputado Ibsen Pinheiro, criou-se a histórica tipificação legal do antissemitismo.
_ Nós, judeus, sabemos o que é o antissemitismo, sentimos isso na pele. A dificuldade inicial era definir o antissemitismo à luz do direito brasileiro. A definição passou a ser “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou o preconceito de raça, cor, etnia e religião” _ diz Sant’Anna.
Com a devida previsão legal, foi possível abrir o inquérito policial, que andou e se transformou em processo na 8ª Vara Criminal de Porto Alegre.
Ellwanger foi denunciado pelo Ministério Público pela prática do que prevê o artigo 20 da Lei 8081. Foram ouvidas 10 testemunhas da comunidade judaica, e a Justiça acatou a denúncia.
_ Ele (Ellwanger) nos olhava com ódio, porque não poderia admitir que os judeus o haviam colocado no banco dos réus, lembra Sant’Anna, que atuou como advogado da FIRS e assistente da acusação.
Ellwanger se defendia alegando que exercera o direito à liberdade de expressão, tema extremamente atual nesta segunda década do século 21. Na ocasião, o assunto era novo e já fomentava intensos debates jurídicos.
A condenação pela 3ª Câmara do Tribunal de Justiça (segunda instância) ocorreu por 3 a 0 em 1996. Era de dois anos de prisão, mas foi convertida, mediante suspensão condicional da pena (o réu era primário), em quatro anos de serviços comunitários. Quatro mil livros antissemitas foram incinerados. Ellwanger recorreu. Passou a alegar que judeu não era raça e que não cometera racismo. O detalhe é que, enfim, raça em tese não existe (a “raça humana”, biologicamente, é uma só), sequer pela cor da pele. Mas o racismo, pela ignorância humana, sim. A alegação era inócua.
E veio o ano de 2003, histórico para a causa (judaica e de qualquer ser verdadeiramente humano) contra o antissemitismo. O Supremo Tribunal Federal (STF) deu prosseguimento, no dia 26 de junho daquele ano, ao julgamento do derradeiro habeas corpus impetrado por Ellwanger. Decidiu pela não concessão, reafirmando a decisão embasada nos mais firmes preceitos de humanismo, justiça e civilidade.
Na ocasião, o professor, filósofo e jornalista Luis Milman, integrante do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) e muito atuante no caso, comentou: “Sem dúvida, trata-se de caso ímpar, pela jurisprudência que certamente fixará para futuras abordagens do preconceito racial no Brasil, com repercussão em vários outros países. O STF consagra, assim, a interpretação antes expressa nos votos dos ministros Maurício Correia e Celso de Mello, notáveis pela profundidade jurídico-humanista.”
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Buenas. De que se tratava o caso envolvendo o editor nazista? Ellwanger foi levado a julgamento por racismo antissemita em 1989, a partir de notícia-crime interposta pelo Movimento Popular Antirracismo (Mopar), criado pelo MJDH, com envolvimento da FIRS na fase judicial. Condenado no TJ-RS, o réu recorreu da sentença ao STF, que, em março de 2001, manteve a decisão tal qual proferida pelo tribunal recursal gaúcho. O julgamento histórico de 2003 teve como causa o habeas impetrado por Ellwanger, primeiro no Superior Tribunal de Justiça, onde foi denegado. Por força de novo recurso, o habeas foi submetido ao STF. Nele, Ellwanger alegou ter sido condenado por crime de preconceito e não de racismo, porque seus ataques se dirigem aos judeus, e os judeus, segundo ele, não constituiriam uma raça. Caso essa tese fosse acatada, a pena perderia a imprescritibilidade, e o editor ficaria livre de punição.
Seguia Luis Milman, na ocasião: “Não importa detalhar o mérito da alegação falaciosa da defesa do editor, amplamente rejeitada pelo STF e por muitos já devidamente analisada. Interessa informar sobre sua motivação escapista e chamar a atenção para a sua significação social e política. (…) Tratou-se de decidir se o crime que ele cometeu é de racismo. Hoje saudamos a decisão histórica (…) de justo enfoque sobre direitos individuais e sociais vigentes numa nação democrática”.
Sant’Anna enfatiza que, além da caracterização do antissemitismo como crime, Ellwanger teve a liberdade de expressão ao publicar seus livros, mas arcou com as consequências do seu conteúdo criminoso.
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O julgamento do STF fixou, na legislação brasileira, parâmetros sobre a natureza do racismo e para o repúdio jurídico de qualquer forma de preconceito racial, inclusive do antissemitismo _ “entre todos”, conforme Milman, “o mais multifacetado”. A decisão projetou luzes humanistas para desfazer confusões embutidas na recepção de uma pretensa modalidade benigna da noção de distinções raciais. Seguia Milman, naquele histórico dia de 2003: “O racismo é um fenômeno ideológico, social e político nefasto e, por isso, sua prática é proscrita do ordenamento jurídico brasileiro. Assim, nunca é demais repetir: não há raças, embora infelizmente haja racistas como Ellwanger e seus acólitos, que praticam metodicamente o racismo na sua versão nazista e antissemita. Engana-se quem vê no editor um representante de uma degeneração ideológica hoje inconsequente. Há mais de cem agrupamentos e partidos antissemitas na Europa, há uma forte indústria da negação do Holocausto, e o antissemitismo ainda é aliado de radicalismos e fanatismos de esquerda e de direita em todo o mundo. ‘Os Protocolos dos Sábios de Sião’, a mais bem-sucedida mistificação literária de que se tem notícia, continuam sendo editados como se fossem verídicos, em países como Rússia, Síria, Egito, Irã, Japão, Indonésia, França, Bélgica, EUA e Argentina”. (…) “Não se pode diminuir a gravidade do assunto ou tratá-lo como se estivesse localizado em imbecis inofensivos. O antissemitismo ainda é utilizado como arma de propaganda ideológica por extremistas”.
