“Esta traição transcende o ideológico – é visceralmente pessoal. Cada manifestação ‘progressista’ que celebra ataques contra judeus, cada silêncio cúmplice diante de antissemitismo explícito, representa uma pequena morte das relações e confiança construídas ao longo de décadas de luta comum.”
Mauro Nadvorny
Às vésperas do “We remember”, a lembrança do Holocausto celebrada em todo 27 de janeiro, resenho um livro essencial, do querido amigo Mauro Juarez Nadvorny (Mauro Nadav), militante de esquerda reconhecidamente comprometido com pautas humanistas. Trata-se de “O Socialismo dos tolos – o antissemitismo e a corrosão dos valores de esquerda”. Aliás, sobre o “We remember”, o 27 de janeiro foi escolhido porque nesse dia, há exatos 80 anos, houve a libertação, pelos soldados soviéticos, do campo de extermínio de Auschwitz.
Temos aí uma efeméride redonda.
E a época para o lançamento do livro é adequada. Precisamos reafirmar que o nazismo, de extrema direita, assassinou industrialmente, com método e de forma deliberada, 6 milhões de judeus, pelo simples fato de serem judeus. Foi uma busca intencional de erradicação étnica, e não a reação a um pogrom devastador (e aí sim genocida) desencadeante de uma guerra em que a defesa se impunha e as mortes são tristemente inevitáveis. E é dali, da Shoá (“Holocausto”), que surgiu a palavra “genocídio”. Logo, comparações com essa monstruosidade são uma forma não tão sofisticada de antissemitismo, uma afronta, uma violência, um disparate.
Mas vamos ao livro que o querido Mauro dedicou justamente aos “verdadeiros socialistas que lutam por um mundo melhor, sem preconceitos e com respeito aos Direitos Humanos… de todos os humanos”. Obrigado, amigo. Me senti contemplado.
Devo, antes, referir-me ao prefácio do também amigo Carlos Josias Menna de Oliveira, em que ele diz: “Não apenas leiam. Devorem esta obra.”
O livro é apresentado como “uma análise rigorosa e baseada em dados sobre como preconceitos antigos se adaptam a discursos modernos. Investigando a seletividade moral da esquerda em questões envolvendo judeus e Israel, o livro expõe padrões perturbadores de preconceitos mascarados como crítica política”. E consegue exatamente isso.
No primeiro capítulo, “das origens à contemporaneidade”, é feito um amplo apanhado histórico. Começa pelas “transformações profundas” por que passava a Alemanha no final do século 19, com a industrialização acelerada, a urbanização e mudanças sociais dramáticas. Isso criava um “terreno fértil para movimentos políticos que buscavam explicações simplistas para problemas complexos”. E foi nesse contexto que August Bebel, um dos fundadores do Partido Social-Democrata Alemão (SPD), observou “a infiltração de ideias antissemitas no movimento socialista nascente”. Algo “perturbador”. E foi daí que veio, em 1893, a frase usada no título do livro: “Der Antisemitismus ist der Sozialismus der dummen Kerle” (“O antissemitismo é o socialismo dos tolos”).
Ao falar sobre a ignorância simplificadora do antissemitismo, Bebel dizia que ele “funcionava como uma forma de desvio ideológico pernicioso”.
“Ao personificar problemas sistêmicos do capitalismo na figura do judeu, esta simplificação permitia que as verdadeiras estruturas de poder econômico permanecessem intocadas e invisíveis. Em vez de examinar as complexas relações de classe e os mecanismos de exploração capitalista, os ‘socialistas tolos’ contentavam-se em substituir análise rigorosa por preconceitos étnicos arraigados.” (…) “A solidariedade internacional da classe trabalhadora, fundamental para qualquer projeto de transformação social, era minada por divisões étnicas e religiosas artificiais. (…)”.
Comenta Mauro com precisão: “Um movimento que se proclamava defensor da igualdade e da emancipação universal não podia, sem grave contradição, abraçar ou tolerar preconceitos contra qualquer grupo étnico ou religioso. A presença do antissemitismo sinalizava uma falha não apenas moral, mas também intelectual no coração do projeto socialista.” Bingo!
O livro sustenta historicamente que a vinculação da perversidade aos judeus se mantém. “De 1948 a 1953, a campanha contra o ‘cosmopolitismo sem raízes’ atingiu seu ápice com o ‘Complô dos Médicos’ em 1953. Neste evento, 37 médicos, predominantemente judeus, foram presos sob falsas acusações de conspirarem para assassinar líderes soviéticos.” E segue, amparado em farta literatura e números oficiais: “A repressão contra judeus na União Soviética, especialmente nos anos pós-Segunda Guerra Mundial, foi marcada por uma série de medidas que visavam a marginalização e a supressão da cultura e identidade judaicas.”
