A turma ainda não entendeu, e percebo isso em razão de algumas cobranças que surgem de quando em vez. É o seguinte: sim, eu sei que sou um cara que a vida inteira esteve alinhado às pautas progressistas e fazendo coro com quem pensa como eu. Só que chegamos a uma encruzilhada na qual antigos amigos acham que é progressismo o que vejo como endossamento do obscurantismo. Ou seja, falamos línguas muito diferentes.
O assunto, claro, é Israel e Palestina. Ou, mais precisamente, o governo israelense de extrema-direita e o grupo terrorista Hamas, que administra Gaza. Claro, eu sei que é terrível o que tem ocorrido em Gaza e sinto verdadeira repulsa pelo massacre inadmissível. Mas é impossível pra mim estar alinhado a pessoas que usam muito mal as palavras.
Quando o cara diz genericamente que são “os sionistas” e protesta contra eles (nós, na verdade) fazendo comparações absurdas sem lembrar que essa violência (da qual sou contra e que quero ver interrompida imediatamente) é uma reação, não há a menor chance de eu estar ao seu lado, porque, mesmo deplorando algo deplorável, ele é antissemita.
Sionismo é tão somente o justíssimo movimento de autodeterminação do povo judeu no seu lar ancestral, e muitos sionistas, como eu, defendem que ao lado haja o lar árabe chamado Palestina, na forma de dois Estados. E o 7/10 (de 2023) foi um violentíssimo, monstruoso e injustificável pogrom que desencadeou tudo o que desgraçadamente estamos vendo.
OK?
Feita a introdução, que repete outras manifestações anteriores neste espaço (renderam até um livro), quero falar de dois grandes homens mortos recentemente. Um deles é o Pepe Mujica, e o outro é o papa Francisco. O Mujica, eu entrevistei quando era o presidente uruguaio, em 2013. Sobre Francisco, falei com seu grande amigo Abraham Skorka, o rabino que coordena o seminário rabínico latino-americano, argentino como Francisco.
Na entrevista com Mujica, a parte gravada durou coisa de uma hora, mas a conversa teve outros bons minutos de bastidores. Pepe me autografou uma camiseta do Grêmio e, talvez sabendo que sou judeu (não me lembro se contei), deitou a falar sobre Israel como o exemplo de país que é o lar de uma das minorias mais perseguidas da História e virou uma civilização exemplar, tirando água da aridez e se tornando polo tecnológico.
Já Skorka me contou mais ou menos o que também relatou o querido amigo Ariel Palacios no seu livro sobre a América Latina. “Em 2015, ao diretor-executivo do Congresso Judaico Latino-americano, Claudio Epelman, também argentino, Francisco contou a seguinte piada: ‘Em uma cidade existia um padre antissemita que, toda hora que podia atacar os judeus, partia para cima deles. Um dia, em um sermão, como sempre, deslanchou ataques contra os judeus de forma feroz. E, em uma pausa, atrás dele, Jesus desce da cruz, olha para a Virgem no altar e diz: ‘Mãe, vamos embora, pois aqui não gostam da gente…’”
Essa piada vai para os antissemitas que ficam repetindo a inacreditável e mentirosa narrativa segundo a qual Jesus não seria judeu, mas “palestino”. Ou seja, que o filho de Maria e José, que fez de um jantar de Pessach a última ceia, que pregava com a Torá sob o braço e que foi inscrito para a eternidade com a sigla INRI (rei dos judeus), não era judeu.
A piada é do papa Francisco, tá?
E sempre é bom lembrar antes que alguém se esqueça disto como quem se esquece da monstruosidade do 7/10: o islamismo é uma religião que existe desde os anos 600 d.C. Entenderam? Ou a deficiência cognitiva provocada pela cegueira derivada do preconceito é tão grande que o cara acaba embaralhando até a ordem cronológica (ficam com a palavra “crono”, mas abrem mão da “lógica”).
