“Uma carta sempre chega ao seu destino é um dos ensinamentos mais profundos que a psicanálise me deixou”. Assim comecei uma carta que escrevi durante o final de semana. Uma carta em resposta a outra de um grupo de estudantes do curso de psicologia da Universidade Federal Rio Grande do Norte.
As inquietudes, as incertezas e, até mesmo, uma desejável desconfiança inicial com a psicanálise proporcionaram um exercício ímpar. Revisitei com os estudantes alguns temas chaves das formações em psicologia e em psicanálise, mas também da sociedade como um todo. Por isso, me animei a compartilhar alguns trechos por aqui. Então, vamos lá: “É o tipo de conforto – a história da carta e seu inescapável destino – que encontrei pela vida quando minhas cartas não foram respondidas e, mais ainda, quando não tive coragem de enviá-las”. A frase enigmática (sim, Lacan!) com a qual abro a carta e este texto indica que aquele que emite um dito o recebe de volta de alguma forma – direta, invertida, torta… Não há escape: falar é um tanto ouvir, escrever é um tanto ler.
“Quer dizer, enquanto emitimos uma mensagem o fazemos com algum tipo de elaboração, de movimento subjetivo. Então, car@s, o que recebi de vocês ilustra, de forma muito comovente, muito do que quero sublinhar com a ideia da carta que sempre chega ao seu destino. Ainda que pareça chocante, preciso dizer que as respostas que venham a receber importam menos do que o fato de a escreverem. Não nego a importância do que posso me animar a dizer a vocês (nada de falsa modéstia!). Menos ainda, o inegável fato de que é gostosa a condição da troca, do intercâmbio – ainda mais quando se trata de cartas! Em todo o caso, apenas queria lembrar – supondo que já sentiram isso em algum lugar impreciso do corpo – que escrever constrói rotas dentro de nós. Trilhos e circuitos que nos ajudam a caminhar diferente pelas avenidas do pensamento lugar-comum. Com lugar-comum – lembro-me que uma das primeiras perguntas de vocês era: Onde? – me refiro àquele pensamento que já foi pensado muitas vezes antes de nós, aquele pensamento que quase se pensa sozinho. É um lugar demasiado visitado que, ao precisarmos passar, precisaríamos saber percorrer de formas inusuais. Também é preciso saber tomar distância, buscar ruas laterais etc.
Uma das avenidas comuns que, pelo menos a mim, pouco interessa é a decisão sobre a psicanálise ser ou não uma ciência. Gosto muito de esquivar essa questão tão em voga. No entanto, este foi um dos temas espinhosos evocados por vocês de forma quase aflita. Assim, me pareceu que valeria dizer algo, justamente, pela forma como vocês colocaram a questão. Vocês perguntam: ‘Por que existe uma importância tão grande em considerar a psicanálise como ciência?’. Como já deve ter ficado subentendido até aqui, para mim isso não tem importância alguma. Não significa que psicanalistas que pensam como eu sejam anticiência, muito antes pelo contrário, alguns/mas são profundamente rigorosos devido a um enorme respeito à ciência. Se posso dar um testemunho pessoal, sinto igual encantamento e admiração pela filosofia e pela ciência. Contudo, nada dessa admiração faz a psicanálise ser uma ou outra coisa, mas uma terceira coisa. E gosto que isto seja assim”.
A partir daí, comentei com o grupo a respeito de uma disjunção interessante que o campo propõe entre as noções saber e verdade. Perdoem, por não querer pesar, arrisco uma síntese rápida: se trata de um desencontro que garante a existência do que chamamos saber inconsciente, já que a verdade, foi dito, nos visita pelas metades. Meus interlocutores universitários já têm alguma ideia sobre isso:
“Como no exemplo trazido por vocês: os sonhos. Vocês compararam os sonhos às obras de arte. Com Freud sabemos que o inconsciente trabalha como um poeta e que, nos sonhos, o inconsciente se serve de imagens e do que mais tiver à disposição para realizar a sua composição. Não é novidade para muitos e estou longe de ser a única a pensar assim: a psicanálise está mais perto da poesia. No entanto, até com ela mantém alguma distância saudável para ambas”.
Não quis comentar com os estudantes para não alongar, mas o nome do regulador dessa “distância saudável” entre psicanálise e poesia é transferência – quer dizer, as condições de enlace paciente-analista. Enfim, outra longa história; melhor que voltemos à carta.
“O sonhador pode ser posto em um laboratório, os sonhos não. Isso não significa que não valha a pena realizar estudos científicos que envolvam a psicanálise – aliás, isto pode ser muito potente. Ainda assim, se trata de um plus, não de um fundamento. Parafraseando Lacan que uma vez disse que a cura vem por acréscimo, eu diria que, em psicanálise, a cientificidade vem por acréscimo. Sem esse hibridismo fica muito difícil singularizar. A psicanálise, para desgosto de alguns, lida com a ideia de singular, de exemplar único”. A partir daí tentei explicar que, apesar dessa busca pela peça única, existe uma partilha envolvida. “Há algo que nos conecta e que, ao mesmo tempo, nos cria enormes diferenças. A linguagem é o material capaz de nos conectar, mas, através das discursividades em curso, podemos estreitar ou aprofundar abismos. E agora creio que chego a outra inquietude que vocês apresentam: “é possível fazer uma clínica que considere as disparidades sociais de raça, gênero, sexualidade ou classe social? Estou cada vez mais convencida de que, mais do que possível, é fundamental. O laço social, através das discursividades em jogo, trata de uma partilha, quer dizer, de quem usufrui das melhores e piores condições de gozar. Embora não seja exatamente sobre isto, podemos dizer que uma versão possível deste “gozar” pode ser acessar direitos, usufruir. Usar e fruir. Então, vejo como bastante pueril pensar que nada disto aparece no consultório. O laço social se compõe de pactos – por exemplo, o da branquitude – que reverberam no consultório desde o primeiro contato. Analista e paciente colocam em cena a cultura, a sociedade e as oportunidades às quais tiveram acesso como linguagem, como discurso e, obviamente, como prática, como ethos. E aí precisaríamos voltar à questão da ciência: de qual ciência estamos falando? Estamos falando apenas da cientificidade positivista? Qual lugar discursivo estamos reservando para as ciências sociais com essa anulação reiterada da sua existência? Perguntas incomodam, mas aprendi que há perguntas que não pedem respostas diretas, mas melhores perguntas. Acredito que estar em formação é, em boa parte, qualificar a condição de “perguntante”. E aqui nos encontramos com algo muito parecido com o que se passa em uma análise: nos tornamos melhores “perguntantes”. Disse no início que a carta sempre chega ao seu destino. Por partir deste princípio vou me abster de responder outras tantas perguntas de vocês, sabedora de que esta conversa não terminará com estas linhas”.
Ainda bem!
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