Um dos elementos mais fascinantes do estudo e do uso de uma língua é como ela expressa a fratura entre idealização, realidade e representação por meio de estruturas e vocábulos “interditos” ou considerados “inapropriados”. O que torna uma palavra “de baixo calão”? Que tipo de dinâmica social é expressa quando há um consenso de que determinados termos violam alguma noção coletiva tácita de “pudor”? Pode-se entender bastante sobre um determinado tempo e lugar tanto naquilo que uma linguagem expressa quanto naquilo que ela taxa como impróprio e rotula como “obscenidade”. Trocando em miúdos: tem coisa pra caralho que a gente pode aprender ao analisar a relação de um idioma com seus palavrões.
Para começo de conversa, a aversão ao palavrão é típica de uma certa ideia “sanitizada” de discurso, não por acaso ele é uma das vítimas preferenciais da maioria das cruzadas moralistas – também por isso, sua presença, muitas vezes provocativa e combativa, vai ganhando novos significados à medida que passa o tempo e se transformam os contextos. O cinema brasileiro feito numa época de ditadura militar e embates contra a censura era repleto de nudez e palavrões entre outra coisa porque os adeptos do “Deus, Pátria, Família” que apoiavam o regime tinham na linguagem vulgar ou carregada um dos maiores cavalos de batalha para justificarem censura em nome “da moral e dos bons costumes”. Com o passar do tempo e a mudança de cenário, boa parte desses trechos totalmente gratuitos hoje são recortados e compartilhados em contas de YouTube e de Twitter como uma maravilha do nonsense. Para dar um único exemplo, deem uma olhada no divertidíssimo perfil Cinema Brasileiro Out of Context no Twitter (uma das poucas coisas bacanas que sobraram por lá depois da ascensão de fachos com selinho azul patrocinada pelo Kiko do Foguete).
Referências
De modo geral, uma rápida olhada já no universo de referências desse vocabulário “interditado” e considerado obsceno e vulgar dá pistas importantes do tipo de pensamento por trás dessa avaliação. São palavras que orbitam o universo do corpo, sua fisicalidade “animal” por excelência, suas interações com outros corpos ou suas disposições de fluídos e dejetos. Em português, os palavrões ainda hoje capazes de provocar algum choque normalmente se referem a partes do corpo relacionadas a sexo e excreção (ou seja, fazem referência àquilo que o pensamento geral chama de “partes íntimas” por considerá-las ou desinteressantes ou inapropriadas para “exibição pública”).
Há aí uma dualidade entre o público e privado que é inevitavelmente sintomática de certas estruturas sociais do Brasil conservador, e não deixa de ser significativo que boa parte dessas palavras caiam na categoria dos chamados “nomes feios”. Embora essa dualidade não seja exclusiva do Brasil nem de seus palavrões, parece indicial de um certo olhar – basta ver que “maldito” ou “desgraçado”, com seu fundo eminentemente religioso, hoje são xingamentos de pouco peso, diferentemente do “damned” de sentido semelhante que ainda parece bem chocante entre as palavras do gênero no inglês estadunidense (aliás, o aspecto religioso se faz presente mesmo por lá até na definição desse tipo de linguagem, “profanities”).
Há aí também indícios de um aspecto eminentemente brasileiro: nosso eterno espírito de quinta série parece relevar muito menos a ocorrência de duplos sentidos do que em um Portugal em que um anúncio de refrigerante pode prometer ao consumidor a sensação de “estar cheio de pica” e há um evento turístico real chamado Feira da Foda, entre outros casos de palavras cujo significado é exatamente esse que vocês estão pensando mas que sobrevivem no discursos público em contextos específicos sem nenhum efeito colateral que não o virar meme no Brasil.
Rodeios
Para evitar os “nomes feios”, determinadas estratégias são usadas, como o cerca-lourenço dos sinônimos e eufemismos. Do “puxa vida” ao “vaga-lume”, há uma série de vocábulos e expressões cuja conformação moderna é resultado de alguma estratégia passada de camuflagem da “feiúra” original. Há também os sinônimos para genitais que vão buscar sua inspiração no mundo animal – e nesse sentido, a abundância de referências ao universo aviário pode acabar gerando um circuito último de confusão, uma vez que em nossa bela língua portuguesa “pinto” é sinônimo de “rola”, “rola” é sinônimo de “pomba” e “pomba” é sinônimo de “periquita”, e nesse momento num único voo nós viajamos de um extremo ao outro dos mistérios da biologia. E isso que nem falamos do peru.
A questão é que mesmo a bagaceirice muda com o tempo, e coisas que antes eram interditas hoje estão por toda parte. Não confundam esta frase com reclamação moralista, é uma mera constatação de um tempo em que muitos que xingam outros de “babacas” não estão conectados ao sentido físico genital da expressão em sua origem – sobre isso, aliás, eis aí um curioso parentesco entre a indústria do fumo e a do palavrão, haja vista não só a origem de “babaca” ser “tabaca” como também o sentido mais vulgar da expressão corriqueira “levar fumo”. E eu nem mencionei aquela graciosa bolsinha arredondada para guardar fumo que todos vocês também conhecem por outro nome (e que eu até podia usar aqui livremente, dado que é empregada por Machado de Assis no Dom Casmurro, mas não estou disposto a testar os algoritmos num texto que já está rastejando orgulhosamente para além dos limites do inapropriado).
