A diversidade e o respeito às diferenças devem estar sempre no nosso radar. As palavras ferem e constroem narrativas, que podem ser explícitas ou sorrateiras. Palavras são armas, e seu uso, bom ou mau, depende sempre de quem as empunhe. Do meu lugar de fala judaico, costumo bater forte no combate ao antissemitismo, que pode surgir nas suas diversas modalidades, ambidestro e travestido ao sabor das circunstâncias.
O antissemitismo da direita aparece quando o sujeito faz o manjado apito para cachorro destinado ao uivo da plateia neonazista; o antissemitismo da esquerda aparece na demonização de Israel e na distorção do sionismo.
Dois fatos recentes me chamaram a atenção e me levaram a escrever sobre isso aqui nesse espaço (o assunto viria em algum momento):
1) o presidente de Israel, Isaac Herzog, abriu uma campanha para repor no imaginário das pessoas o verdadeiro significado da palavra “sionismo”, que é movimento de autodeterminação judaica no seu único e legítimo lar ancestral;
2) a emissora de TV pública alemã Deutsche Welle estabeleceu explicitamente no seu código de conduta que deve ser observado apoio ao povo judeu e o direito de existência do Estado de Israel (o funcionário que romper esse compromisso pode ser demitido). Aplausos efusivos a Herzog e à Deutsche Welle!
A Alemanha sabe a que se refere. Quando morei na Argentina, na condição de correspondente do jornal Folha de S. Paulo em Buenos Aires, me pautei muito pelo tema dos direitos humanos. Criei bons vínculos com familiares de vítimas da ditadura que pôs o país no obscurantismo entre 1976 e 1983, e também ouvi dezenas de depoimentos de sobreviventes do Holocausto. De uns ouvi que os fascistas de hoje são aprendizes do nazismo de antanho, de outros ouvi algo revelador: que o renascimento de Israel, em 1948, foi a melhor notícia de suas vidas, porque agora tinham para onde correr e quem os defendesse. Sim. Isso é Israel.
Ainda poderemos conversar sobre judeus como o brasileiro Vlado Herzog e o argentino Daniel Rus, cuja mãe, Sara, sobrevivente da Shoá, passou por dois infernos e ainda milita como Madre de la Plaza de Mayo.
Mas mantenhamos o foco.
Haja maldade e leviandade para afrontar essas pessoas, sendo negacionista e antissemita (inclua aí o antissionista, versão moderna do ódio ao judeu diante da “inadmissível” independência de Israel). Nós, descendentes, temos a obrigação de manter os traços étnicos judaicos (cultura, origem comum e valores, o que inclui a religião, nem que seja pela eloquência ética dos seus ritos), assumir quem somos e defender muito a legitimidade essencial e sagradíssima de Israel, o nosso lar ancestral e única referência territorial. Durante 1,9 mil anos de diáspora, nossos antepassados mantiveram heroicamente tudo isso, mesmo diante das maiores provações e crueldades – a Shoá é a gota d’água entre tantas perseguições, o ápice dos pogroms. Lembrá-los (hoje e diariamente) é dever moral, algo que se impõe.
Permito-me reproduzir breve artigo que escrevi em 11 de abril de 2015, no jornal Zero Hora, porque aquele texto, como dá a entender o seu título, foi uma espécie de grito, numa linguagem muito direta, porque o espaço era curto. Leia o que escrevi em no artigo “Basta de Antissemitismo”:
“Eu estava no jantar de Pessach, na sinagoga (Centro Israelita), quando soube: um antropólogo escrevera que o ‘batuque’ é perseguido por sacrificar animais, enquanto a ‘poderosa comunidade judaica’ (sic) não sofre tal recriminação. Pessach é a Páscoa judaica. Fala em travessia e vida. Seu repasto é o mesmo compartilhado por Jesus e seus apóstolos na Santa Ceia. Primeiro: não se matam animais nas sinagogas, salvo algum ritual ortodoxo tido hoje como bizarro (dentro do judaísmo). Segundo: referir-se a judeus como poderosos remete a uma forma rasteira de antissemitismo (…). É difícil para um judeu abordar assunto tão doído, mas o artigo do antropólogo e outros episódios recentes, como seminário numa universidade sobre o ‘apartheid de Israel’, levaram-me a um basta (…). Falar de antissemitismo me é especialmente ardido, como tocar numa ferida de cicatrização precária. Então, vamos por tópicos:
1) Dá para definir brevemente o judaísmo, como num tuíte? O sábio Hillel digitaria: “Não faças ao outro o que não queres que façam a ti”. No mais, há “70 formas” de interpretar a Torá, e deve-se ter a fé monoteísta, no Deus incorpóreo.
