Sim, sei que o título desta coluna é um surrado clichê. Mas convenhamos que, como diz Renato Russo, “quais são as palavras que nunca são ditas?” Além disso, ora, é evidente que alguma frase ou máxima se consolide como clichê justamente por ser verdadeira.
É o caso.
E o fato de o diabo morar nos detalhes ajuda, neste mundo cruel de desinformações combatidas com denodo pelo Jornalismo, as narrativas a omitirem fatos para se sustentarem.
Isso vai da política ao futebol (sobre futebol, que mexe com os instintos das pessoas, eu poderia dar uma aula em razão das pesquisas que fiz para os livros que escrevi).
Mas vamos lá a alguns exemplos elucidativos, atuais e históricos.
Apuração do escândalo sobre o material escolar: bela reportagem dos meus colegas e amigos de Zero Hora, os queridos Adriana Irion e Carlos Rollsing. Achei inquietante a reação da Prefeitura de Porto Alegre diante do absurdo: alegou-se que os jornalistas entraram sem pedir permissão e tiveram acesso indevido. Ora, que discursinho absurdo e facilmente desmontável, apesar de aparentemente convincente. É aquela história de o jornalista divulgar informações sigilosas. A obrigação de resguardar o sigilo não é do jornalista. Quando este tem acesso (e seu trabalho é buscar esse acesso), sua obrigação é informar. É comum esse tipo vazio de tergiversação para tirar o foco do principal, o dinheiro público gasto com material encalhado.
Marco territorial: a hipocrisia de tentar limitar os direitos territoriais indígenas à data da promulgação da Constituição Federal de 1988 (5 de outubro daquele ano) é um exemplo da malandragem egoísta e desumana muito frequente na História do Brasil, algo tão poderoso no discurso da “casa grande”, que até a escravidão foi adiada sob esse argumento calhorda. É aquela velha ladainha do “sacrifício solidário” (de quem já é sacrificado, como eram sobretudo os escravizados africanos) em nome do equilíbrio econômico nacional e da segurança jurídica. Poxa, se os indígenas foram historicamente alijados dos territórios que um dia ocuparam, o tal marco é uma forma muito hipócrita de dar suporte legal aos de sempre. Aliás, a própria abolição da escravatura só foi possível quando o sistema viu no trabalho (mal) assalariado uma forma mais palatável de exploração. Olha o diabo…
James Cameron na Argentina: é incrível a “armadilha” em que o grande diretor se enredou em uma malandragem dos mineradores argentinos. De acordo com a agência de notícias Associated Press (AP), Cameron disse sentir que “caiu em uma emboscada” durante uma visita à Argentina, na qual acredita que houve uma tentativa de usar sua imagem de ambientalista para dar um toque positivo às operações de mineração de lítio, apesar da oposição indígena. Cameron, o diretor de “Avatar” e “Titanic”, disse na semana passada que agora dedicará atenção e dinheiro de sua Avatar Alliance Foundation para apoiar comunidades indígenas que se opõem às operações de lítio na América do Sul. “Ironicamente, o resultado disso é que agora estou ciente do problema, e vamos ajudar por meio de minha fundação na questão dos direitos indígenas com relação à extração de lítio”, disse Cameron a um grupo de jornalistas reunidos em seu quarto de hotel no capital de Buenos Aires.
Cameron foi à Argentina para falar em uma conferência de sustentabilidade em Buenos Aires. “Achei que vinha aqui para fazer uma espécie de discurso motivacional sobre as causas ambientais”, disse ele. Como parte da visita, Cameron viajou para a província de Jujuy, no Norte, para visitar uma grande usina de energia solar com o governador Gerardo Morales e diz que nunca foi informado de que o lítio faria parte da discussão. Após a visita de Cameron, Morales escreveu uma mensagem nas redes sociais agradecendo a visita de Cameron, acrescentando que a província busca “transformar a matriz energética” por meio de projetos como a usina solar e a “extração de lítio”. Opa!
O diretor recebeu uma carta de 33 comunidades indígenas da área, escrita uns dias antes, pedindo-lhe para cancelar sua viagem ou se encontrar com eles para que pudessem explicar sua oposição de longa data aos projetos de mineração de lítio que dizem afetar seus direitos à terra e impactam negativamente o meio ambiente. “Sinto que caí em uma emboscada”, disse Cameron a jornalistas após se reunir com ambientalistas locais, dizendo que desconhecia a controvérsia envolvendo projetos de lítio. Embora Cameron diga que não conhece a “arquitetura exata” de como a “emboscada” aconteceu, ele sente que houve um esforço para usar sua imagem não apenas por causa de seu apoio a causas ambientais, mas também por causa da mensagem abrangente de “Avatar”.