…
Nem Pepe nem Francisco jamais diriam o absurdo bordão implicitamente genocida “Palestina do rio ao mar”. Podem ter condenado o grau de violência que tomou a reação israelense, mas compreendiam muito bem o seu contexto e, evidentemente, sabiam que é justo Israel lutar pela sua existência e o que ela representa para o povo judeu. Isso não é mero detalhe semântico.
Enfim.
…
Agora deixo vocês com alguns dos trechos das entrevistas que fiz com Pepe e Skorka.
Pepe Mujica:
“Creio que (os valores que eu tinha como guerrilheiro são) a motivação da preocupação social, de tratar de contribuir para conseguir uma sociedade com melhores relações humanas, mais justa, mais equitativa, onde o ‘meu’ e o ‘teu’ não separem tanto as pessoas. Essa maravilhosa aventura que é a vida, que, por ser tão cotidiana, as pessoas não se dão conta. Só valorizam o que têm. Estar vivo é quase um milagre. Procurar que as pessoas estejam o mais felizes possível. Essa é uma causa nobre. Naquela época, pertencíamos a um mundo que tinha seus arsenais de ideias, e entramos em outro mundo. Mas, na realidade, a causa que nos impulsiona é a mesma. Os caminhos que podemos tentar são diferentes, mais complexos.
“As mudanças culturais são enormemente difíceis. Existem classes sociais cuja cultura é muito difícil de mudar, custa muito esforço e conhecimento. Necessitam-se recursos difíceis de conseguir. Acredito que o mundo pode ir construindo uma sociedade mais justa, mais nobre. Na medida em que exista mais massificação do conhecimento e da cultura no nível das grandes massas, um país que tem muita gente e que está escravizado na sociedade de consumo vai ter a construção de uma sociedade melhor. Então, o que parecia ser impossível vai demorar um pouco mais.”
“Há menos pobres, de pobreza material. Há muitos pobres na cultura e nos sentimentos. Creio que fizemos algo e outros terão de seguir. Sou favorável à existência dos partidos políticos, das organizações políticas, porque nossas vidas são curtas, e essas causas necessitam muito tempo. Custa muito fazer uma colheita, e o período da vida humana é relativamente breve. E as causas não são coletivas, são intergeracionais. Não se vai conseguir um milagre de um dia para o outro. Fizemos nossa parte, plantamos, e tratemos que outras pessoas sigam levantando a bandeira e lutando por isso. Antes, pensávamos que haveria algum dia triunfal, em que arrancaríamos a revolução. Hoje, pensamos que a marcha é muito mais lenta e de longo prazo, que compreende nossa vida e a de muitas outras gerações e que temos que ir contribuindo para essa luta sucessivamente. Talvez os chineses, quando construíram a Grande Muralha, pensaram que era missão impossível, de 300, 400 anos.
“A vida é uma construção permanente, e isso dá sentido à vida. A vida se pode viver porque se nasceu, como um vegetal ou qualquer animal. Pode-se dar um conteúdo a esse milagre da vida. Então, nós nos sentimos felizes de participar dessa luta.”
“Nós, hoje, temos uma cultura capitalista. E quem tem essa cultura não são os grandes donos do capital, que é óbvio que devem tê-la. Quem tem essa cultura é aquela grande massa que consome, gasta e se move todos os dias. Tem uma cultura capitalista em que cada indivíduo quer melhorar somente o que é seu. A visão socializante é mais gregária: em vez de se dizer ‘eu’, se diz ‘nós’. É muito mais social. Uma cultura de caráter social é aquela em que pensamos como espécie ou no interesse geral. Nós pensamos primeiro nos nossos próprios interesses. Isso é próprio de uma cultura capitalista. As relações de produção podem mudar, mas se a cultura não muda, a mudança das relações de produção não vai ter efeito. Quando se tentou construir o socialismo e se passaram todos os bens importantes às mãos do Estado, as pessoas que foram trabalhar no Estado vieram com uma cultura também capitalista e isso acabou na burocracia. Um homem primitivo, um caçador de uma tribo, tinha um sentido social. Esse caçador de tribo, quando caçava um animal, sabia que esse animal não era dele, era da tribo e o levava para servir de comida à tribo. A sua cultura é gregária e social. O ser humano viveu 90% do tempo que está na Terra com uma cultura tribal. A história, a tecnologia, o comércio nos transformaram nisso que somos, com mentalidade e cultura capitalistas. Temos uma contradição entre o que somos e nossa herança histórica e o que acontece hoje. Superar isso vai custar muito à humanidade, e não sei se superamos isso. É uma espécie de bem perdido.”
