Aparentemente, esta coluna tratará de tema intimista. Tenho algumas tatuagens, e sobre uma delas vou falar. Mas atenção: sou um tatuado conservador. Rigorosamente todos os desenhos eternizados na minha pele, desde a maçã azul feita quanto eu tinha 17 anos (inacreditáveis 41 anos atrás, em homenagem à minha banda de rock e ao meu time), trazem para a superfície símbolos extremamente relevantes para mim. Mas quero falar da letra Alef (a primeira do dialeto hebraico) que trago no meu punho direito.
A coisa vai longe: o punho direito é o que uso para escrever, e escrever é o meu sustento, a minha paixão e vocação. Começa por aí. Acrescente a isso que sou judeu, e o Alef é letra do alfabeto hebraico. Não deixe de levar em conta, ainda, que o Alef é a primeira letra do alfabeto daquela religião que é a primeira fé monoteísta, de onde as outras derivam. É só isso, então? Não! Somemos a isso a Argentina, país onde morei e que amo. O conto Alef, do Borges, é um primor, e ali está a Argentina eternizada em mim.
Nunca você imaginaria tanto significado, né?
Pois então. Falemos de Argentina. Que linda a festa pelo tri mundial! Que demonstração de humanismo na figura do ídolo Messi! Que vitória do mérito (desde o início do torneio eu os apontava como favoritos e vaticinava a vitória deles sobre o Brasil caso ocorresse esse confronto)! Que justiça se estabeleceu nesse resultado! Que goleiro é o Dibu! Que volante é o Paredes! Que atacante é o Di María! Que lindo é o futebol! Que jogaço foi essa decisão! Que adversário enorme foi a França na emocionante final!
E agora falemos de judaísmo. Confesso que a Argentina, por tudo o que eu vivi lá, me aproximou das minhas raízes étnicas. Mas isso mereceria toda uma coluna exclusiva. A questão do Alef é que ele contém em si muitos símbolos. Repare no desenho dessa letra, que o próprio Borges descrevia com indicações para todos os lados, porque ela é o princípio. Parte do Alef toda a civilização ocidental forjada pelo Povo do Livro. A máxima de “não fazeres ao outro o que não queres que façam pra ti” diz tudo.
Penso no Alef quando estamos nos despedindo de 2022 e, sobretudo, jogamos no lixo o Quadriênio Quadrúpede. Chega de ignorância e maldade em doses literalmente cavalares! De tudo o que vimos durante o horror do bolsonarismo, chocou especialmente, aos judeus lúcidos, o péssimo uso que se fez dos nossos símbolos. Que porcaria ver uma menorá na prateleira do Coisa Ruim. Que dor ver a bandeira de Israel, empunhada por delirantes neopentecostais, em manifestações públicas de apoio ao fascismo!
Mas é de hoje a apropriação dos símbolos judaicos? Claro que não! O fato de ser pioneiro faz do judaísmo uma cultura que, cronologicamente, foi usada por outras. O Tanach (a Torá – conhecida também como Pentateuco – e outros dois livros) é, para as outras religiões monoteístas, o Antigo Testamento. Os túmulos dos patriarcas são lugar sagrado pra todos. Jerusalém é motivo de debate, quando é para lá que os judeus rezam há 4 mil anos e também é a ela que a Torá se refere permanentemente. Ou seja, é judaica.
O que se quer dizer com isso? Que tudo isso deve ser exclusivo dos judeus? Nada disso! Quer dizer que tudo isso é profundamente judaico, mas que a pluralidade está na essência do judaísmo, e nada impede que outras culturas e outras fés venerem esses elementos como integrantes dos seus ritos. Só que jamais deixarão de ser o livro, o monumento e a cidade judaicos. Podem venerar à vontade, mas, assim como o Antigo Testamento é a “Bíblica judaica”, Jerusalém sempre foi, é e será, necessariamente, a cidade judaica.
