Juro que eu estava com um texto fofo já praticamente escrito para esta sexta-feira (eu costumo pensar num assunto, esboçar sua forma na mente e descarregar com os dedos no teclado, num processo automático), antevendo as amenidades de um fim de semana ensolarado.
Mas não dá! A estupidez não dá trégua.
O texto que me vejo obrigado a escrever lembra uma efeméride: a daquela senhora que anda meio deprimida ao completar 80 anos neste 2023 com pouquíssimos motivos para festejar: a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), o conjunto de conquistas sociais reconhecido como algo enorme na História do Brasil, que deveria ser marco para avançarmos a partir dele. (instituída no Governo Vargas – foto da capa)
Pobre CLT! Pra mim, tem uma dor extra nessa tragédia humanitária que é sua desconstrução. Tenho duas formações, Jornalismo na UFRGS e Direito na PUC. Fiz as duas faculdades juntas. Possuo até número da OAB (26.640), apesar de nunca ter advogado. Mas o detalhe é que sempre fui apaixonado por Direito do Trabalho. Cheguei a fazer uma pós da AMATRA (Associação dos Magistrados Trabalhistas) sobre o assunto. Dito isso, compartilho a dor que me dá ver toda a atual coleção de horrores que temos testemunhado em aparições cada vez mais desavergonhadas. Além da gravíssima questão humanitária em si, lamento a forma como todo esse avanço civilizatório de quase um século está sendo ameaçado de desconstrução. São temas que estudei horas e horas de madrugadas no quartinho da minha juventude.
Não estamos falando de “conservadorismo”; estamos falando de “reacionarismo”. Alguns discursos e algumas práticas atuais não conservam com a prudência e a moderação típicas do conservador; voltam várias casinhas no tabuleiro evolutivo. Pra você que é de esquerda e não entende a diferença, Marx definia o reacionário como o sujeito que “gira para trás a roda da História.” E é exatamente diante disso que estamos. Um brutal reacionarismo!
Até a piada, que era feita numa caricaturização grosseira virou algo real e corrente.
Lembra? A gente ouvia discursos cínicos, desumanos, frios e de um monetarismo cego, em defesa de alguma legislação lesiva aos trabalhadores, e brincava quando o argumento era de que a economia não aguenta se as tais medidas “liberalizantes” (sic) não fossem adotadas: “Daqui a pouco, vai ter cara repetindo o que diziam os escravocratas antes de 1888. Que o país iria quebrar se os escravizados ganhassem liberdade.” A gente dizia isso e ria muito, porque, óbvio, somos sadios e puros, e acreditávamos que uma aberração dessas seria inimaginável.
Pois então… que tristeza, não? As tais vinícolas de Bento mostraram que não é bem assim: a piada de mau gosto pode ser real, e algumas autoridades municipais da Serra engrossaram o coro para chorar as pitangas de uma mais-valia que eles querem intocada ou até ampliada (pelo bem geral da nação, claro!). O absurdo entra pro rol de outros pesadelos em voga que antes eram inimagináveis, como a defesa da ditadura militar, a idolatria de torturadores, a negação de medidas sanitárias e outras maldades e/ou ignorâncias.
Tudo está no mesmo saco, no mesmo contexto e no mesmo voto.
Resumo do que esses caras andam dizendo, depurado de hipocrisias retóricas e indo direto ao ponto: “Não dá, porra! Diante das asquerosas conquistas sociais desses malditos comunistas, só nos resta, pelo bem da economia nacional e pra atrair investidores, escravizar as pessoas.”
Ainda não vi de forma tão direta. Ainda. Estamos perto disso.
Nota do Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves tentou explicar (e talvez justificar) o flagrante de 200 trabalhadores escravizados da seguinte forma um tanto quanto polida (você concluiu qual a essência): “Há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade.”
A exasperante frase acima foi minha motivação pra escrever este texto!
Chegaremos ao ponto de sugerir que “a parcela da população com plenas condições produtivas” trabalhe por um prato de espaguete passado, um pescoço de galinha frio e um copo de Grapete morna pra ter emprego? Se depender de alguns, estamos perto disso.
O texto que eu iria escrever pra edição desta sexta da SLER era sobre a delícia e a importância de adotar bichinhos. Fofo, né? Sério, mas fofo. Mas fica pra semana que vem. Os cãezinhos, gatinhos e até ratinhos certamente entenderão o meu critério jornalístico. Não rolou, turma. Precisamos nos proteger dos humanoides que querem fazer a História girar pra trás.
Shabat shalom!