…
Sobre a minha entrevista com Skorka, houve uma situação engraçada. Eu morei em Buenos Aires, na esquina da Avenida Santa Fé com a rua Araoz, em Palermo. Para chegar ao seminário, em Belgrano, o cara precisa pegar a mesma Linha D do metrô, descer na Cabildo (que é a continuação da Santa Fé) e caminhar algumas poucas quadras. Eu estava com saudade da minha rotina lá (a saudade é permanente) e resolvi pegar o mesmo subte.
Só não olhei a previsão do tempo.
Cheguei empapado pra falar com o Skorka, que me deu uma toalha e falou.
Uma lufada de diálogo e respeito às diferenças. Essa é a mensagem que o argentino Jorge Mario Bergoglio passa para um mundo que vê terroristas usando dos meios mais cruéis em nome de suposta religiosidade. Bergoglio se tornou Papa e assumiu o nome de Francisco, com todo o significado de generosidade nele contido.
Adequado à evolução dos costumes e à necessidade de enfrentar a incompreensão, ele se notabilizou por abordar tabus e estender a mão ao diferente. Uma obra que traduz isso é o livro Sobre o Céu e a Terra (Paralela, 192 páginas), escrito a quatro mãos por Francisco e pelo grande amigo e parceiro de reflexões Abraham Skorka. Do seminário de Skorka, líderes judeus são formados para predicar em cidades como Porto Alegre.
Com voz suave, Skorla abordou o significado da amizade ecumênica que mantinha com um dos líderes mundiais mais respeitados. O rabino não é só coautor de livro com Francisco. Também foi escolhido por Bergoglio para prefaciar sua biografia. A amizade se materializava em diálogos frequentes, em que ambos se mostravam preocupados com atentados como o de Paris no dia 13. Há, ainda, as brincadeiras sobre futebol (Francisco torce para o San Lorenzo, e Skorka, para o River Plate) e situações curiosas. Um dia depois de Bergoglio ter sido escolhido Papa, o celular de Skorka tocou.
“Alô, rabino Abraham! Estou no Vaticano e não me deixam voltar!”, riu o então já Papa, do alto da afinidade espiritual e intelectual de duas décadas.
Francisco dizia que “dentro do cristão, há um judeu”.
Trechos da entrevista:
“A relação que se criou entre nós marcou profundamente nossas vidas. O livro que escrevemos foi traduzido para todos os idiomas europeus, coreano, chinês, hebraico. A mensagem que elaboramos juntos se expandiu como sonhamos. Não imaginávamos que se transformaria em realidade. É uma mensagem de paz, de entendimento, o paradigma de diálogo que quisemos apresentar com esse livro. Deus nos bendisse. Que sirvamos como fonte de inspiração.”
“Compartilhamos a concepção de que, nas ações dos homens, em especial quando são para elevar a espiritualidade e melhorar a condição humana, ali se encontra Deus. É um conceito que se manifesta na literatura rabínica e nos escritos cristãos. A relação homem-Deus, quando o homem busca o bom, o justo, o misericordioso. É o que posso dizer da nossa relação.”