“O ‘antissionismo’ soviético pós-1967 forneceu um modelo para como preconceitos antijudaicos podiam ser reformulados em termos aparentemente progressistas”, conta Mauro, enfatizando o ano de 1967 (quando houve a Guerra dos Seis Dias), possivelmente porque, antes disso, a URSS havia sido o primeiro país a reconhecer a independência de Israel, e o fornecimento de armas para a guerra de 1948 veio da socialista Tchecoslováquia.
E segue o livro mostrando como, depois do colapso soviético, o ranço antissemita continuou se metamorfoseando. O único momento de liberação nacional demonizado, seletivamente, é o sionismo. E essa mentalidade, muito alimentada pela mídia supostamente progressista, penetrou no mundo acadêmico, com um permanente duplo padrão em que até mesmo pautas feministas são reviradas ao avesso, como o livro enfatiza e veremos adiante.
“Veículos que normalmente demonstram sensibilidade aguçada para nuances em questões sociais adotam abordagens surpreendentemente reducionistas quando se trata de temas relacionados a judeus ou Israel. A complexidade histórica é sacrificada em favor de narrativas maniqueístas que, mesmo quando bem-intencionadas, frequentemente reproduzem estereótipos antigos”, diz Mauro. “Enquanto outras formas de discriminação são analisadas com sofisticação crescente, o antissemitismo frequentemente permanece invisível ou é ativamente negado. Judeus são simultaneamente categorizados como ‘privilegiados’ quando vítimas de preconceito, mas como minoria étnica quando isso serve para criticar seu direito à autodeterminação. Esta inconsistência analítica revela como preconceitos podem distorcer até mesmo ferramentas teóricas destinadas a combater a opressão.”
Uma frase certeira: “O antissemitismo contemporâneo vem revestido de linguagem acadêmica e justificado através de teorias críticas modernas.” E a conclusão é perturbadora: “Esta sofisticação do preconceito apresenta desafios particulares para o movimento progressista. Não se trata apenas de identificar e combater manifestações explícitas de antissemitismo, mas de reconhecer como preconceitos podem se manifestar através de análises aparentemente progressistas. A seletividade na aplicação de princípios de justiça, a relativização de certas formas de violência e a hierarquização de diferentes formas de opressão revelam como o antissemitismo pode comprometer a própria integridade do pensamento progressista.”
Sensacional!
Mauro identifica três características singulares do preconceito contra os judeus que explicam sua perenidade: capacidade singular de sobrevivência, seletividade analítica marcante e adaptabilidade ideológica impressionante.
“A seletividade analítica do antissemitismo de esquerda se manifesta através de padrões consistentes de tratamento diferenciado (…). Na política internacional, esta seletividade se torna particularmente evidente na maneira como diferentes conflitos e crises humanitárias são analisados e respondidos. A guerra civil no Sudão, que produziu dezenas de milhares de mortos e milhões de refugiados, recebe uma fração da atenção e mobilização dedicada ao conflito israelense-palestino. O genocídio Rohingya em Myanmar, apesar de sua escala devastadora, nunca gerou campanhas de boicote comparáveis ao movimento BDS (de boicote a Israel)”.
Mauro mostra em números cruzados a disparidade de matanças e crises humanitárias que recebem espaço muito menor da mídia progressista.
E aborda o próprio caso israelense, que é acachapante: “A seletividade se manifesta também na maneira como diferentes formas de violência são interpretadas e respondidas. O ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023 oferece um exemplo particularmente revelador. Organizações progressistas que normalmente respondem rapidamente a atos de violência contra civis demonstraram hesitação notável em condenar estes ataques. Mais significativo ainda, quando evidências de violência sexual sistemática emergiram, movimentos feministas que tradicionalmente defendem acreditar em todas as vítimas demonstraram um ceticismo sem precedentes em relação aos testemunhos de mulheres israelenses. (…) No ambiente acadêmico, esta seletividade analítica se manifesta na aplicação inconsistente de teorias críticas. Conceitos como colonialismo e privilégio são aplicados de maneira particularmente rígida quando se trata de Israel, enquanto situações comparáveis em outros contextos recebem tratamento mais nuançado. (…) Esta inconsistência analítica revela como preconceitos podem influenciar até mesmo metodologias supostamente objetivas.”