Enfim, a banalidade do mal, a máxima cunhada e eternizada pela filósofa judia Anna Harendt quando acompanhou o histórico julgamento e (e a condenação) de Adolf Eichmann em Jerusalém, em 1961.
Luis Milman concluiu sua análise na ocasião dizendo que o STF reafirmou que não há conflito entre os princípios da liberdade de expressão e da honra e da dignidade humana, ambos consagrados na Constituição. “Profissionais e estudiosos da imprensa devem convencer-se de que a defesa da liberdade não é absoluta. Não há direito irrestrito no Estado democrático de direito. Não há liberdade para propagar preconceito racial ou atingir a dignidade de indivíduos ou grupos sociais, culturais, políticos ou religiosos. A opinião e a informação são circunstanciadas por esses valores universais, conquistados pela humanidade ao longo dos séculos e sem os quais não há civilização”, disse ele.
Dani Rudinicki, professor de Direito, judeu e conselheiro do MJDH, define aquela vitória judicial como “marco no Direito brasileiro”, porque “foi a primeira condenação por racismo no país”. Acrescenta ele: “Foi um processo criminal marcante. Até hoje o STF o define como um dos mais exemplares da História, com ênfase nas manifestações dos ministros, que estabeleceram, naquele dia, um momento histórico”.
Jair Krischke, um gigante na defesa dos direitos humanos, cuja história de vida se confunde com a do MJDH, usa a mesma expressão, “um marco”, para definir a decisão do STF. Mais: diz que ainda não houve algo igual em toda a América Latina e que o episódio foi “fantástico” para os direitos civis, devendo balizar outros casos semelhantes.
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Enfim, o “Caso Ellwanger”, com origem na 8ª Vara Criminal de Porto Alegre, ultrapassou todas as esferas recursais, com a decisão final pelo STF em 2003. Foram anos de muita perseverança. A Revisão Editora chegou a ter 11 títulos apreendidos na 36ª Feira do Livro de Porto Alegre em 6 de novembro de 1990. Ellwanger adotava o codinome S. E. Castan _ Castan é sobrenome caracteristicamente judaico, o que mostrava que, muito além do escárnio, ele queria confundir a opinião pública. Foi a publicação do livro antissemita “Holocausto: Judeu ou alemão?”, de autoria do próprio Ellwanger (como “Castan”), que deu origem à editora Revisão, em maio de 1987. Em 1989, a obra estava na 29ª edição, com, aproximadamente, 100 mil exemplares vendidos. A mesma editora pôs à venda, por exemplo, “Os protocolos dos sábios de Sião” vertido para o português pelo integralista Gustavo Barroso; “O judeu internacional”, escrito pelo empresário americano nazista Henry Ford, com frases do tipo “Na Inglaterra, dizem que o judeu é o verdadeiro amo do mundo, que a raça judaica é uma supranacionalidade, que vive no meio e acima dos povos”. Também lançou “Brasil, colônia de banqueiros”, do mesmo Barroso, em que consta o trecho “O nosso Brasil é a carniça monstruosa ao luar. Os banqueiros judeus, a urubuzada que a devora”, e “A história secreta do Brasil” (também do inadmissível Barroso), em que se diz que “os judeus, secretamente, influenciavam as decisões dos grandes navegadores, manobravam nos bastidores das Índias e até faziam proselitismo e propaganda religiosa”. Enfim, era antissemitismo indisfarçado.
Ellwanger foi denunciado pelo Ministério Público por “incitar e induzir a discriminação racial, semeando em seus leitores sentimentos de ódio, desprezo e preconceito contra o povo de origem judaica”.
“Foram 15 anos de reuniões noite adentro, eu, o Luis Milman e o Mauro Nadvorny. Foi uma grande conquista. Tinha quem falasse em ‘liberdade de expressão’. Mas era racismo, era a defesa da supremacia ariana sobre os judeus. A Constituição defende a liberdade de expressão, mas tem uma vírgula ali: essa liberdade vai até onde se viole os direitos defendidos pela própria Constituição, e, claro, era o caso”, lembra Jair Krischke.
Narvorny, vivendo em Israel, costuma escrever artigos em publicações de esquerda e frequentemente usa a condenação de Ellwanger como exemplo de uso perverso dos símbolos nazistas que deve ser visto como apologia ao crime. E de como isso precisa ser coibido.
O “Caso Ellwanger” é um roteiro a ser filmado e posto na estirpe cinematográfica dos “filmes de tribunais”. Um marco civilizatório!
Pro streaming e pro cinema.
Mas sobretudo pra dura realidade da vida.
Shabat shalom!