“Descobrimos um ao outro, vimos que podemos achar, nos nossos caminhos de vida, sendas que sejam comuns. Foi desde a década de 1990, quando nos conhecemos na catedral, e eu era convidado para o Te Deum (celebração religiosa), em 25 de maio e 9 de julho (datas máximas da independência argentina), para fazer o culto israelita no dia da pátria. Ali, a partir de meados da década de 1990, ainda antes de Bergoglio ser o arcebispo de Buenos Aires, ele me conhecia pelos textos que eu escrevia na imprensa, sempre falando sobre a necessidade de um diálogo claro, mais profundo. O diálogo não é só sentar e conversar. A partir desses artigos, ele me conheceu. Nossa aproximação ocorreu pelas piadas de futebol, porque aqui na Argentina, como no Brasil, somos aficionados.”
“O judaísmo é monoteísta e prega o respeito ao outro. O cristianismo segue essa linha. Mas há diferenças. O relato que aparece nos Evangelhos é claro: perguntaram a Jesus qual é a síntese da Torá (livro sagrado do judaísmo), e ele disse “amará a teu próximo como a ti mesmo”. Isso aparece no capítulo 19 do Levítico. O outro preceito é o monoteísmo. O eterno é uno, amarás ao eterno teu Deus com todo o teu coração, com todo o teu ser. Está no Deuteronômio. É uma definição que deram os sábios. Não fazer ao outro o que não queres que façam a ti é a formulação de Hillel, o sábio judeu, como o resumo de toda a Torá quando uma pessoa não judia que queria ser judia pediu que ele fizesse uma definição rapidamente, parado com uma perna só. São formas diferentes de dizer, mais negativa ou positiva. Rabi Akiva (sábio da Judeia) dizia que o resumo da Torá é: amarás a teu próximo como a ti mesmo. Grande parte da visão de Jesus é concomitante com diferentes escolas rabínicas do seu tempo.”
“A matriz, a primeira matriz, o judaísmo do século 1, é a base. Eu e Bergoglio mantemos um diálogo tão especial porque a história de judeus e cristãos é cheia de desencontros muito dolorosos, mas é como se fossem desencontros entre dois irmãos. Houve desencontros, mas sabíamos que viemos de um mesmo ponto de partida. Um foi para um lado, e o outro foi para outro, paralelo. Repito: para outro lado paralelo. Tal como irmãos, há nisso uma relação de amor e ódio. Há vários casos assim, como Caim e Abel, Esaú e Jacó, José com os irmãos. em nossa Jerusalém, a Jerusalém judaica do século 1. Essa relação, depois do Holocausto, demandou uma resposta, especialmente por parte do mundo europeu, porque foi lá que se deu o Holocausto.”
“Alguma coisa deve falhar em relação a esses terroristas, em nível de afeto. Algo deve ocorrer com eles em sua estrutura afetiva. Algo foi bloqueado por alguém. Não sou expert em psicologia, nem sei se há alguém que possa explicar o que ocorre. Mas a chave é o afeto. O amor é a palavra-chave da Bíblia judaica e é a base da Bíblia cristã. Amar ao eterno teu Deus, amar ao estrangeiro, amar ao teu próximo como a ti mesmo. Certa parte do desenvolvimento afetivo dessas pessoas tem algum problema.”
“Sim, conversamos com frequência. Falamos muitas vezes sobre a violência no mundo. Quando fomos a Israel, eu ajudei a preparar o encontro entre o Papa e Shimon Peres. A ideia era transmitir uma mensagem de paz. Com o embaixador palestino na Santa Sé, trabalhamos para servir como ponto de comunicação entre Mahmoud Abbas, Shimon Peres e o Papa. A reunião ocorreu nos jardins do Vaticano. Depois, fomos, um judeu e um islâmico, na delegação do Vaticano em viagem de peregrinação à Terra Santa.”
“Ele (Francisco) demonstra grande preocupação (com a violência no mundo). Não gosto de usar a palavra angústia, porque a angústia paralisa, e ele é um homem de ação. Mas sim, preocupação. É uma pessoa transparente e criou muitos canais de diálogo. Sempre nos falamos sobre algum projeto. Estamos sempre conversando e projetando pequenas coisas.”
…
Enfim. Que o exemplo desses grandes homens frutifique.
E shabat shalom!
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Foto da Capa: Francisco e Sorka / Reprodução