“Avatar é o filme de maior bilheteria da história. É sobre o conflito entre uma indústria de extração e os direitos dos povos indígenas”, disse Cameron. “Se você pudesse gerar uma ótica onde eu parecesse estar aprovando a mineração de lítio, então você tem um mandato de algum tipo ou uma aprovação de algum tipo. Em sua carta a Cameron, representantes das comunidades indígenas fizeram referência direta a “Avatar” para pedir o apoio do diretor. “Jujuy é Pandora e está sob a ameaça da ganância da indústria de mineração, e nós somos os Na’vi”, diz a carta, referindo-se ao mundo fictício onde “Avatar” se passa e seus habitantes que lutam contra a colonização dos mineiros.
Antes de deixar a Argentina, Cameron se encontrou com Verónica Chávez, representante de uma das comunidades indígenas de Jujuy. A Argentina é o quarto maior produtor de lítio e faz parte do chamado “triângulo do lítio”, uma área que contém grande parte das reservas comprovadas do metal no mundo e também inclui os vizinhos Chile e Bolívia.
O antissemitismo do Roger Waters (foto da capa): se você chamá-lo de nazista e alegar que se fantasia de Hitler no palco, perderá o discurso. Esse não é o motivo, apesar do péssimo gosto. Mas deixo a explicação para o texto lapidar o Instituto Brasil Israel. Por que Roger Waters é antissemita?
“Toda vez que o cofundador do Pink Floyd Roger Waters sai em turnê, o debate sobre antissemitismo volta à tona. Dessa vez, foi a apresentação em Berlim que mobilizou a discussão: o artista usou trajes que remetem à SS, a polícia nazista, e projetou imagens de Anne Frank, vítima do nazismo, e Shireen Abu Akleh, a jornalista palestino-americana que morreu durante uma cobertura do conflito entre Israel e Palestina, equiparando os casos. A opção estética pela roupa que remete à SS, usada pelo artista há anos nas apresentações, e semelhante ao figurino do filme “The Wall”, de 1979, é justificada pelo próprio músico como uma crítica a ditadores e nazistas. O elemento é central porque foi isso principalmente que trouxe a discussão à tona, e é, ao mesmo tempo, o argumento para os defensores e fãs negarem qualquer antissemitismo de Waters – o que é inverossímil, pois o ponto de Roger Waters com os judeus vai muito além do figurino.
Em seus shows, Waters usa um balão em forma de porco com símbolos nazistas, estrelas de Davi e cifrões desenhados, o que perpetua estereótipos judaicos nocivos por meio de seu uso de imagens e simbolismo. Michel Gherman, assessor acadêmico do IBI, reforça este ponto: “Waters diz que, por trás do sistema capitalista há porcos. No porco, está marcada uma Estrela de David. Há uma gramática antissemita, uma perspectiva conspiracionista.” Waters é sabidamente um crítico de Israel, supostamente sob o argumento de que os israelenses ferem os direitos humanos dos palestinos. Mas, como questiona a jornalista Daniela Kresch, em novo artigo publicado no site do IBI, “a pergunta é: até que ponto uma honrosa busca por direitos humanos cruza a linha do preconceito e da obsessão?” O músico britânico já afirmou que “o sionismo é uma mancha feia e que precisa ser gentilmente removida por nós”.
A declaração foi feita em uma entrevista dada a um canal de TV afiliado ao grupo terrorista Hamas em junho de 2020. O artista diz que o tratamento israelense aos palestinos é igual ao da Alemanha nazista aos judeus. Escreve Daniela: “Não se pode comparar um genocídio sistemático de 6 milhões de pessoas inocentes (judeus, ciganos, homossexuais…) a um conflito territorial entre dois povos, terrível como seja – e do qual Israel não está isento de críticas”. Roger Waters é um apoiador do BDS, o movimento de boicotes, desinvestimentos e sanções contra Israel. Um dos pontos do grupo, com o qual o artista está alinhado, é a ideia de que a sociedade israelense como um todo compactua com uma ocupação contra o povo palestino.
