Na iminência das festas de fim de ano e com a linda homenagem feita ao David Coimbra na rótula ao lado de Zero Hora, me ponho a pensar em uma de tantas histórias legais que vivemos juntos.
Mas, sobre esta que vou contar agora, por compreensível desconcerto meu, ele nunca soube de um curioso detalhe.
Pra contextualizar, volto aos anos 1990, quando éramos iniciantes no Jornalismo. Eu estava em Zero Hora desde exatamente 1990, e o David chegou do Correio do Povo em 1992. Ambos integrávamos a editoria de política de ZH.
O Ricardo Stefanelli, então editor do Campo e Lavoura, olhou pra mim, entre os goles de whisky na Cia das Pizzas que tomávamos pra esquecer as chatices do trabalho, e vaticinou: pelo que conheço de vocês, nascerá aí uma baita amizade. E assim foi. Naqueles anos de transição da máquina manual pra redação digital, eu e o David, antes desconhecidos, passamos a ser inseparáveis. Depois, mais no fim da vida dele, estávamos até distantes. Mas tivemos aquele tipo de amizade que permite uma eterna intimidade nas brincadeiras e nas confidências.
Eu ficava editando páginas ao lado de queridos amigos, como o Luiz Augusto Kern (um irmão!), a Lúcia Brito e a Cris Gutkoski. Bah, como aquele trabalho era chato, apesar da turma legal, mas como aprendi com ele! O Diogo Olivier, outro querido amigo (meu e muito do David), era excelente repórter nesse time.
O David era tão bom colega, tão generoso, que uma vez eu estava de folga em Capão da Canoa e descobri que políticos importantes se reuniriam por lá, com pauta quente. Liguei pra redação e passei a informação, pra que alguém fosse atrás.
– Léo, deixa de ser trouxa. Faz um textinho rápido, me manda e assina. É um baita furo, cara. É importante pra ti.
Óbvio que fiz o que ele disse.
Lembro quando saí de Zero Hora em 1994 numa situação muito injusta (uns 14 anos depois, voltei a ZH pra ficar mais 10 anos, ou seja, assunto superado). Eu estava voando no jornal e já tinham me avisado que cobriria a Copa do Mundo de 1998, na França. Saí por motivos já prescritos, fiquei dois anos escrevendo pra Placar, fui contratado pela Folha de S. Paulo (onde fiquei 11 anos e tive a megaoportunidade de ser correspondente em Bueno Aires), ocupei o cargo de diretor de Jornalismo da TVE e voltei pra ZH com toda essa bagagem. Enfim, deu tudo certo.
Mas onde o David entra nisso? Quando a Folha me enviou pra França, eu o avisei da novidade, e ele saiu aos gritos pela redação de ZH dizendo: “O Léo vai pra Copa! Foi feita justiça!”
Que saudade eu tenho de ti, querido David!
Mas seriam muitas, lindas e longas histórias.
Quero contar o que ocorreu naquele fim de ano, acho que em 1993. Por alguma circunstância, eu estava sozinho na casa dos meus pais e assim passaria a virada de ano. Era triste. O Natal, ok, eu tirava de letra. Por ser judeu, nunca tive presentes, pinheiros e presépios. Passei a infância ignorando o que era uma ceia. Mas encarar a virada sozinho era foda. Eu estava só.
Foi então que tocou o porteiro eletrônico. Era o David e a Jane (namorada dele na juventude e sempre uma grande amiga), que foram lá me fazer companhia. Nos braços do meu querido amigo, uma panela cheia de lentilhas pra nos assegurar fortuna (ainda estou esperando). No tempero… pedaços de porco.
A lentilha tinha sido feita especialmente pelo meu amigão.
Lindo aquilo!
O que você faria se fosse judeu e nunca na vida tivesse comido porco, porque na sua casa era algo totalmente vetado? Recusaria a linda delicadeza, numa desfeita muito desagradável? Ou simplesmente ignoraria o porco e até repetiria o prato?
É evidente, né? Ignorei, comi e me empanturrei.
Estava delicioso. Talvez tenha sido por isso que acabei na Folha, ganhei o suculento salário de correspondente internacional e consegui trilhar uma carreira da qual me orgulho tanto.
Não pelo porco! Pela lentilha!
Puxa, depois disso, voltei pra ZH, mas não tínhamos exatamente a mesma turma de amigos, com algumas exceções, e nos distanciamos sempre mantendo o carinho mútuo. O David, depois disso, prefaciou meu livro “Coligay, Tricolor e de todas as cores”, fez a orelha do “Somos azuis, pretos e brancos” e um dia me chamou num canto, na redação, pra me contar aos prantos que lhe haviam diagnosticado um câncer devastador, que dependia de tratamentos experimentais nos Estados Unidos, que estava num sorteio pra ser contemplado com a nova terapia em Boston e que, caso não o fosse, morreria em semanas.
Choramos juntos.
O David ainda teve uma sobrevida de anos, e eu me despedi dele no velório, lembrando o baita cara que sempre foi e o amigo que sempre será. Me passou tudo pela cabeça naquela despedida. Muitas bobagens inconfessáveis que fizemos juntos aos risos, muitas confidências, muitas traquinagens típicas de guris, o sofrimento com o nosso Tricolor, o mesmo amor pela vida.
Sei lá. Pensei em como a vida é injusta.
E me lembrei daquela virada de ano em 1993, quando comi o porco da lentilha, disse “que delícia, amigão querido!”, mas jamais contei pra ele que era a primeira vez.
E se ele ficasse constrangido?
Sempre que como um lombinho no Barranco com aquela salada de batata, cebola e feijão branco encharcada pelo óleo de oliva, penso no David. “Bah, cara, eu nem te contei naquela noite…”
Mas certamente ele sabe.
Por quê?
Porque, como naquele dia em que ele vibrou pela minha ida pra França, nós nunca deixamos de nos acompanhar.
…
Shabat shalom!
Todos os texto de Léo Gerchmann estão AQUI.
Foto da Capa: Divulgação