Um filósofo pré-socrático chamado Zenão de Eleia, sobre quem se sabe pouco, mas que teria vivido entre 490 ou 485 a.C. e 430 a.C., é famoso por uma série de paradoxos tentando provar, por meio de um raciocínio lógico que muitos consideram o uso pioneiro da dialética na filosofia, que o movimento no mundo não existe. Zenão era um discípulo de Parmênides (515-450 a.C.), que argumentava que nada no mundo se movia de fato, e que todos nós estamos presos em um único ponto no espaço em um dado momento. A base desse tipo de pensamento está assentada nas premissas: “o que é não pode deixar de ser” e “o ser não surge do não ser”, então qualquer mudança percebida pelo sentido humano na prática era uma ilusão intelectual. Uma ideia, portanto, diametralmente oposta à da transformação constante advogada por Heráclito, para quem “a única constante da realidade é a eterna mudança”. A escola de Parmênides e seus seguidores também refutavam a ideia de multiplicidade dos seres, argumentando que todo o universo era uma coisa só, ou, como afirmava Parmênides, “o todo é uno”. (ἓν εἶναι τὸ πᾶν).
Falando assim, parece algo meio absurdo, não? Porque se mudança e movimento em teoria não existem, mas nós podemos ver todos os dias as coisas mudando e se mexendo, tem de haver alguma explicação (que não seja a mais simples: a de que Parmênides, Zenão e a escola eleática toda estavam, numa época em que a experiência direta da natureza era colocada em segundo plano diante das elucubrações do raciocínio, viajando na maionese). As proposições de Parmênides viriam a inspirar argumentos fundamentais para a história da filosofia, entre eles a teoria dos quatro elementos de Empédocles (490 – 435 a.C. – logo, contemporâneo de Zenão). Para Empédocles, a nossa ilusão de mudança e movimento viria, na verdade, da combinação e recombinação constante de elementos básicos que eram imóveis e imutáveis: fogo, terra, ar e água – esta noção, aliás, seria a base para praticamente todo o conhecimento físico e médico do pensamento ocidental pelos 25 séculos seguintes.
Sendo justo aqui: não se conhece a obra de Zenão em seus próprios termos. Seus textos não chegaram aos nossos dias, e a fonte principal que temos sobre seu trabalho são resumos feitos por outros, como Platão, no diálogo Parmênides. Alguns desses outros que nos legaram um resumo do pensamento de Zenão também o fizeram especialmente para refutá-lo, como Aristóteles, e, portanto, podem ter representado suas ideias dando ênfase àquilo que melhor poderiam rebater. De todo modo, nesses registros conta-se que Zenão teria escrito cerca de 40 aporias (do grego ᾰ̓πορῐ́ᾱ, significando “sem passagem” ou “nenhum caminho”). Hoje chamamos esses textos de “paradoxos”, advindo de outra palavra grega, para “argumento contrário” ou “contra a opinião” (no caso, a opinião geral). Os paradoxos elaborados por Zenão tinham a ideia de levar o pensamento lógico até um ponto de não retorno (daí o “sem passagem”).
O Paradoxo da Flecha
Mas, como eu dizia, entre os 40 paradoxos compostos por Zenão, temos hoje conhecimento sobre menos de 10. E um entendimento mais aprofundado sobre apenas quatro, entre eles o chamado Paradoxo da Flecha, um desafio à ideia de movimento. Zenão defende nele que uma flecha disparada jamais atinge de fato o alvo porque ambos estão sempre separados em um único ponto no espaço – num resumo muito, mas muito reducionista, ele propõe que a flecha nunca chega ao alvo porque primeiro precisaria chegar até a metade da distância, depois a metade da metade, e assim sucessivamente, em uma série de proposições que pretendem levar o interlocutor a concluir que a flecha, por nunca deixar seu ponto fixo no espaço, não está em real movimento.
Lembremos, ao falar disso, que a filosofia, ao contrário do que alguns coaches picaretas (perdão pelo pleonasmo) tentam convencer vocês aí, não tem apenas a realidade como objeto, mas o próprio pensamento, então esse tipo de exercício intelectual não é incomum em sua história. São jogos com a forma e as propriedades do raciocínio. O Paradoxo da Flecha de Zenão, além disso, abre uma discussão sobre se o movimento é uma ilusão criada pela nossa percepção, ou se é uma realidade objetiva, algo que só seria realmente refutado depois que a física puramente especulativa do período foi sendo substituída pela física experimental. Além disso, o paradoxo de Zenão também nos leva a refletir sobre a natureza do tempo e como ele se relaciona com o movimento.
Claro, uma crítica óbvia que se poderia fazer é que ele se ancora em uma visão estática do tempo, considerando o tempo como uma série de momentos individuais, em vez de uma corrente contínua. Daria até para pensar no quanto essa teoria revela sobre a mentalidade curiosa, mas ultrapassada, dos antigos, mas tem um nó aí: se você conversar hoje com qualquer físico, ele vai dizer que existe uma corrente respeitável da Física contemporânea, liderada por Carlo Rovelli, que defende que o tempo não existe, é uma ilusão, e se você conseguisse ver sua vida de fora, veria todos os momentos como se já tivessem acontecido, uma perspectiva que refina os argumentos para algo que, a um leigo como eu e a maioria de vocês, parece um retorno à ideia eleática. Mas eu sou um ignorante em Física, então posso estar dizendo bobagem, falo apenas da sensação que esses tópicos um pouco fora do meu alcance provocam.
