Tenho uma espécie de “TOC funcional”. Como valorizo demais a importância de a imprensa ter saúde financeira para conseguir ser independente, também sou assim com eventos correlatos, digamos assim. A informação vale diamante, em especial diante de tanta desinformação culposa ou dolosa que anda envenenando nossos ouvidos, nossos olhos e nossas mentes.
Diante disso, segurei-me até o fim da espetacular exposição sobre o Lupicínio Rodrigues, porque as informações e demais itens apresentados até o último dia 23 mereciam ser apreciados sob o pagamento de módicos R$ 17 (que eu tive o prazer de pagar duas vezes). Foi um belíssimo trabalho do meu muito querido e talentoso amigo Carlos Gerbase.
Evidentemente, fiquei orgulhoso de ter livro meu exposto na seção que tratava do Lupi como boleiro. Creio que todos saibam que Lupi não só era gremista fanático, mas também é o autor do maravilhoso hino tricolor, uma ode à humildade e à perseverança totalmente alheia aos costumeiros ufanismos vazios que compõem as mensagens dessas peças musicais.
Mas tinha uma seção na mostra que fazia todos pararem e lerem com atenção (fotografei para reproduzir nesta coluna). É a reportagem da antiga Folha da Tarde contando do dia em que o grande nome da nossa música popular foi barrado em uma lancheria por ser negro. Mostra um Lupi visceralmente antirracista, como qualquer ser humano (em especial negro) deve ser.
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“Se acaso você caminhasse pela Rua da Praia
E entrasse numa lancheria para matar a fome
E ninguém viesse te atender fingindo que some
Será que tinhas coragem de acionar a lei
E chamar a rádio-patrulha como eu chamei?”
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Assim diria o Lupi em uma recriação feita por Carlos Gerbase e Carlos Ferreira baseada nos fatos tais como ocorreram.
Lupi chegou à lancheria Olé para jantar, e o proprietário do estabelecimento proibiu que o garçom o atendesse, sob a alegação de aquele lugar ser “privativo da raça branca”.
Evidentemente, Lupicínio Rodrigues jamais poria os pés em um local onde negros não são aceitos. Veja bem! O gremista Lupicínio, nascido em 1913… às vezes eu penso em como ter escrito livro-reportagem sobre as lendas urbanas do futebol gaúcho na verdade se resume a uma compilação de fatos reais e pessoas de carne e osso. Mas mantenhamos o foco.
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Continua o texto na recriação de Gerbase e Ferreira que remete a ‘Se acaso você chegasse:
“Eu falo essas coisas porque não suporto gente assim
Que quer humilhar uma pessoa pela sua pele
Mas naquele dia eles é que se deram mal
Os idiotas acabaram na delegacia
E eu fui almoçar com os amigos na maior alegria”
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Veja bem, preste atenção, esta é a nossa canção! Grande Lupi!
E bem-feito pros racistas.
Mas volto ao raciocínio que está no meio deste texto. Escrevi sete livros ambientados no meu clube do coração, e três deles, muito em especial, vejo como trilogia da diversidade: “Coligay: Tricolor e de todas as cores” (homossexualidade), “Somos azuis, pretos e brancos” (negritude) e “A Fonte: a incrível história de Salim Nigri” (judaísmo).
“Somos azuis, pretos e brancos”, aliás, estava em exibição na exposição, porque nele eu reproduzo, com os devidos contextos e comentários, o texto em que Lupi, em sua coluna na Última Hora, contava por que era “gremista fanático”. E um dos motivos poderosos era justamente o fato de ser negro. Mas não entrarei em detalhes sobre isso agora.
O fato é que esse livro traz uma quantidade enorme de fatos inquestionáveis e pessoas reais mostrando a pluralidade e o respeito às diferenças no clube do Everaldo (estrela dourada na bandeira oficial), da Coligay, do Adão (jogador negro pioneiro no futebol de Porto Alegre, tendo atuado entre 1925 e 1935 no Grêmio), o Bombardão, o Salim, o próprio Lupi etc.
O livro tem um respeito e um reconhecimento enorme entre gremistas e também entre colorados. Traz informações irrefutáveis. E agora eu aproveito para falar de outro assunto que me mobiliza, sobre o qual um dia ainda pretendo me deter. Na típica desonestidade intelectual dos torcedores médios de futebol, cegos pela paixão, qualquer argumento vale.
Uma “acusação” que sofri desses talibãs foi a de que não sou historiador. E é sobre isso que ainda vou me deter. Ora, jornalismo (sou jornalista, com muito orgulho) e história são disciplinas que se alimentam. A essência do jornalismo é reportar (reportagem) fatos, que depois os historiadores usam como fontes para contar. Portanto, meu livro é uma reportagem.
Um desses caras certa vez me enfrentou em alguma dessas redes antissociais gritando ofensas violentas e dizendo “teu livro é uma compilação de fatos!” Tchê, eu ri e respondi para o sujeito, com toda a tranquilidade do mundo: “Sim, é exatamente isso que meu livro é.” O cara emudeceu, porque uma simples chamada à lucidez desarma esse tipo de figura nefasta.
Mas um dos contextos que trago no livro é justamente este: o gênio da música popular, negro, nasceu em 1913. Supostamente, o Grêmio só passou a aceitar negros em 1952 (sim, houve a inclusão de uma cláusula que explicitava esse caráter plural do clube, mas ela não removeu alguma que vetasse, até porque isso nunca existiu. O que havia era um costume – e os reacionários de sempre que o defendiam em todos lugares e tempos).
Ou seja, até quase os 40 anos, Lupicínio Rodrigues torceu fanaticamente por um clube que, de acordo com o imaginário pobre da lenda urbana de chuteiras, faria aquilo que o levou à delegacia porque um restaurante fazia. Ora, vejam só! Se quiserem ler o meu livro, evidentemente ficarei feliz. Basta, porém, pôr os neurônios a pensar fora do fanatismo.
Sim, houve um período, entre o final dos anos 1930 e os 1940, em que, por motivos que explico no livro (assim como explico o gremismo do Lupi por ser negro, em um caso ironicamente de veto do rival), o Inter se abriu mais e teve o fabuloso Rolo Compressor. Mas o contorcionismo histórico foi o de pinçar esse hiato para justificar frágeis dicotomias.
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Esclareço que muitas das histórias que apareceram na linda exposição eu conhecia desde guri, porque meu pai, sempre contrariado com o que chamava de “hipocrisia”, viveu cada lance dessa história e adorava me contar. Todos os livros que escrevi têm essa semente plantada por aquele pai judeu e gremista cuja família veio fugindo dos pogroms na Bessarábia.
Fui uma segunda vez à exposição com a minha mãe (filha de sobreviventes do Holocausto), e ela, ao ver meu livro ali exposto, a história que contei acima e tantas outras lindezas da mostra, comentou comigo: “Teu pai tinha que estar aqui vendo isso.” Faz 15 anos que o meu pai faleceu, e a ausência dele me pesa diariamente. Dedico a ele esta coluna.
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Shabat shalom!