2) Judeus são “ricos” e “poderosos”? Perseguidos por manter sua cultura em detrimento da fé dominante, a esse povo de intensa coesão étnica era proibido, na Idade Média, trabalhar a terra. Restavam-lhe atividades como a médica e a bancária, vedadas aos cristãos. Pronto: bruxos e usurários! Quando a nobreza se endividou, a solução foi matar o credor, recorrendo à Inquisição, uma das tantas perseguições antissemitas.
3) Têm presença forte na mídia e no entretenimento? Muitos aderiram a essas atividades em razão de uma afeição atávica pelo conhecimento (“um tesouro que ninguém te tira”, dizia minha avó materna sobrevivente do Holocausto, deixando a Polônia no exato ano em que estourou a guerra) e por serem as que lhes restaram, como no item anterior.
4) Há apartheid em Israel? Os negros, na África do Sul, não tinham extremistas querendo aniquilar uma nação, e os árabes participam da democracia israelense (…). Os judeus reivindicam o direito de defesa (do seu pequeno Estado, sua essencial referência territorial).
5) Alguma conclusão? Os judeus foram expulsos de Israel pelos romanos no ano 70 da Era Comum. Passaram por perseguições como a inquisição e os pogroms, que culminaram no absurdo do Holocausto. Na diáspora, nunca deixaram de rezar voltados para Jerusalém, sua cidade sagrada, cuja origem judaica está presente nos registros bíblicos e em achados arqueológicos que os corroboram. As festividades judaicas têm há milênios suas datas vinculadas às estações em Israel. O sionismo, movimento de autodeterminação judaica e libertação nacional confundido perversamente até mesmo com ideários chauvinistas, preconiza a paz e um Israel seguro – ao lado da Palestina. Ajudem-nos a terminar com tanta incompreensão.”
Esse foi o artigo. Provocou alguma repercussão.
Faltou espaço na seção do jornal em que o texto foi publicado. Mas segue o necessário complemento: o antissemitismo é praga que se traveste ao sabor do contexto. Foi religioso quando os judeus eram diferentes por acreditar num só Deus incorpóreo; depois, foi racial, quando se amparava em absurdas teses supostamente científicas; mais adiante, veio o “político”, quando os judeus voltaram a ter sua referência territorial em Israel – de “internacionalistas” e “apátridas”, passaram a “nacionalistas” e “chauvinistas”. É sempre recomendável lembrar, também, que a região de Israel foi chamada de Palestina pelos romanos após a expulsão dos judeus (o filisteu, de onde deriva o gentílico “palestino”, era aguerrido adversário dos hebreus na antiga Judeia). Antes, no Império Romano, a região era a Judeia, como havia a Germânia, a Galia e outras. Em 1,9 mil anos de diáspora, variaram os contextos, mas o antissemitismo se manteve como nódoa da humanidade, adaptando-se sempre, camaleônica, sorrateira e perversamente, às épocas e conveniências.
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Chegamos então ao ponto em que, num primeiro momento, os judeus são vistos como “raça”, “povo”, “intrusos”, “disseminadores de pestes”, “geneticamente degenerados”, “de nariz adunco” e outras características físicas marcantes. Aí, diante do feito histórico e até milagroso de reerguerem sua linda nação no espaço inóspito do deserto, e, diante da necessidade de desconstruir essa divina conquista sionista, passaram, ao contrário de tudo o que se dizia antes, a ser desacreditados justamente como povo.
Logo nós, que mantivemos a coesão cultural em meio à dispersão e às perseguições? Logo nós, que tanto perseveramos em nossa cultura, nossa crença, nossas liturgias e valores? Logo nós, a quem sempre foram imputadas até doenças características? Se alguém pode ser caracterizado como povo neste mundo em que o judeu Albert Einstein mostrou revolucionariamente a força da relatividade, esse alguém, evidentemente, somos nós.
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Houve uma situação em que debati com uma antissemita revestida da roupagem socialmente aceita (e até bonita, segundo alguns estúpidos) de “antissionista”. Ao ver que os fatos a soterravam, minha contricante sacou de argumento que me fez ver o grau infinito de possibilidades que o antissemitismo oferece para versar sobre o mesmo conteúdo sob diferentes formas. Disse que os judeus askenazim não são semitas, porque o iídiche é idioma germânico. Acatemos que o iídiche seja “língua germânica” com palavras do hebraico e forma de escrever idem (mas, ainda assim, de raiz “germânica”, ok).
