Na semana passada, artigo de Erika Denise Edwards no Washinton Post perguntava por que não há negros na seleção argentina, que decide a Copa do Mundo com a França neste domingo. Erika, professora da Universidade do Texas e especialista em identidades raciais, tocou num assunto que desperta curiosidade e justifica estudos. Ora, até a Alemanha, a Dinamarca, a Holanda e a também finalista França têm jogadores negros. Por que não a seleção de um país sul-americano, que teve a escravização africana na sua história de colônia explorada pela Espanha?
Quando vivi na Argentina (1997-1998), em meio à severa crise econômica, às polêmicas de Carlos Menem e à aposentadoria de Diego Maradona, assuntos que me absorviam como temas obrigatórios para um correspondente (da Folha de S. Paulo, no caso), debrucei-me também sobre esse assunto, sempre uma pauta que me desperta particularíssimo interesse.
Onde estão os negros argentinos?!, eu me perguntava!
Faz exatos 25 anos, um quarto de século, que tratei de decifrar tamanho enigma.
Achei na ocasião um rumoroso estudo arqueológico que contesta dados oficiais segundo os quais não há presença de negros na Argentina, e a participação africana na história argentina seria irrisória.
De acordo com o responsável pelo trabalho, o antropólogo Daniel Schavelzon, os descendentes de africanos deixaram Buenos Aires em direção ao interior do país, onde vivem atualmente em número reduzido.
“Os negros foram para o interior porque havia discriminação na capital. Eles existem em pequeno número, entre outros motivos porque, durante os conflitos dos quais a Argentina participou, foram colocados na linha de frente”, me disse Schavelzon, que era na ocasião diretor do Centro de Arqueologia Urbana de Buenos Aires.
Os locais onde há descendentes de africanos são as Províncias de Corrientes, Entre Ríos e Misiones, próximas do Brasil (Rio Grande do Sul) e do Uruguai.
A cidade de Buenos Aires, na época da Argentina colonial (mais de 200 anos atrás), chegou a ter 30% da sua população composta por negros. A confirmação dessa tese ocorreu quando Schavelzon e outros arqueólogos encontraram uma vasilha redonda de cerâmica africana, moldada artesanalmente.
Dados oficiais, divulgados no “Guía del Viajero 1997”, da Secretaria Nacional de Turismo, indicavam que a população argentina é composta por 95% de brancos, 4,5% de mestiços (resultantes da mistura de brancos e índios) e 0,5% de índios das tribos mapuches, collas, tobas, matacos e chiriguanos. Não havia registro de negros.
O trabalho, mostrando a presença de população africana na formação demográfica dos argentinos, foi divulgado em setembro daquele ano, no Congresso Nacional de Arqueólogos, realizado em La Plata, capital da Província de Buenos Aires.
E repercutiu muito!
Bem antes de ser encontrada a vasilha, haviam sido achados, em 1988, objetos de magia africana, como um boneco enforcado por um pedaço de corda (legítimo exemplo de vodu) e perfurado no peito por meio de um pedaço de osso fino.
“A comprovação de que havia 30% de negros em Buenos Aires existe em razão de censos do século 18”, afirmou o pesquisador. “Depois, encerraram-se as emigrações africanas em 1807 e começaram as europeias entre 1830 e 1840, houve a guerra pela independência, entre unitários e federalistas, e a do Paraguai, das quais os negros participaram ativamente e quase foram exterminados”, me contou Schavelzon.
Numa expedição arqueológica realizada em 1928, já haviam sido encontrados objetos tipicamente africanos, que foram destruídos porque os pesquisadores da época desconfiaram de sua autenticidade. A convicção de Schavelzon, porém, é de que o achado era de um cemitério composto por corpos de escravos libertos.
Mas não só as guerras e a febre amarela que atingiu o sul portenho (os brancos endinheirados fugiram para o norte da cidade, criando bairros como Retiro, Recoleta e Palermo, enquanto os negros ficaram confinados em San Telmo) explicam a redução da população africana na Argentina.
Houve as guerras da Independência e do Paraguai, em que o governo pôs negros despreparados (sem treinamentos ou instruções) na linha de frente; houve também o abandono dos negros na abolição da escravatura, quando passaram a morar em favelas, sem higiene e emprego, mal alimentados e com baixa imunidade, passando a ser presas fáceis de viroses, infecções e demais doenças.
Também ocorreu a chamada ‘’política de branqueamento’’, em que se registraram negros escravizados como brancos, pois se acreditava que o desenvolvimento do país estava ligado à cor da pele de sua população. Muitas mulheres negras se casaram e tiveram filhos com brancos, inclusive com imigrantes europeus, que começaram a desembarcar no país antes da metade do século 19. Seus filhos, embora tivessem traços negros comprovados, eram registrados como brancos. Assim, as estatísticas acabaram registrando o sumiço de praticamente toda a população negra da Argentina.
Entre os séculos 17 e 19, no auge do tráfico negreiro para a Argentina, alguns estudos indicam que a população de todo o país chegou a ser composta por negros em sua metade, o que corrobora a surpreendente constatação de que a europeizada Buenos Aires chegou a ser um terço negra.
Mas a principal constatação desses estudos é a de que a tragédia africana também banhou de sangue o Río de La Plata.
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Shabat shalom!