Sempre que vejo e comento um filme, meu foco está no roteiro e nos simbolismos que o cinema consegue usar como nenhuma outra arte. Óbvio que também presto atenção nas atuações, na fotografia, no figurino e em outros itens técnicos relevantes.
Vou falar aqui de um filme enorme em todos esses aspectos: Transmitzvah, que recentemente entrou no catálogo da Netflix. Tudo é lindo! Mas o que me emocionou muito, e é muita emoção o que quero sentir, foram os símbolos e a história.
Começo dizendo que sou fã do diretor argentino Daniel Burman. Com suas temáticas judaicas, Burman conversa comigo muito mais do que Woody Allen, e já peço perdão pela heresia.
É que Daniel Burman faz eu entender por que o período em que morei na Argentina foi tão determinante na minha vida, um quarto de século atrás (eu era correspondente da Folha de S. Paulo).
Em Buenos Aires, eu me encontro, me religo.
Pela música, pela cultura, pelo estilo, pelo futebol, pelo senso de humor, pela cidade em si, que para mim sempre foi uma mistura de grandiosidade e aconchego que remete à infância (a Porto Alegre que idealizava quando criança é exatamente a Buenos Aires da vida real, não sei se me explico), e, muito, pelo judaísmo intenso e pelo cinema que frequentemente o usa como tema.
E aí, nos itens “judaísmo” e “cinema”, entra a arte inigualável do Daniel Burman, autor de filmes inesquecíveis e, ultimamente, também de algumas séries maravilhosas nos streamings. Além de muito talentoso, o tipo filma de alma pra alma.
Em Transmisvah, Burman faz um filme plasticamente lindo, com dança, música (em iídiche, o dialeto judaico do exílio, que junta hebraico com alemão) e um evidente tom almodovariano, de ode à diversidade, muita cor e uma necessária transgressão.
O judaísmo, aliás, é um prato cheio pra isso. Um rabino, no meio do filme, diz que a lei precisa existir pra que a transgressão a ela também exista. É como o contraste entre o claro e o escuro.
O garotinho Ruben, às vésperas do bar-mitzvá, revela para a família que se vê como uma menina e, sendo assim, pede que seja celebrado o bat-mitzvá. Assim termina a primeira parte.
O começo do filme se passa na Espanha (depois é quase todo em Buenos Aires), onde Ruben (que significa “veja, um filho!”, em hebraico) já é Mumy e, como mulher transgênero (interpretada pela linda atriz transgênero espanhola Penélope Guerrero), tornou-se cantora de músicas em iídiche.
Veja: uma mulher transgênero judia nascida em Buenos Aires faz sucesso na Espanha da inquisição cantando em iídiche. Mais que isso! Levando o iídiche para o mundo, com estrondoso sucesso.
O sobrenome da família é Singman, e Ruben, além de virar Mummy, transforma Singman em Singer, fazendo uma mistura do nome familiar com o da máquina de costura. Nada é por acaso. E essa costura é feita com o irmão de Mummy, Eduardo, interpretado pelo enorme ator argentino Juan Minujin. A leitura pode ir muito além da já forte reconexão de Mummy com o irmão seis anos mais velho. Também é lembrado no filme, pelo próprio Eduardo, que religião significa “religar”. E essa reconexão pode perfeitamente ser com outros irmãos, mais ampla.
Durante todo o filme, fica evidente que a transgressão e a pluralidade são da essência do judaísmo, cujas regras pétreas se resumem a acreditar no Deus incorpóreo e não fazer ao outro o que não queres para ti, sendo o resto interpretação.
Um prato cheio! Pro cinema, pra arte, para ciência e pra vida.
E aí vêm os outros simbolismos que Daniel Burman usa e falam direto à alma dos outros judeus (como ou até mais que nos filmes de Woody Allen, algumas mensagens são muito judaicas).
