Em seu texto “Hey, Man”, publicado em setembro de 2002 na revista The Sun Magazine, John Paul Scotto conta o caminho que estava traçando rumo à descoberta de seu autismo, tendo como pano de fundo a visita ao túmulo de um amigo.
Tive uma identificação imediata com a escrita de Scotto ao ler o seu relato de uma longa conversa que teve com seu médico e ouvir dele que era “quase definitivamente autista”, sendo encaminhado a um especialista para confirmar sua condição:
Foi um alívio entender por que todas as interações sociais – desde dar uma palestra até dizer olá para alguém – eram incrivelmente difíceis e desgastantes para mim. Mas também foi desapontador perceber que estas dificuldades eram provavelmente permanentes. Sempre esperei que a vida ficasse mais fácil quando eu dominasse como agir.
A descoberta do autismo pelo próprio autista ou quando os pais descobrem que seu filho é autista (o que é o meu caso) tem o potencial de despertar sentimentos contraditórios e complexos. Traz respostas e alívio ao mesmo tempo que nos coloca diante de novos desafios.
Nesse texto, John Paul revela como lidava com as suas dificuldades nas relações sociais: observado e memorizando os comportamentos que lhe pareciam “normais”. Como ele declara, ficou bom nisso. Porém, jamais incorporou aqueles comportamentos que observava como um hábito. Nunca foram naturais para ele.
O álcool foi um recurso que utilizou bastante para ajudá-lo nessas situações. Até chegar ao alcoolismo. Em outro texto, diz que a combinação de álcool, luzes fracas e barulho alto ajudavam a abafar sua ansiedade social e permitiam que interagisse com as outras pessoas.
Após passar por diversos terapeutas e falar muito sobre o passado, sem conseguir relatar o que acontecia com sua vida, desabafou: o problema não está no meu passado, mas no presente.
Foi de forma despretensiosa que, depois de pensar ser esquizofrênico, sociopata, psicopata e bipolar e de ser chamado de retardado por seu amigo que Scotto começa a perceber que poderia ser autista. Ao assistir a série “Everything’s Gonna Be Okay” (Vai Dar Tudo Certo, na versão brasileira), sua mulher disse que ele tinha muito em comum com uma personagem autista.
Ao ler sobre autistas que mascaravam e escondiam seu autismo sentiu que era como ler sobre si mesmo. Mas o acesso ao diagnóstico era caro, não era coberto pelo seguro médico. Ser atendido por um especialista na faculdade que lecionava tomaria dois anos de espera. Foi somente aos 35 anos que ele pode ouvir que era autista. E, ao receber essa notícia, inicialmente difícil de ouvir, que ele se permitiu perdoar a si mesmo pelas “esquisitices” que ele passou a vida inteira tentando apagar.
Esse momento foi contado no ensaio “I Tried to Forget My Whole Life. I’m Glad I Failed.”, publicado no Longreads, uma revista literária digital que publica textos longos de não ficção.
Nesse texto, Scotto nos traz as principais virtudes de se descobrir autista: perdoar a si mesmo e parar de se culpar pelos fracassos de uma vida, ressignificando essas lembranças ainda que fossem dolorosas.
Assim, viu por outro ângulo a sua dificuldade em ser o principal jogador de uma equipe de futebol americano (aquele jogado com as mãos e com uma bola oval) na universidade em que estudava. O obstáculo não era o esporte em si, mas a ansiedade por ser uma espécie de celebridade local e dormir nos alojamentos de estudantes.
Para ele, era impossível dormir em um quarto compartilhado com um colega que roncava, em um quarto com cheiro forte de produtos de limpeza e em um colchão que estalava a cada vez que ele se mexia. Como ele poderia treinar se não conseguia dormir mesmo após dias exaustivos de estudos e treinamentos? John Paul estava enlouquecendo de solidão e insônia. Andava sem rumo pela noite, pensando em suicídio enquanto fantasiava em ir para outra faculdade e virar um profissional antes de entrar em uma Igreja onde rezava pedindo a Deus que o ajudasse a se acalmar e dormir.
Ao terminar o primeiro ano, voltou para casa e passou a encarar duas horas e meia de ônibus para chegar ao campus. Enquanto os colegas se divertiam em festas no campus, ele estava trancado no porão da casa dos pais jogando poker online. O que parecia ser um plano possível para pagar os débitos dos empréstimos universitários foi arruinado pela falta de controle emocional.
Após ganhar milhares de dólares jogando de forma calma e metódica, ignorava todas regras que se auto impunha e arriscava todos os ganhos em uma única aposta. Foi assim que se viu perdendo dinheiro, isolado socialmente e viciado em cartas e apostas. Como ele mesmo diz, se sentia preso em um poço profundo.
O interesse em jogos cedeu para uma obsessão por filmes de qualidade duvidosa, como “Piratas do Caribe”. Sentia como se estivesse sendo sugado pelo seu tema de interesse, pensando compulsivamente nisso sem entender o porquê disso. O filme seguinte que lhe prendeu o interesse e viu sucessivas vezes foi “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças”. Um filme mais aceitável para uma pessoa de 21 anos, segundo ele, mas que dava era mais um passo em uma vida inteira de comportamentos compulsivos como assistir filmes, levantar peso, comer, jogar. Passou por pornografia , automutilação e apostar, tudo de forma compulsiva. Jogar xadrez, escrever, mas, acima de tudo, beber compulsivamente. Qualquer coisa que servisse para não olhar para si mesmo. Mas John Paul foi ensinado desde criança a se calar sobre seu desconforto e a aguentar sozinho e quieto as suas lutas.
Todo esse processo destrutivo foi interrompido pela descoberta do autismo, que afastou o auto-ódio, trazendo perdão e a autocompaixão. O autismo fez com que ele enxergasse com novos olhos as amizades tóxicas do passado, suas próprias estranhezas particulares e a relação conturbada com o pai. Se, antes, chegou a se enxergar como se estivesse em um poço escuro, passou a se sentir em uma sala iluminada pela luz do sol onde pode dar nome aos sentimentos que tanto o confundiam.
Diz que falar de seus sentimentos e dar o testemunho da própria vida tem trazido mais cura e paz que qualquer remédio ou terapia experimentados antes por ele. Encarar os próprios fantasmas o fez entender a relação difícil com o pai e, principalmente, ver como enfrentou e venceu os próprios problemas e ter noção de como foi forte.
Encerro a leitura dos textos dele pensando na diferença que faz na vida de alguém receber essa notícia aos 35 anos. Penso nos tantos nós que começaram a ser desamarrados a partir de uma série despretensiosa na televisão. E meus olhos correm para um comentário anônimo ao texto, dizendo que o “ensaio de John Paul Scotto me fez considerar que a fonte do meu desconforto social pode ser mais profunda do que o meu tipo de personalidade. Eu me reconheci muito em sua experiência. Aos setenta anos, fico surpreso ao pensar que posso estar no espectro do autismo.”
Afinal, nunca é tarde demais para descobrir quem você é.
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