O livro aborda também a “adaptabilidade ideológica do antissemitismo de esquerda”, definindo-a como “perniciosa”. Diz: “Ao longo do último século, este preconceito demonstrou uma capacidade extraordinária de se reformular em termos contemporâneos, apropriando-se da linguagem e dos conceitos progressistas de cada época para expressar preconceitos antigos sob nova roupagem. (…) Na era contemporânea, esta adaptabilidade se manifesta através da apropriação seletiva de conceitos progressistas modernos. Teorias interseccionais, desenvolvidas para analisar formas sobrepostas de opressão, são frequentemente distorcidas para excluir ou minimizar experiências judaicas de discriminação.”
Conceitos como “colonialismo” e “branquitude” são tratados de forma tortuosa, como se os judeus fossem originários de alguma potência estrangeira e não tivessem diferentes tons de pele. O termo “sionista” é usado no lugar de “judeu” e dá vazão a discursos antissemitas. “A adaptabilidade ideológica se manifesta de formas particularmente sutis. Organizações progressistas que desenvolveram linguagem sofisticada para discutir opressão e discriminação frequentemente adaptam este vocabulário para expressar ou justificar preconceitos antijudaicos”, diz Mauro, amparando-se em números como o de que o termo “apartheid” tem 92% das menções relacionadas a Israel, ignorando-se regimes comprovadamente segregacionistas, conforme o Progressive Media Analysis Center (2024). Mais, diz o livro: “Teorias anticoloniais são adaptadas especificamente para questionar a legitimidade judaica de formas que não são aplicadas a outros povos ou movimentos de libertação nacional.” Há “adaptação particular da linguagem progressista que transforma preconceitos tradicionais em análise política aparentemente sofisticada”.
A formação de um discurso comum e corrente torna o preconceito institucionalizado. Por isso, “a superação do antissemitismo de esquerda exigirá mais que reconhecimento superficial do problema – demandará um reexame fundamental de como preconceitos podem se camuflar sob retórica progressista e uma disposição de aplicar consistentemente os princípios que o movimento alega defender”.
Outros números acachapantes: “O Global News Analysis Institute (2024) revela que 65% das reportagens sobre violência contra israelenses incluem ‘contextualizações’ que efetivamente relativizam as atrocidades, enquanto apenas 12% das reportagens sobre violência contra outros civis recebem tratamento similar. Mais significativo ainda, 73% dos ataques terroristas contra Israel são descritos como ‘resistência’, enquanto apenas 8% dos ataques terroristas em outros contextos recebem essa caracterização.” É mole?
O livro toca num ponto de altíssima relevância: se um judeu reclama da discriminação estrutural na negação de Israel e na simplificação do conflito israelo-palestino numa lógica distorcida de “opressor versus oprimido”, ignorando as diversas tentativas de partilha para dois Estados, a reação é vista como debate ideológico em vez daquilo que realmente é: racismo antissemita.
Mauro faz um apanhado histórico do antissemitismo na esquerda e enfatiza o duplo padrão demonstrado na resistência em repudiar as atrocidades do 7/10 ao mesmo tempo em que, rapidamente, o foco virava para a crítica à ação israelense, apagando sua origem.
“O Holocausto tornou expressões explícitas de antissemitismo politicamente inaceitáveis na maior parte da esquerda ocidental, mas o preconceito encontrou novas formas de expressão”, diz o livro, que em seguida vai ao âmago de certa seletividade e permissividade: “Organizações que mantêm políticas rigorosas sobre linguagem ofensiva e microagressões frequentemente permitem expressões abertamente antissemitas quando mascaradas como crítica política. Em conferências e eventos progressistas realizados em 2023-2024, slogans que efetivamente pedem a eliminação do único estado judeu do mundo foram tolerados em 82% dos casos, enquanto expressões similares direcionadas a qualquer outro grupo étnico ou nacional resultaram em expulsão imediata.”
Algumas decorrências: “O Centro de Análise de Movimentos Sociais (2024) documenta como ativistas judeus progressistas são sistematicamente marginalizados em espaços que ajudaram a construir. Em 2023-2024, 78% dos ativistas judeus relataram ter que escolher entre sua identidade judaica e sua participação em movimentos progressistas. (…) O cancelamento de palestrantes judeus em eventos progressistas foi registrado em 156 ocasiões no mesmo período. (…) A discriminação institucional também se manifesta na remoção de judeus de posições de liderança, com 89 casos verificados. (…) Por fim, a expulsão de judeus de grupos de trabalho sobre justiça racial e social foi documentada em 167 incidentes.”