“É um ponto antissemita porque parte de um princípio de que a sociedade civil israelense é produto de uma conspiração judaica, que se estabelece a partir da ideia de que a ocupação é fundamental para a sua existência e que as contradições internas são como um ‘teatro das sombras’, em que as pessoas fingem que há contradição”, analisa Gherman. Ele pontua ainda que discordar do governo em turno de Israel ou da política da ocupação em si não é, necessariamente, antissemita. Mas a posição adotada pelo BDS e por Roger Waters é diferente: “eles tentam transformar tudo que acontece em Israel em uma grande mentira – o que é, de fato, antissemitismo. É como se tudo que existe no país fosse artificial, o que acaba por desumanizar os judeus. É como se o que é judaico não pudesse ser verdadeiramente humano”. Roger Waters se apresentará em várias capitais brasileiras a partir de outubro, disseminando suas mensagens enviesadas. Um grupo de entidades judaicas, do qual o IBI faz parte, foi criado para monitorar o assunto.”
Israel x Palestina: aproveito a deixa para fazer duas ressalvas em relação ao texto do IBI. A primeira: não são 6 milhões de pessoas mortas no Holocausto (integrantes de minorias). São algo como 9 milhões. O número de 6 milhões é só de judeus, e sublinhar que isso é relevante. E outra questão é que a própria negação da legitimidade judaica à Terra de Israel se compõe de uma série de mentiras e omissões. A área conhecida como Palestina passou a ter esse nome durante o império romano e faz uma relação com o gentílico “filisteus”. Mas antes ali foi a Judeia e foi Israel. Fazer uma narrativa simplória e maniqueísta na qual os palestinos são vítimas e os israelenses são os malvados requer uma série de omissões.
Os judeus são povo originário de Israel, que antes foi Palestina e ainda antes foi Judeia e, muito antes… Eretz (terra, em hebraico) Israel. Tanto o IBI quanto o autor desta coluna (eu) defendemos a existência e o direito de Israel se defender para ficar em paz com um futuro Estado árabe (Palestina). Mas, no caso desse conflito, são dezenas de omissões, que vão das defesas chamadas de ataques, “genocídio” usado de forma invertida (quem quer fazer genocídio, o ato deliberado de eliminar um povo, são os terroristas do Hamas e de outros grupos, que preveem isso estatutariamente e só não fazem porque não conseguem) e “apartheid” idem (a vida dos negros na África do Sul não tem nada a ver com a dos árabes palestinos em conflito com Israel, muitos deles participando ativamente da vida israelense). Outra expressão usada de forma exasperantemente equivocada é “imperialismo”. Onde já se viu um povo originário ser imperialista do mesmo local de onde fora expulso? Enfim, nesse caso, o diabo mora em infinitos detalhes.
E o futebol? O futebol dá margem a discursos vazios, cheios de omissões parciais e imaginários dos aficionados em geral (não escrevo aqui só sobre o meu) sem perceber que muitas vezes o cara está sendo preconceituoso ao não olhar o outro com boa vontade e somente tratar de desqualificá-lo. A rivalidade, em especial a Grenal, faz isso até com as melhores e mais inteligentes almas. É tanta a identificação provocada por esse jogo apaixonante, que o sujeito simplesmente não enxerga o outro e repete sandices muitas vezes porque não quer ou não se esforça para enxergar (e essa é a pior ignorância). É possível torcer sem distorcer e reconhecer méritos, conquistas e belezas alheias. Certamente o mundo se tornará mais leve quando as pessoas se derem conta de que “flauta” ou “corneta” necessariamente deveria ser algo restrito à galhofa e ao folclore. Ah, também será melhor se o cara seguir as regras da vida em geral, que recomendam olhar nos olhos do outro para entendê-lo e até (por que não?) ver suas belezas. Duas características do torcedor de futebol: mitomania e preconceito, se retroalimentando. São tão fortes, que nem os fatos mais inequívocos e os personagens mais reais, quando colocados num livro-reportagem (sou autoridade no assunto), os removem. A pessoa que torce para o rival geralmente lê com má vontade, porque a simples menção ao nome do outro a incomoda profundamente. É uma coisa muito doentia. E que nome dar a isso que não seja “preconceito”?
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Shabat shalom
Foto da Capa: Show The Wall – Roger Waters / Reprodução do Youtube