Muitos rodeios feitos em volta dessas palavras inapropriadas advêm de uma necessidade de “ajustar” a expressão: ainda se tenta dizer alguma coisa, mas usando-se para isso alusões indiretas (“ela”, “ele”, “a perseguida”, “o meu”) ou por sinônimos que escandalizam menos (do proverbial e hoje praticamente inocente “tico” à experiência hoje impensável de uma propaganda oficial que resolveu dar a um pênis falante o nome próprio de “Bráulio”, para infelicidade de todos os tocaios membros dessa infeliz confraria. Há também as variações de denominação eufemística que vão pegar emprestadas as imagéticas de outros tipos de objetos e campos, do “portal” à “espada”, do “mastro” à “caverna”, do “buraco negro” à “Via Láctea”. Por excelência, a relação de um idioma com os palavrões é do disfarce, no mínimo, ou da ausência, no máximo, ao menos nas infindáveis instâncias do discurso amplo, o que inclui publicações impressas ou online de grande circulação, sessões oficiais, solenidades de posse ou mesmo as primeiras e incertas frases trocadas com um estranho no primeiro e pouco confortável diálogo.
Intrusão
A lógica do palavrão, portanto, quando explícita, é a de trazer uma palavra para um ambiente em que ela não deveria estar ou não é considerada bem-vinda. Talvez por isso ao longo de décadas a sociedade moralista brasileira jogou no colo dos “transgressores indesejáveis” como artistas, vagabundos e revolucionários a obsessão pelo palavrão, muitas vezes revestida de uma crítica condescendente de inspiração freudiana de que o apego a esse tipo de “imundícies” era sinal de um certo desenvolvimento intelectual encruado.
O que acho interessante ao refletir sobre esse assunto hoje é como esse tipo de argumento contrário ao que seria considerado em outros tempos “ofensivo” morreu uma morte lenta e debilitante quando vemos boa parte do discurso da recém alçada extrema direita nacional passar pelo “direito de ofender” e pelo elogio aberto à quebra de filtros e instâncias mediadoras não apenas nos argumentos, mas também na ação política.
A insistência no argumento de que a liberdade de circulação de um discurso irresponsável é um valor em si mesmo é muitas vezes calcada no fim hipotético da “tirania dos especialistas”: não é preciso respeitar a autoridade do conhecimento alheio calcado em evidências, basta ter a manha de defender um discurso contrário com aparência de solidez ou com o tempero do humor “iconoclasta”. Não à toa, essa mentalidade andou junto na última década com a ascensão do “político antipolítica”, que diz renegar as práticas viciadas das estruturas eleitoreiras do passado quando a única real instância da vida política abolida de fato por essas figurinhas de mentalidade (e às vezes de idade) juvenil é o jogo de cintura e o debate sinuoso.
Determinado espectro político hoje no Brasil faz o elogio do sujeito “sem papas na língua”, ou seja, sem circunlóquios, que “vai lá e diz mesmo”, mesmo que tudo o que ele “diga mesmo” seja uma gigantesca bobagem que não seria dita por alguém com um mínimo de critério. O próprio fato de que os livros do ultimamente muito calado (seja lá em que umbral esteja) Olavo de Carvalho ganharam reedições cujas lombadas, nas estantes, estão xingando seu próprio público de “imbecil” ou “idiota” é um sintoma claro. O mesmo espectro político também consagrou a mentalidade recente dos “coachs fodas”, que com um discurso “direto e reto” vendem fórmulas vazias de “autoaprimoramento” em livros com algum palavrão na capa e um ponto de exclamação para tentar obter alguma validação desse espírito do tempo.
E, claro, a cereja em cima do bolo de excrementos desse estado de coisas foi a eleição de um político energúmeno cujo “apelo de massas” escorava-se no mesmo discurso de “espontaneidade radical sem filtro”. E aí me dou conta de o quanto se esvazia a força expletiva e transgressora do palavrão mencionada antes neste texto quando a porra do Presidente da República disse, textualmente, frases como: “Acabou, porra!”, “Puta que o pariu, não fode, porra!” ou “foda-se”. Acha que essa linguagem – que o ex-presidente hoje em risco não cabe num site de família como este? Concordo muito. Mas considerando o quanto um sujeito como esse e sua visão de mundo ainda conseguem mobilizar apoiadores no cenário político (mesmo entre os políticos profissionais hoje adeptos da “trollagem de resultados” – leia aqui), não é culpa minha nem de um eventual palavrão deliberado a degradação do debate, e sim de quem assumiu o risco e até mesmo o empenho de nos enfiar nessa merda…
Foto da Capa: Pixabay