Se essa discriminação ocorre internamente nesses grupos, podemos estimá-la fora deles.
O capítulo 5 do livro trata do “silêncio do Me Too”. Aparentemente, um tema específico foi um dos que mais chocaram depois do 7/10 pela “seletividade” e pelo “silêncio. “O surgimento do Me Too como movimento global em 2017 estabeleceu novos padrões de resposta rápida e solidariedade internacional. No entanto, os eventos de 7 de outubro marcaram uma ruptura sem precedentes neste padrão histórico. Pela primeira vez, evidências extensivas de violência sexual sistemática foram recebidas com silêncio institucional prolongado. O contraste é particularmente revelador: enquanto casos anteriores geravam resposta em 48-72 horas, os eventos de outubro levaram 45 dias para gerar a primeira manifestação oficial significativa.”
E veio a decorrência compreensível: “O silêncio do Me Too gerou uma crise profunda nas comunidades feministas judaicas. Segundo o Instituto de Estudos de Gênero e Identidade, 87% das ativistas judaicas reportaram sentimentos de traição e alienação, com 92% questionando sua participação futura em organizações feministas mainstream.”
Por vezes sustentado em lamentável relativismo, o duplo padrão de movimentos feministas foi devastador. Mostrou “como preconceitos podem corromper até mesmo movimentos dedicados à justiça e à igualdade”, num claro caso de antissemitismo estrutural.
E o livro segue dando exemplos de duplos padrões e seletividades socioeconômicas e ambientais, em especial quando o tema são os Acordos de Abraão (“O Instituto de Estudos Avançados de Princeton -2023- documentou em seu estudo ‘Ideologia versus Realidade’ que 89% das análises progressistas sobre os Acordos de Abraão ignoraram completamente os benefícios econômicos e sociais mensuráveis para populações vulneráveis”).
“O Instituto de Estudos Políticos Avançados (2023) documentou em seu relatório anual que 78% das análises progressistas ignoram sistematicamente dados empíricos sobre impactos sociais em favor de narrativas ideológicas pré-estabelecidas. O Centro de Análise de Discurso Político (2024) identificou que em 82% das publicações progressistas há seleção exclusiva de dados que confirmam posições existentes, mesmo quando confrontados com evidências contrárias substanciais”, relata Mauro. Em resumo, falamos de dogmatismo.
E o livro entra em outro ponto problemático: a “seletividade na atenção internacional a diferentes conflitos e crises humanitárias”, que “emerge como um dos indicadores mais reveladores do antissemitismo de esquerda contemporâneo”.
“Esta seletividade, longe de refletir critérios objetivos como número de vítimas ou urgência humanitária, revela padrões sistemáticos de preconceito”, diz o livro. “Uma análise comparativa detalhada dos conflitos entre 2023-2024 expõe disparidades alarmantes. No Iêmen, onde mais de 380 mil mortes foram documentadas e 20,7 milhões de pessoas enfrentam risco humanitário agudo, a mídia progressista dedica apenas cinco manchetes semanais ao conflito. Em contraste, a situação Israel-Palestina, com um número significativamente menor de vítimas, recebe em média 35 manchetes por semana e gera 850 protestos globais com participação de 1,8 milhão de pessoas. O caso da Etiópia ilustra ainda mais dramaticamente esta disparidade. Com 550 mil mortes documentadas e 5,2 milhões de pessoas em risco humanitário, o conflito recebe apenas três manchetes semanais e gera 25 protestos globais.” Os exemplos de descritérios e desproporcionalidades continuam: “Na Nigéria, onde a perseguição sistemática resultou em 55 mil mortes documentadas e colocou 80 milhões de pessoas em risco humanitário, (…) o conflito gera apenas duas manchetes semanais, menos de 10 protestos globais”. No Sudão, com 15 mil mortes documentadas, 4,5 milhões de deslocados e 25 milhões de pessoas em risco humanitário, o conflito recebe apenas oito manchetes semanais e nenhuma resolução universitária. Conclusão: “Quando um movimento dedica desproporcionalmente mais recursos e atenção a um conflito com menos vítimas, ignorando sistematicamente crises que produzem muito mais sofrimento humano, torna-se impossível não questionar as motivações subjacentes a estas escolhas.”