Você acha que esse raciocínio é dirigido às bestas antissionistas que adoram vomitar ignorâncias perversas fantasiadas de humanismo mainstream?! Você acha que me refiro aos imbecis da esquerda que amam detestar Israel? Você acha que estou dando uma chinelada em irresponsáveis que inclusive podem vir a ocupar cargos importantes no novo governo? Você acha que a sanha antijudaica incomoda aos judeus? Você acha que não é só o mau uso, mas também o desuso dos nossos símbolos que nos incomoda? Ora…
Perspicaz, hein?! Acertou em cheio!
…
Mantenhamos o assunto na Argentina, porque quero pular pro futebol e pra asquerosa rivalidade que temos neste provinciano rincão meridional do Brasil. Falemos em Argentina e também falemos no Rei Pelé, que nos deixou nesta quinta-feira. Abordarei o tema pelo ponto de vista tricolor. Mas certamente o colorado terá suas queixas, porque é certo que a imbecilidade, assim como a virtude, não tem dono. Como sou gremista, tenho visão especial pro calo que machuca meu foot, ora bolas!
Em nome do Racing (clube-irmão gremista), que ganhou o mundial interclubes em 1967 (primeiro argentino), do Independiente, do Boca de Delgado, Palermo e Riquelme, e do Ríver de Alonso e Alzamendi, parem de passar vergonha. Em nome do Santos de Pelé (eis ele aqui), do São Paulo de Raí, do Flamengo de Zico e do Grêmio de Renato, pelo amor de Deus, deixem de ser rasteiros, parem de ser miúdos. O mundo todo põe “intercontinental” como sinônimo e razão social do “mundial”. Menos vocês! Por quê? Porque o lance é desconstruir.
Fico puto? Muito! Por ter morado na Argentina, sei o valor que esses clubes dão às suas façanhas globais, idêntico ao dado pelos clubes brasileiros. Você sabia que Pelé considera a conquista do mundial interclubes contra o Benfica em 1962 o melhor jogo da sua vida (o melhor jogo do melhor jogador do mundo em todos os tempos)? Termos chegado ao patamar do Santos de Pelé e também do maravilhoso Flamengo de Zico, naquele inesquecível 1983, é uma das minhas grandes relíquias afetivas, ao lado do meu falecido pai.
“Flauta”, atualmente chamada de “corneta”, implica necessariamente leveza.
Desconstruir glórias alheias e criar narrativas que as depreciem é agressão e maldade.
A Fifa, em 2017, teve que oficializar o óbvio: que a intercontinental (entre continentes…) era o mundial (aliás, nem mudou muito o formato, que foi inchado por motivos bem explicados num ótimo documentário atualmente no catálogo da Netflix, sobre as entranhas da Fifa). Nem assim adiantou. Ainda vejo resquícios de negacionistas ignorantes e/ou perversos por vezes insistindo no absurdo de que a Terra é plana, e eles são chatos.
Se você insiste nessa safadeza, deixe o Pelé em paz. Certamente ele não precisa das orações de quem deprecia algumas das suas mais lindas conquistas.
Tem coisa mais cretina? Sim: amparar-se em lendas urbanas extremamente frágeis pra se apropriar da virtude e, num Estado racista como o nosso, infantilmente atirar no rival a exclusividade de um racismo estrutural que deveria ser tema levado a sério. É muito foda! Esse tema, o racismo, é assunto pra lá de delicado. Não deveria se prestar a rasas disputas clubísticas. No fundo, quem faz isso pouco se importa com a gravidade do tema.
Mas esse assunto, se eu começar, vai render livro, porque o meu clube, do preto pioneiro Adão, do Bombardão, do Lupicínio com seu hino, do Everaldo com sua estrela na bandeira oficial, do judeu Salim Nigri, da icônica Coligay, do sábio Roger, do inesquecível Lumumba, da leoa Marianita não merece ser tratado com tanta falta de respeito. O racismo precisa da união, e não da imbecilidade de ser usado como arma numa rivalidade ridícula.
Ops, falei em livro?! Xi. Já existe… fui eu que escrevi.
…
Que 2023 nos devolva a dignidade e a esperança.
Obs: este texto seria todo sobre o Rei Pelé. Mas foi concluído quando ele ainda lutava pela vida. Fica este adendo. Será estranho o mundo sem a presença do maior de todos, o Rei Pelé, o grande embaixador brasileiro no mundo há meio século.
Shabat shalom!