O porteiro do prédio mostra uma sabedoria surpreendente, numa linda conversa com Eduardo: “O homem está esperando o Messias. E sabes quando virá o Messias? Quando não necessitarmos. O Messias somos nós. Abulafia disse: eu sou Ele, e Ele é eu. É interior. Não virá alguém de fora para nos salvar.”
Muito profundo e verdadeiro isso.
E então o porteiro do prédio, diante da estranheza de Eduardo ouvindo arrulhos enquanto conversam, conta que salva pombas nas ruas. No caso dessa que Eduardo ouve, ela é cega. Eduardo pergunta: ela vai se curar? O porteiro responde que não, mas que se manterá viva e acolhida por ele. Veja bem. E vale o lembrete: pombas simbolizam a paz e a comunicação.
Em meio a um momento de antissemitismo crescente, a paz, o acolhimento dos cegos e a religação entre irmãos são elementos atuais e eternos. Pra aumentar o tom simbólico, o namorado de Mummy é um lacaniano que interpreta as palavras e atribui a falha da voz de sua companheira à necessidade de regressão para o menininho que um dia ela foi e que não teve a celebração do tão importante rito de passagem para a idade adulta.
Em meio a tudo isso, o pai de Mummy (interpretado por Alejandro Awada) morre, e uma tocante religação entre ambos também nos fornece símbolos poderosos, transgeracionais.
A mãe de Mummy (interpretada por Alejandra Flechner) dá uma sinalização do que é o “exílio”. A algumas quadras de onde estão, fica o Once (nome como é mais conhecido Balvanera, bairro judaico portenho, assim como o vizinho Villa Crespo). E assim ela diz: ali fica o exílio. De certa forma, Israel é contemplada nessa frase, porque ela se refere à terra onde se reúnem os judeus.
Mummy e Eduardo vão ao Once buscar pilhas para o walkie-talkie presenteado pela avó quando eram crianças. É a religação, sempre presente no filme. Numa loja do Once, o atendente, de quipá e ao lado do namorado com o mesmo nome (além do mesmo sexo), consegue a pilha necessária, já não fácil de ser achada no comércio corrente. Abundam símbolos. É linda a cena de Mummy e Eduardo na rua brincando com o walkie-talkie, como crianças que tentam se localizar e se encontrar.
Uma cena muito em especial tocou este colunista. O namorado de Mummy (interpretado por Gustavo Bassani, de Iossi) desenrolando um tecido e tirando suas rugas no Once é todo um símbolo de alisar asperezas. Como muitos judeus, meu pai trabalhou com atacado de tecidos no centro de Porto Alegre.
Outra imagem importante é a das duas tábuas de um parquê que desvendam o destino de Mummy. Duas tábuas?!
Mais direto impossível.
O bat de Mummy enfim ocorrerá em Toledo, na Espanha, de onde ela veio. Toledo, “de onde nos expulsaram há 500 anos”, como comenta Eduardo, novamente enfatizando a condição judaica de rejeições, perseguições e diásporas cruéis.
Continua Eduardo: não há opostos, não há bar e bat, há “transmutação”, “o primeiro passo para encontrar-se é perder-se no exílio”, irmãos devem estar juntos no doce e no amargo.
Em Toledo, a participação especial do ator israelense Itzik Cohen (de Fauda). E seguem as frases e símbolos. Tanto faz se é o discípulo ou o sábio de oito séculos atrás. Não há impedimento para o bat de uma menina trans. Dez mulheres de branco no minyam. Cerimônia às 7h30 (sete é o número perfeito e oito é o infinito; logo, está no meio). O tefelim de uma menina na quinta-feira. A cerimônia numa linda paisagem em frente a um castelo medieval justamente na terra onde a inquisição tentou exterminar os judeus, com tudo cantado em hebraico. “Até o melhor e o pior cantor cantam igual. Como? Como podem.” Ouvir sons de sinos é uma questão subjetiva, que depende do ouvinte, disse o pai de Mummy. Esse filme é igual.
Veja e ouça.
E que venham outras obras de Daniel Burman.
Shabat shalom!
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Foto da Capa: Reprodução