Curiosamente, o paradoxo da flecha de Zenão foi elaborado para provar que tudo é uma coisa só e, portanto, para rejeitar a multiplicidade das coisas na realidade. Mas, baseado na ideia de que nossas percepções e conceitos podem ser limitados e incompletos, é também um lembrete das complexas e multifacetadas visões sobre a realidade. É um tipo de discussão que parece absurda, mas é muito sofisticada, e é por isso que sempre me pego imaginando um contraponto disparatado entre a sutileza de seu argumento e os efeitos brutais da realidade aplicada. Imagino, por exemplo, Zenão enunciando laboriosamente seu paradoxo de Zenão para uma audiência em um anfiteatro qualquer e algum provocador truculento resolvendo sacar um arco e uma flecha, puxando a corda e disparando a seta bem no peito do filósofo – com os efeitos previsíveis que todos conhecemos na vida real. E ainda tirando onda ao final: “Diz aí agora que a minha flecha não acertou o alvo, seu arrombado”.
O complexo e o brutal
Vocês podem achar que esta minha última tirada foi alguma tentativa desesperada de humor barato, o que pode até ter sido, mas traduz uma inquietação que considero real e cada vez mais premente: a fragilidade real de nossas sutilezas, conceitos e discussões sofisticadas nos momentos de crise em que a horda se ergue para resolver qualquer coisa no braço.
Discutimos os limites do humor, se os caminhos da esquerda deveriam ou não passar pelas novas e necessárias vertentes da condição de identidade ou se estamos ou não, com isso, negligenciando o foco na luta de classes que sempre foi a base de transformação social. Mas aí vem a pergunta que fecha o ciclo: a transformação foi para quem? Melhoria das condições da classe operária não ajudou, em um primeiro momento, a condição da mulher, ou diminuiu o racismo. A gente discute os limites da liberdade de expressão, se eles existem, se, em existindo, como devem ser aplicados – uma discussão antiga: John Milton (1608 – 1674), em seu discurso Areopagítica, de 1644, defende que não deveria haver qualquer censura judicial à publicação de opiniões. Esse é o argumento no qual supostamente se amparam até hoje alguns direitistas que dizem ser “a favor da liberdade”, esquecendo que, no mesmo Areopagítica, Milton abomina a censura prévia, mas ainda aceita a responsabilização judicial a posteriori de quem espalhar calúnias e mentiras contra terceiros, por exemplo.
Discutimos as ondas migratórias, suas causas, discutimos o capitalismo tardio, a precarização do trabalho, discutimos questões que são delicadas e complexas e não têm respostas simples, e cujas respostas mais corretas muitas vezes são paradoxos no sentido grego original da palavra: contrários ao senso comum. E essas são discussões que levam tempo de maturação, são complicadas, mas estão sendo constantemente atropeladas pelo novo ethos político colocado em cena pela ascensão global da extrema-direita: porrada, cinismo e trollagem (aliás, sobre isso, ver aqui).
O que fazer?
Muito já se condenou o teatro da política, mas o fato de que a política exigisse um certo teatro não deixava de ser uma concessão a uma noção comum de decoro e de um mínimo grau de comportamento. As regras de comportamento seguem sendo cobradas de muita gente, principalmente as de uma determinada cor ou classe social, mas nos últimos anos vimos esse quadro de um mínimo denominador comum ser erodido por figuras nos mais altos cargos do sistema político.
Exemplos rápidos são as provocações e criancices de gente como Trump ou Bolsonaro, seus discursos lotados de palavrões (aliás, ver aqui); a mentira pura e simples, como no caso do secretário de Defesa norte-americano negando que compartilhou detalhes bélicos num grupo de zap, mesmo com os prints rolando para comprovar; e claro, desrespeito pelo próprio ordenamento legal, como a insistência dos apoiadores dos golpistas ora em julgamento de que não se tentou um golpe no dia 8 de janeiro, ou a maneira cínica como Trump em seu segundo mandato está implantando seu projeto político a golpes de marreta desobedecendo até mesmo ordens judiciais. Esse é o ponto mesmo, aliás, de muitas dessas práticas: interromper e tumultuar uma discussão séria, desviando tempo e energia para lidar com um comportamento agressivo ou “zoeiro”, essa palavra que ganhou conotação tão positiva nesta era de descerebrados com voz nas redes sociais, achando que ela nunca tem que “ter fim”. Como se aquele seu amigo de colégio, com quem era impossível falar dois minutos sem que ele emendasse alguma piada de pinto, virasse de repente um político com poder, não porque aprendeu a mascarar esse lado inquietante de sua personalidade, mas porque o novo espírito do tempo vê mérito em seu comportamento. Também por isso espalham-se imitadores nas redes do YouTuber Mamãe Falei, com suas práticas de fingir interesse em conversar apenas para conseguir um “corte” constrangedor do interlocutor ou uma porrada na fuça, as duas coisas funcionam maravilhosamente bem para turbinar o discurso que ele quer passar, o de que o intolerante é o outro.
Não tenho, como ninguém tem, uma resposta simples para esse cenário. Só sugiro que, quando estivermos discutindo questões sérias sobre se uma flecha pode atingir um alvo quando lançada, nunca percamos de vista a possibilidade de alguém na audiência estar com um arco mirado na sua cabeça.
Todos os textos de Carlos André Moreira estão AQUI.
Foto da Capa: gerada por IA.