E mais: “A transformação da narrativa progressista sobre o conflito Israel-Hamas representa um dos casos mais notáveis de inversão seletiva na história recente do ativismo internacional. Em nenhum outro conflito contemporâneo, observou-se uma mudança tão rápida e radical na caracterização das vítimas e perpetradores.”
No 7/10, “o Hamas sequestrou aproximadamente 250 pessoas – incluindo 65 crianças e adolescentes, 86 mulheres, 42 idosos acima de 70 anos e pessoas com necessidades médicas críticas. Além dos sequestros de pessoas vivas, o Hamas também tomou como reféns os corpos de israelenses assassinados – um ato que constitui crime de guerra segundo o Direito Internacional Humanitário”. Mauro mostra três fases da resposta progressista. Na primeira (7-14 de outubro), predominou “uma hesitação notável em reconhecer a gravidade dos eventos”. Na segunda (15 de outubro-15 de novembro), houve “um esforço sistemático de ‘contextualização’ que efetivamente começou a deslocar o foco das vítimas para justificativas históricas” (o termo “resistência” passou a ser usado “com frequência crescente”, enquanto o sofrimento dos reféns era diminuído). Na terceira (iniciada em meados de novembro), estabeleceu-se a inversão narrativa, com foco na reação israelense e apagamento dos reféns.
Também provocam estranhamento as “falsas equivalências entre civis sequestrados e combatentes detidos, enquanto se minimiza a gravidade do uso de reféns (…).”
O livro segue examinando relatórios de duplo padrão, em especial o da Anistia Internacional, em 2024, que tende sistematicamente a minimizar a violência contra os israelenses, ignorando a natureza brutal e as violências sexuais e demais atrocidades vastamente documentadas. A linguagem usa termos que suavizam o terror e descontextualizam a defesa israelense.
São identificadas contradições comprometedoras no uso do termo “genocídio” (política deliberada de extermínio, sendo a Shoá o motivo da existência dessa expressão, criada por Raphael Lemkin em 1944), tão particularmente doloroso para o povo judeu: “A documentação das ações israelenses revela práticas incompatíveis com uma intenção genocida. O estabelecimento de zonas de evacuação, a implementação de sistemas de alerta prévio e a manutenção de corredores humanitários demonstram um comportamento estatal diametralmente oposto ao de um regime que busca o extermínio de uma população. (…) A manipulação do conceito legal de ‘intenção’ no relatório é particularmente preocupante. Declarações isoladas de políticos individuais são indevidamente elevadas à condição de política estatal, ignorando a natureza democrática de Israel.”
E complementa com algo essencial: “A questão dos escudos humanos (pelo Hamas em Gaza), fundamental para qualquer análise séria do conflito, é sistematicamente subestimada.”
O livro lembra algo essencial ao falar de genocídio: “O Estatuto do Hamas, estabelecido em 1988 e reafirmado consistentemente por suas lideranças, representa um exemplo contemporâneo raro de intenção genocida explicitamente declarada. O documento não apenas rejeita a coexistência com Israel, mas declara abertamente seu objetivo de eliminar judeus globalmente.” Em 7/10/2023, isso foi posto em prática.
Mais: “O mesmo movimento que acusa Israel de genocídio frequentemente endossa ou tolera o slogan ‘Do Rio ao Mar, Palestina Será Livre’ – uma frase que implica a eliminação do único Estado judeu do mundo e sua população judaica.” E fica a conclusão: “O próprio propósito original do conceito – prevenir e punir tentativas sistemáticas de eliminação de grupos humanos – é subvertido quando o termo é usado seletivamente para condenar ações defensivas enquanto se minimizam ameaças existenciais reais.”
O livro segue em seu caminho lúcido, mostrando como a distorção legal e semântica do termo “genocídio” o banaliza e até já provocou demissão na diplomacia mundial (de alguém que se contrapunha a essa leviandade, apontando suas consequências).
E entra em outro assunto doloroso: o auto-ódio judeu, já analisado por Theodor Lessing em seu trabalho seminal Der Jüdische Selbsthass (1930), onde examina como a internalização de preconceitos antissemitas pode levar à autorrejeição e ao desejo de dissociação da própria identidade judaica. Essa negação se vincula diretamente à necessidade de assimilação e, como mostra o livro, “paradoxalmente, esses indivíduos frequentemente ressaltam sua ‘judaicidade’ precisamente nos momentos em que atacam outros judeus, tornando-se muitas vezes mais virulentos em seu antissemitismo que os antissemitas tradicionais”.