Essa classificação técnica (como o cara falar português, morando no Brasil, mas com palavras, caracteres e até sentido da língua de origem, da direita pra esquerda). Concedamos até a possibilidade (no mínimo controversa, porque os judeus realmente fugiram da Judeia dominada pelos romanos) de que alguma parcela dos judeus askenazim tenha sido convertida ao judaísmo no século VIII (8!). Repito: século OITO! (tem religião que recém engatinhava nessa época e continente que nem tinha sido “descoberto”).
Todos esses caras, de qualquer forma, liam e rezavam em hebraico e se voltavam pra Jerusalém nas orações. Mas, ok, acatemos os argumentos absurdos dos atuais antissemitas, travestidos de antissionistas, que tentam nos revirar pelo avesso (como se todos os povos, países e “raças” não fossem, lá no fundo da origem humana, convenções) e nos tirar o caráter semita pra atingir a meta, que é nos deslegitimar e deslegitimar Israel. O que buscam é, depois das tentativas de eliminação étnica (que foram em vão justamente porque a etnia judaica é fortíssima), fazer o apagamento da própria identidade.
Tá! Ok! Acatemos o ódio desses caras, só para pormos a bola ao centro e darmos a eles o mando de campo e o pontapé inicial. Eu pergunto: e daí?!
Por que todo esse contorcionismo negativista e sorrateiro nos apagaria como povo e como etnia profundamente enraizada nos primórdios da civilização – e cruelmente perseguida na diáspora? Ora, percebam a perversidade disso!
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O antissemitismo sempre busca alguma brecha pra se perpetuar. É de uma perversidade sorrateira! Judeu é “raça”, depois deixa de ser raça – se o contexto cruel exigir. E por aí vai. Chegam a se esquecer de que “raça” é só convenção do próprio racista (e acaba existindo sociologicamente, mas nunca biologicamente). Nunca existiram “raças” entre humanos! O judeu entra 100% na definição literal do que é etnia (procure no dicionário!). Usam até a lorota antiga do “tenho amigos judeus”. Além de o iídiche ser dialeto usado na diáspora com vários vocábulos e todos os caracteres em hebraico (natural numa adaptação), tanto askenazim quanto sefardim usam desde sempre o hebraico como idioma em seus rituais. Milhares de anos, eu digo! Todas as liturgias são em hebraico, a Torá é em hebraico. E o iídiche é uma adaptação à diáspora, com palavras em alemão e hebraico (a diferença às vezes está só numa vogal, tipo “mazal tov” ou “mazel tov”, “kasher” ou “kusher”). A maldade, a perversidade e a ignorância dessas pessoas é ilimitada!
Insights sobre o mesmo tema
Diante da impossibilidade de aniquilar o judeu, tentam apagar sua identidade.
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No meu lugar de fala, seguindo a lógica da Djamila Ribeiro (a verdadeira intelectualidade brasileira resiste bravamente!), vos digo: rejeitar o direito judaico ao seu lar é, sim, antissemitismo (não estou falando de quem eventualmente critica o governo israelense, o que é legitimo e às vezes até conta com meu endosso). E, quando alguém me contesta, resta-me dizer: além de quererem tirar meu lugar, querem tirar meu lugar de fala?!
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O gênio Amos Oz contava a história do seu pai, que emigrou de Vilna pra Israel no início do século passado (Amos Oz nasceu em Israel), fugindo do antissemitismo antes da independência israelense. Pois o pai dele, ao fugir do horror antissemita, costumava ver as paredes pichadas com a frase “Judeus, VÃO pra Palestina!”. Décadas depois, já com a existência de Israel, o pai de Oz foi visitar Vilna. Chegando lá, viu paredes com os dizerem “Judeus, SAIAM da Palestina”. É, pessoal… o troço é complicado.
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Aí, eis que resolvem que Jerusalém será neutra, “internacionalizada”. A cidade, fundada por rei David e que uniu as tribos judaicas há 3 mil anos, torna-se acéfala. As consequências são óbvias e eloquentes:
1) Os muçulmanos continuarão orando e peregrinando pra Meca ou Medina.
2) O Papa continuará comandando o catolicismo desde o Vaticano, na Itália.
3) Os judeus continuarão orando voltados a Jerusalém como há milênios.
Conclusão? Façam o que quiserem, digam o que digam, distorçam à vontade. Jerusalém sempre foi, é e será essencialmente judaica. É fato, é algo consolidado desde sempre e completamente irrevogável.
Obs: entendo como muito viável Jerusalém Oriental ser a capital do futuro Estado Palestino, com Jerusalém Ocidental sendo a de Israel.
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A coisa é realmente absurda. Num evento antissemita (“antissionista”) promovido por alunos na UnB, uma professora (!!!) disse, referindo-se a Israel: “Nenhuma experiência colonial chegou a esse nível de violência.” Essa frase foi dita em Brasília, capital do Brasil, país para onde negros eram trazidos após serem arrancados de suas casas na África e escravizados, tendo como castigo frequente o açoite. País onde multidões de indígenas foram aculturadas e dizimadas por cruéis invasores portugueses que nada tinham a ver com esta terra. Israel, que se defende de grupos terroristas que manifestamente o querem aniquilar e que é o Estado judaico por ser a antiga Judeia, foi definido como pior que a escravidão no Brasil. Percebem?! E não são antissemitas?!
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Se me chamarem para conversar com alguém que crítica o governo de Israel por ocupar terras palestinas ou não dialogar pela paz, tô dentro.
Se me chamarem para conversar com alguém que rejeita o direito de Israel existir e se defender, aviso que não falo com antissemitas. Tô fora!
Perceberam o tamanho da diferença?
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Como as pessoas andam confundindo os conceitos de raça, etnia e religião! Se formos usar critérios bem objetivos, biologicamente raça nem existiria. Existe sociologicamente, mas por causa da segregação. É o racista que faz a “raça” existir, o racista é uma aberração que provoca coisas antinaturais. Então a raça existe sociologicamente e pode derivar da tez (no caso do negro) ou da etnia (no caso do judeu, que tem origem, cultura, tradições, idioma e também – mas não necessariamente – religiosidade comuns). Somos todos humanos (raça humana), mas a estupidez nos separa em supostas “raças”. Como a estupidez é uma realidade (muito concreta e disseminada), a raça também acaba sendo real, acaba sendo critério classificador de uma pessoa, uma convenção. Quando se falava em raça ariana, como uma raça superior, os nazistas impunham critérios raciais. O judeu era “raça”. Infelizmente, esses critérios existem por causa das pessoas más – mas existem. Sobre religião, o católico, o evangélico, o budista, o ateu, o espírita podem ser uma coisa hoje e outra amanhã. O judeu não deixa de ser judeu nem se for ateu. Eu, por exemplo, sou judeu que muito frequentou casas de umbanda com os pais judeus.
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Se for para me isolar numa ilha, eu me isolo. Mas nunca, jamais, em nenhum contexto, me relaciono com racistas, e o antissemitismo é o racismo sobre o qual tenho meu lugar de fala.
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Direitosos insensíveis ou levianos da esquerda
Egoístas ou falsos humanistas
Não estendam a mão pra me cumprimentar
Vai ficar chato!
A mão vai ficar pendente no ar!
…
O poema do Gueto
Ao falar do Gueto de Varsóvia
Direi uma coisa
Que deveria ser óbvia
A palavra radicalismo
Tem se desgastado
Pelo falso moralismo
Ser radical é bonito
É ir à raiz e defender
O que precisa ser dito
Diferente é o extremismo
Aí sim é feio
Até parece fascismo
Ser radical é impedir que se enrole
O antônimo a isso não é ser moderado
É, ai que asco, ser muito bunda-mole!
…
Poema triste do aparente paradoxo
Muito pior que a maldade e a burrice
É a adoção inteligente da tolice
É juntar esses dois enormes defeitos
Numa busca perversa de efeitos
Sorrateiras mentiras repetidas
As tornam “verdades” irrefletidas
Sim, a burrice pode ser inteligente
E provocar enormes danos na gente
Numa inocência apenas aparente
De consequência pungente
De falsos paralelos e rasas premissas
Criam-se crueldades fortes e maciças
Da “maldita gente má” de Shtisel
É um passo pro azedo indigerível
E toda essa mistura intangível
Torna a nossa vida sofrível
Perceba que a pensada ignorância
Adquire profunda importância
Porque o uso da perversidade
Nos sonega a limpidez da verdade
Perdão se me torno enfadonho
Nesta reflexão que proponho
Entenda que é só mais um passo
Neste meu absurdo cansaço
E Shabat Shalom!!