“Os judeus que nutrem o auto-ódio frequentemente lideram ataques contra a comunidade judaica, Israel e valores judaicos, usando sua origem como escudo e legitimação”, diz Mauro.
E, claro, essas pessoas são usadas para os devidos fins antissemitas. Servem de álibi.
Mauro é certeiro ao analisar a figura de judeus que “repentinamente reivindicam autoridade moral baseada em uma identidade judaica até então irrelevante em suas vidas. Esta reivindicação seletiva de identidade serve primariamente como credencial para atacar Israel e a comunidade judaica mais ampla”. Os antissemitas da esquerda os acolhem e lhes dão voz. Ou seja, os instrumentalizam. E isso leva a uma enorme contradição: “Os mesmos movimentos que corretamente rejeitariam a tokenização de outras minorias praticam ativamente esta forma de discriminação quando se trata de judeus.”
Na sequência, Mauro detalha o Naturei Karta, um grupo ultraortodoxo que, na sanha antissionista por questões religiosas (quer Israel só quando supostamente o Messias chegar), se alinha a grupos que pregam a eliminação dos judeus. É mais que contraditório. É insano. E, evidentemente, o antissemitismo de “esquerda” os ama e os usa como trunfo. Os caras são menos de 1% dos judeus, mas os antissemitas adoram usá-los como exemplo.
“As imagens de judeus ultraortodoxos em manifestações anti-Israel tornaram-se um recurso propagandístico valioso. Fotos de membros do Naturei Karta são compartilhadas obsessivamente em redes sociais e publicações progressistas, servindo como ‘prova’ de que a oposição a Israel não é antissemita”, relata o ótimo livro do Maurinho (assim conhecido, no diminutivo, pela doçura e pela generosidade que sempre teve com os amigos).
E vale a analogia: “A amplificação seletiva de vozes marginais para legitimar preconceitos majoritários segue padrões históricos bem documentados. Assim como racistas frequentemente citam ‘ter um amigo negro’ como prova de não-racismo, a esquerda contemporânea usa judeus antissionistas como escudo contra acusações de antissemitismo.”
É uma tradição o antissemita também recorrer ao tenho “amigo judeu” como álibi. Nesse caso, conforme percebeu Mauro, essa mesma lógica é usada coletivamente. O “bom judeu” seria aquele que nega a sua identidade para ser aceito entre seus pares ideológicos.
Ao falar no uso aberrante e oportunista do Naturei Karta, Mauro deriva para outra contradição inaceitável de setores da esquerda: “Aliar-se a regimes fundamentalmente antiprogressistas”. É o caso do regime teocrático iraniano, que “executa homossexuais, oprime mulheres sistematicamente e persegue minorias religiosas”. E, claro, é antissemita.
Mas… o Irã é antiocidental. E isso serve de “álibi moral”. Há um silêncio constrangedor, sob a desculpa do “relativismo”, em relação a execuções de mulheres e homossexuais. “A seletividade moral na resposta progressista ao regime iraniano torna-se ainda mais evidente quando comparada com reações a outras situações de opressão. O Centro de Análise de Movimentos Sociais (2024) documentou como o mesmo movimento que corretamente condena discriminação de gênero em sociedades ocidentais encontra formas de ‘contextualizar’ práticas muito mais severas no Irã”, relata o livro.
O livro esmiúça o preconceito, a militância seletiva e a contradição, concluindo haver uma “falha moral sistêmica” que “pode corromper valores supostamente universais”. Demole a absurda confusão entre “imperialismo” e sionismo, uma vez que os judeus são um povo indígena, que viveu uma diáspora violentíssima, e o sionismo é o movimento de libertação desse povo em seu único lar no mundo (imperialismo seria a exploração de uma metrópole).
A “seletividade manifesta-se em padrões consistentes: ataques terroristas contra israelenses são ‘contextualizados’, enquanto são universalmente condenados em outros casos; o direito à autodeterminação é defendido para todos os povos, exceto judeus; e exigências extraordinárias são feitas apenas a Israel”. E por aí vai o essencial livro do Mauro.
Percebe-se, a cada linha, a dor do querido Mauro. Claramente, ele escreveu sofrendo. E eu li sem respiro, sentindo a mesma tristeza, como quem se olha no espelho e chora junto.
Shabat shalom.
Serviço:
“O Socialismo dos Tolos” - Páginas: 224
Venda: livro físico na loja UICLAP a R$ 77,37 ou o e-book na Amazon a R$ 94,35
Todos os textos de Léo Gerchmann estão AQUI.
Foto da Capa: Divulgação